Agostinho Fernandes, o ex-presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão e presidente da Associação Dar as Mãos, tem-se vindo a dedicar a mil e uma atividades agora que deixou a vida política ativa. Entre estas, a escrita tem assumido particular destaque. Hoje, 23 de fevereiro, pelas 16h00, Agostinho Fernandes apresenta o seu último livro – A Bicharada e eu – na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco em Vila Nova de Famalicão. A Bicharada e eu foi publicado na Chiado Books.
Entendeu Agostinho Fernandes que era altura de refletir sobre todos os entes criados, sabido que é que o homem foi a última criatura saída das mãos de Deus, após todos os outros seres vivos, mares e rios, estrelas e planetas, plantas e animais de todos os tamanhos, cores e feitios, falas e vozes, desde o começo do Mundo e do planeta Terra.
Agostinho Fernandes completa trilogia infantojuvenil
A bicharada e eu remata assim a trilogia, se se quiser, entre as diversas situações e enquadramento dos anteriores livros, Olha o Rio Ave e o Dom Caracol e o Senhor Aranhão, especialmente escritos por Agostinho Fernandes para os mais novos, pretendendo ajudar a responder às seguintes questões, bem intrigantes por certo e que, mais tarde ou mais cedo, sempre nos perseguem e colocam: onde estou eu, quem sou e para onde vou, conjugar o eu, tu e os outros, como que para conhecer, integrar, consciencializar e ser solidário pelo imperativo maior do respeito e da sobrevivência de que disfrutam todos os seres que partilham a correnteza da vida. Assim sendo, as tão antigas fábulas, cantigas de escárnio e mal dizer, estorietas e outras lúdicas tretas… que se contam por aí, refiro-me também a contos, novelas e romances, são apenas uma aresta do complexo poliedro existencial, reconhecendo embora desde Fedro e Esopo, La Fontaine, Mestre Aquilino Ribeiro, Jiménez, Trindade Coelho e Torga, entre muitos outros, a sua melhor atenção para aquilo a que chamamos de Bichos…bichos que somos todos nós… e o seu fantástico contributo a quantos entraram na Arca de Noé… praticamente todos.
A Bicharada e eu, um inventário de encontros
“Resolvi assim recordar de algum modo e por amostra, grande parte da bicharia que se encontrou comigo nos caminhos da existência, preferencialmente com a antropófaga esfinge no cruzamento de Tebas e o seu execrável interrogatório, tropeçando nas laboriosas formigas e as descaradas moscas e mosquitos, os aranhões e as fedevelhas e toda a súcia de bichos peçonhentos, nojentos e embirrentos, como as toupeiras e os ratos, as lagartixas e as bichas-cadelas, que não as percebes, as ostras, os mexilhões, as lapas e os caracóis do nosso contentamento que são muito bons e custam bom dinheiro nas terrasses dos cafés de Lisboa e Paris… centro estratégico de todos os criadores belos, bonitos e requintados deste mundo… o que não quer dizer virtude!
Claro que não são estórias exemplares de jardim zoológico que bom é viajar e conhecer África, ardente, misteriosa e exótica, quase canibal, mãe de todos e de todos inspiradora. Basta olhar para ela e para as Américas e Ásia e o que de bicharocos ainda existe, desde a Índia, mãe das cobras, até todo o tipo de bichos e bicharocos como o leão, o rinoceronte e o hipopótamo, o elefante e a girafa, esses sim bicharocos, tal como a baleia, o tubarão e o lobo marinho que de dragões…só de papel!
Assim foi que, dedilhando um tanto as páginas da minha existência, inventariei também em forma de lances, os encantos mais marcantes que tive ou aprazei com uma miríade de seres vivos como nós, partilhando igualmente uma existência atribulada e difícil pela sobrevivência, para além dos perigos inerentes, constantes e diários de fazer frente ou fugir do bicho homem, o mais temível para todos os outros porque armado, sem qualquer sombra de dúvida. E não serve aqui de justificação aquele ditame de Deus quando, com grande grau de bondade e inocência, prescreve a Adão e Eva no 6º dia:
Crescei e multiplicai-vos e enchei a terra, e sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem na Terra.
Eis aí vos deixei eu todas as ervas, que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores, que têm em si as mesmas sementes do seu género, para vos servirem de sustento a vós.
E a todos os animais da Terra, a todas as aves do céu e tudo o que tem movimento sobre a terra e em que há alma vivente, para que tenham que comer. E assim se fez.
E viu Deus todas as coisas que tinha feito e eram muito boas. E da tarde e da manhã se fez o 6º dia.
E assim é que sem Bem nem Mal (!?) …, mas é claro que ambos coexistem… árvores, animais e animaizinhos… têm todo o direito às luzes da ribalta existencial e à sua interdependência nos diversos ecossistemas, pois que uns não existiriam sem os outros, mas em que todos, de uma vez por todas, precisamos uns dos outros e de todos.
Não faltam por aí rãs que sonham ser bois, Ícaros que caem no próprio fosso que cavaram e até homens que são o lobo do homem… como muito bem, realista e cruelmente desenvolveu Hobbes no Leviatão…algo para o qual já il Poverelo e mesmo o nosso imperador da língua portuguesa António Vieira, tinham chamado a sua atenção uns bons séculos antes, conhecedores privilegiados que eram da malvadez dos homens, de nada valendo os seus sermões e parábolas. Uma verdade, porém, é certa! No intangível fenómeno da criação, cada ser é único e irrepetível, todos são diferentes e iguais, ninguém é mais que o outro, ninguém é menos que o outro. Erva, arbusto e árvore, sardanisca, peixe, melro, cão e gato, boi, tigre, elefante, homem e águia, todos são precisos, todos com direito à vida, todos necessários e interdependentes… falem inglês, português, chinês e russo ou não…já que a fala, apesar da confusão em Babel, que se saiba, só é apanágio dos filhos de Adão…o que não é verdade.
Já plantei centenas de árvores e arbustos, lindos e coloridos, já escrevi livros e mais livros e não pude ainda resvalar para a ficção. E para quê se ela não excede a problemática realidade que nos entra pela janela todos os dias e noites?…. Já pisei os cinco continentes e conto mais de cem países, onde cheguei de barco e avião e onde me cruzei com toda a bicharia do Mundo, enfim, sou pai e avô… que me falta agora senão ver crescer e voar a tripulação da minha nave existencial?…
Saibam, finalmente, quantos estas endechas lerem que tenham presentes as lições de Esopo e Fedro em jeito de moralidade e proveito, efabuladas em jeito brando, sobre o que andamos todos e cada um a fazer neste grande teatro que é o Mundo em que todos vivemos… com obrigação de vivermos bem e deixá-lo bem melhor para quem nos sucede no decantar incessante die noctuque da clepsidra do tempo”.
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Imagem: BMCCB