‘Persona’ ou ‘A Máscara’ (1966), a obra-prima de Ingmar Bergman

 

 

João Bénard da Costa não esteve com rodeios ou meias-palavras quando descreveu Persona, de Ingmar Bergman, com Bibi Andersson e Liv Ullmann, monumento artístico dos anos 60, como “a obra-prima de Bergman”.

Na sua segunda auto-biografia, Bilder (1990), feita para corrigir a primeira, Bergman om Bergman (1970), em que achou ter sido conduzido pelos entrevistadores, Ingmar Bergman declara que “quando se lê o guião de Persona, pode parecer uma improvisação, mas é planeado de forma meticulosa. No entanto, nunca rodei tantas repetições durante a realização de qualquer outro filme. Quando digo repetições não me refiro a tomadas repetidas da mesma cena no mesmo dia. Refiro-me a repetições que são uma consequência de ter visto as provas diárias do dia anterior e não ter ficado satisfeito com o que vi.

“Começámos a filmar em Estocolmo e e fizemos uma partida em falso.

“Mas pusemos a coisa em marcha, devagar e com rangidos. De repente, gostava de dizer: “Não, vamos fazê-lo melhor, vamos fazê-lo desta ou daquela maneira, e aqui podíamos fazê-lo de forma um bocado diferente.” Nunca ninguém ficou chateado. Está metade da batalha ganha quando ninguém se começa a sentir culpado. O filme também beneficiou, naturalmente, dos fortes sentimentos pessoais que emergiram durante as filmagens. Em suma, era um plateau feliz. Apesar do trabalho fatigante, tive a sensação de que estava a trabalhar com liberdade absoluta tanto com a câmara como com os meus colaboradores, que seguiram as minhas voltas e reviravoltas.”

Num artigo para a revista Cineaction depois reproduzido em Sexual Politics and Narrative Film (1998), Robin Wood, revisitando as suas visões sobre Persona, escreve que “Elisabet é uma mulher profundamente perturbada e portanto potencialmente perigosa. Joga muito a favor do filme que não a consiga “explicar” em termos de psicologia pessoal: a resistência dela ao patriarcado, a recusa dela à “ideologia dominante” é suficiente. Aqueles que permanecem confortáveis no interior dela não conseguem perceber isto. Durante a minha vida, tanto fui “Alma” como “Elisabet,” e percebo-o muito bem. Também percebo que “Alma” vai fazer sempre parte de “Elisabet,” tal como “Elisabet” fez sempre parte de “Alma.” A ideologia é o nosso lar—o lar em que crescemos. Enquanto permanecemos dentro dela, por mais contraídos e frustrados que nos possamos sentir, não temos “nada com que nos preocupar. É tão seguro”: sabemos as regras. Assim que passamos para o lado de fora, renunciando-a, ficamos sozinhos, não temos em que nos apoiar, já não há mais regras, temos de descobrir umas novas ou construir as nossas. Embora menos abrupto, é tão assustador e desorientador como a experiência do nascimento, quando a criança deixa a segurança e o calor do útero (mesmo que parecesse às vezes um bocado desconfortável) por um estranho novo mundo em que a sua primeira experiência, normalmente, é ser esbofeteado e obrigado a gritar. Também é uma experiência necessária como o nascimento, se a nossa civilização quer progredir e redimir-se a si própria. Daí a ambivalência dos nossos sentimentos para com Elisabet: ela é perigosa, assustadora, “outra,” mas admirável e necessária. (normalmente são os que se recusam a ver as duas mulheres como mais do que “personagens,” para serem julgadas ao nível da psicologia e do comportamento pessoal, que a acham um “monstro”) O que Bergman não consegue fazer (porque é um homem? porque é habitante de um país onde se acredita que todos os problemas sociais foram resolvidos por muitos anos de governo quase socialista, mas em que o patriarcado e o capitalismo continuam a ser as forças dominantes? ou só porque é Bergman?) é dramatizar a possibilidade de construir um novo “lar” de solidariedade e apoio mútuo. Nunca poderia ser tão seguro como o lar que se abandonava, uma vez que carece da sanção da tradição, mas torna a vida e o desenvolvimento adicional possíveis, permite-nos desenvolver a nossa criatividade, e não a negar com raiva impotente. No entanto, é surpreendente quão longe o filme vai – pelo menos até ao fim da primeira parte – na sugestão dessa possibilidade.

“A rejeição de Elisabet ao seu papel na ordem patriarcal fica notavelmente completo, recusando qualquer concessão; pode-se ver o seu rigor como o aspecto positivo da sua impiedade, ou ver a impiedade (que quase destrói Alma) como a sua infeliz consequência. Antes do seu silêncio, ela rejeitou tanto o casamento como a maternidade, e não apenas como ideias abstractas. O momento em que ela rasga a fotografia do filho é profundamente chocante, registando a brutalidade, a asfixia dos sentimentos “naturais” e o custo psíquico que o rigor impõe: ela não pode permitir ser sugada de volta para a vida que rejeitou, e para as emoções que lhe pertencem. (Regressarei mais tarde à atitude de Bergman para com a maternidade, já que se torna um ponto crucial dos últimos episódios do filme.) O silêncio dela é a culminação lógica deste processo, ao mesmo tempo a afirmação mais rigorosa da sua recusa em participar num sistema que repudia e um recuo—tornando-se o silêncio tanto uma barreira protectora como uma asserção de resistência. Também antecipa de forma surpreendente a posição que certas feministas desenvolveram a partir de Lacan: a própria linguagem é patriarcal, sendo a conquista da linguagem um passo de entrada decisivo na Ordem Simbólica. O dilema que isto provoca (se a linguagem é patriarcal, como é que uma feminista pode falar?) não é só de Elisabet.”


Em resposta a este artigo de Wood, Göran Persson, psiquiatra sueco fascinado com a obra de Ingmar Bergman, escreve pouco tempo depois na mesma revista que “no filme, Elisabet torna-se dolorosamente consciente daquilo que se pode qualificar como o seu complexo de Electra, e das memórias de ter sido abusada sexualmente. Há muito nela que foi reprimido, incluíndo o seu desejo de ser mãe, o amor pelo filho e a capacidade dela em estabelecer uma relação madura com um homem. Sente-se do lado de fora, sem qualquer chance de ser aceite por pessoas normais e decentes. Durante o filme, descobre que as pessoas normais e decentes (a enfermeira Alma é certamente tão normal e tão decente como qualquer pessoa podia pedir, dada a informação que recebemos primeiro) podem muito bem alimentar exactamente os mesmos sentimentos que ela condenou em si mesma, e pode-se sentir assim integrada no círculo humano. O chupar do sangue é a confirmação deste facto.

“Mesmo no final do filme, vemos Elisabet a interpretar Electra outra vez. Deixou assim o papel de espectadora que interpretou durante o filme e voltou a ser a actriz activa. É um momento muito curto, uma centelha apenas, mas mostra Elisabet durante a fase agonizante e reflexiva, não quando está prestes a partir-se a rir. Há duas interpretações possíveis: ou está mais confiante em si mesma e, devido a este facto, pode nutrir sentimentos mais profundos, ou então está de volta à sua vida antiga e no seu nível antigo de funcionamento, talvez com um par de gestos e tons de voz novos no seu repertório. Esta última interpretação pode parecer um bocado niilista: os espectadores nunca aprendem o que quer que seja, e portanto a arte não tem qualquer proveito. Pode-se ficar com esta sensação quando se lêem algumas das avaliações críticas de Persona. E o que é que eu próprio retirei de Persona depois de ver o filme uma vez? Fui abalado, mas não fazia ideia como, ou pelo quê. Não compreendi grande coisa. Teve efeitos inconscientes? Não sei.”

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A Máscara (Persona) (1966) de Ingmar Bergman – trailer

Título: Persona (A Máscara)

Realizador: Ingmar bergman

Com: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook e Gunnar Björnstrand, entre outros.

85 minutos, Preto e branco, Suécia.

Sinopse (Cinemateca Portuguesa): O tema do duplo no mais famoso filme de Ingmar Bergman. Uma actriz emudece por razões desconhecidas e procura o repouso à beira mar, na companhia de uma enfermeira. Entre as duas mulheres estabelece-se uma relação de dependência mútua. Com “Persona”, um dos seus dramas mais perturbantes, Bergman faz, também, uma revolução da linguagem cinematográfica.

Persona (1966) de Ingmar Bergman foi exibido ontem, 30 de maio, pelo Lucky Star – Cineclube de Braga na Casa do Professor desta cidade.

Obs: O presente texto foi publicado originalmente em Lucky Star – Cineclube de Braga tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.

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