A mulher e os seus papéis são tópicos essenciais no estudo de qualquer sociedade, mormente as medievais. Apesar de frequentemente ignoradas ou abordadas de forma depreciativa pelas fontes, maioritariamente homens (sobretudo clérigos), as mulheres medievais desempenhavam papéis fundamentais a todos os níveis da sociedade. Neste artigo, falaremos de uma pessoa da mais alta condição social que, apesar da sua importância na época, sofre deste esquecimento e é talvez a rainha mais apagada da Idade Média portuguesa. Não é nada mais nada menos do que a consorte régia de Afonso Henriques: Matilde de Sabóia ou Mouriana, ao mesmo tempo fascinante e misteriosa, desde o nascimento até à sua morte.
Comecemos pela questão do nome, pois o leitor deverá certamente estranhar o título escolhido: afinal, conhece uma Mafalda e nenhuma Matilde. Historiograficamente, a rainha é por norma chamada de Mafalda, mas José Mattoso chamou a atenção para as grafias conflituosas do nome. Maria Alegria Fernanda Marques, na sua biografia desta personagem, esclareceu um pouco melhor a dúvida: dos documentos da época originais, i.e., que não são cópias mais tardias de documentos do século XII, há 3 ou 4 formas do nome: Mahalt, Matille, Mafalda e talvez Mahalta. Se considerarmos o tratamento dos “Annales” da rainha como Matilde e a tradição onomástica da sua família, também expressa no nome da filha Matilde/Teresa, o nome da rainha deverá ser provavelmente Matilde. Esta hipótese é corroborada pelo facto de todas as formas escritas coevas de “Mafalda” virem de um mesmo escriba de nome Alberto… Por isso, o nome Mafalda só é usado pela historiadora mencionada por pura convenção. De qualquer forma, esta confusão reflecte a novidade do nome da rainha no reino e as dificuldades na sua grafia, expressa por vezes de forma deliberadamente ambígua, como na mais tardia “Cronica Gothorum”.
Quer fosse Mafalda ou Matilde, algo que nos interessa muito mais é a sua ascendência familiar. Ignorada já a partir de finais do século XII, quando parecia ser esquecida ou menosprezada pelo autor dos “Annales”, o conde D. Pedro acabou por incluí-la erroneamente no seu livro de linhagens como filha do senhor Manrique de Lara. Mas, afinal, quem era o pai da Rainha? Ora bem, nada mais, nada menos do que Amadeus III, conde da Sabóia e de Maurienne. Ao contrário da imagem dada pelos “Annales”, que insistem em como Afonso Henriques teria procurado uma mulher de menor condição para não infringir o Direito Canónico ao casar com familiares, este conde era um familiar distante, pois a sua mãe Gisela era irmã do conde Raimundo da Borgonha, primo por casamento do pai do rei português, o conde D. Henrique. Nem era Amadeus III um nobre de condição menor: a sua tia-avó Berta fora a consorte do imperador Henrique IV e uma irmã, Adelaide, era a mãe de Luís VII de França, para além de ser vassalo do imperador Conrado III, também neto por via materna de Berta. Ou seja, era de uma boa família e estava relacionado com dois dos principais monarcas de toda a Cristandade e líderes da Segunda Cruzada, na qual Amadeus participou e morreu. Assim, Afonso I de Portugal arranjava um casamento altamente prestigiante para si, talvez compensando pela falta de mulheres em idade casadoira nas casas régias peninsulares disponíveis para um casamento (lembremo-nos de que Afonso I estava a chegar aos 40 anos e precisava de herdeiros rapidamente…), para além de possivelmente abrir caminho para uma colaboração futura com a Segunda Cruzada no cerco de Lisboa em 1147.
Feita esta longa introdução aos factos supostamente básicos da vida de Matilde, passemos ao casamento propriamente dito, quando aparece pela primeira vez na História de acordo com a documentação conhecida. De acordo com os “Annales”, Matilde casou-se com Afonso Henriques em 1145, com pelo menos 12 anos (a idade canónica mínima para casar). É possível que o casamento tenha sido efectuado por procuração, provavelmente com a mediação do arcebispo de Braga, João Peculiar, e do abade Pedro, o Venerável de Cluny, ao qual a casa de Sabóia estava intimamente ligada. Contudo, só a 23 de Maio de 1146 aparece a rainha na documentação do marido já como casada e, muito curiosamente, na confirmação da doação de D. Teresa do Mosteiro de Vimieiro a Cluny. Se tivermos em conta a grande devoção da Rainha pelos cluniacenses e a presença de eclesiásticos do reino de Leão e até de França nesta ocasião, provavelmente como parte da missão de acompanhamento da noiva a Portugal, o casamento em pessoa não deve ter acontecido muito antes. De acordo com José Mattoso, dadas as restrições aos sacramentos na Quaresma, ter-se-ia realizado no dia de Páscoa (31 de Março), mas infelizmente essa hipótese é improvável porque essa proibição eclesiástica se prolongava até à Oitava de Páscoa. Assim sendo, a altura mais provável para o casamento seria o Dia de Pentecostes, 19 de Maio, ou uma data próxima. Esse casamento seria consumado pouco depois, pois a 5 de Março de 1147 já nascia o Infante Henrique. Se atendermos ao facto de mais frequentemente se atrasar a consumação do casamento pelo menos até aos 14-16 anos, se não mesmo até mais tarde, como no caso de Afonso III e de Beatriz de Castela um século depois, torna-se bem plausível uma idade mais avançada para Matilde.
Infelizmente, sabe-se muito pouco acerca da vida desta consorte. A sua infância, como a da maior parte das personalidades da época, é desconhecida e a presença na documentação do pai é muito escassa. Tal como muitas outras figuras contemporâneas, praticamente não temos representações nenhumas da consorte, a não ser uma cópia de sinais rodados com representações do casal régio copiado por Pedro Pais Ribeiro a partir de um documento perdido do cartório do Mosteiro de Pombeiro, do qual é arriscado tirar qualquer conclusão. Contudo, a “Vita Theotonii” pode ajudar-nos a saber algumas coisas sobre Matilde.
A história de como a consorte régia de Afonso Henriques não teria entrado no claustro do Mosteiro de Santa Cruz, apesar dos seus desejos, por ordens de São Teotónio – que preferia aguentar a sua “irritação destemperada” a perder a disciplina do seu cenóbio – pode ser meramente uma história com o fim de demonstrar como o biografado defendia as liberdades eclesiásticas do seu mosteiro.
Mas há uma outra história muito mais reveladora. De acordo com a hagiografia, S. Teotónio teria, a pedido de nobres ligados à corte régia, benzido a Rainha e feito o sinal da cruz aquando de um parto complicado, o que provocou imediatamente o fim do trabalho de parto da rainha.
Hagiografia aparte, esta história pode ser parcialmente corroborada pelo relato de Frei Nicolau de Santa Maria, que afirmou que o Mosteiro de Santa Marinha da Costa seria uma fundação da Rainha em agradecimento pela acção pela sua sobrevivência a um parto complicado. Embora Sancho I só mencionasse o pai como protector deste mosteiro e a primeira menção à refundação deste mosteiro seja de 1173, esta informação tardia pode ser plausível na medida em que Stª. Marinha é padroeira das mulheres grávidas… Não obstante esta dificuldade em parir, são-lhe conhecidos vários filhos nascidos entre 1147 e 1159: Henrique (1147-1155), Martinho (o futuro Sancho I, 1154-1211), Urraca (1155- após 1202), Matilde/Mafalda/Teresa (tradicionalmente 2 infantas separadas, mas mais provavelmente nomes diferentes da condessa da Flandres; 1155-1219), João (m. 1163?) e Sancha (1158-1159/1162?). Portanto, 6 filhos em 12 anos de casamento.
Ainda associada a Matilde estão várias obras de caridade no Centro e Norte de Portugal, reforçando a imagem de uma mulher piedosa: para além da supramencionada refundação do Mosteiro de Santa Marinha da Costa, apareceu ainda associada à construção de pontes e albergarias para peregrinos, nomeadamente no Marco de Canaveses e em Lamego. Há ainda várias igrejas associadas a esta figura, embora na sua esmagadora maioria haja uma confusão entre Matilde de Sabóia e a sua neta, a rainha Beata Mafalda, essa sim uma benfeitora importantíssima nas regiões de Arouca ou da diocese do Porto, por exemplo. Mesmo assim, a ligação de alguns locais é menos dúbia. De acordo com as Inquirições de 1258, a rainha teria beneficiado a igreja de Santa Maria de Canas (perto de Tondela) com três casais reguengos e uma herdade de cavalaria, como compensação por alguns homens seus e do rei terem cortado a mão ao padre (!). De igual forma, de acordo com uma inscrição desaparecida, supostamente datada de 1152, a igreja de Santa Maria de Abade de Neiva, no actual concelho de Barcelos, beneficiou da protecção da consorte.
Se a vida desta rainha é em boa parte misteriosa, a sua morte não é menos enigmática. Por um lado, Walter Map, na sua obra “De Nuger Curialis”, uma autêntica colecção de coscuvilhices sobre as grandes cortes europeias do século XII, contou que uma rainha de Portugal fora acusada injustamente de adultério e assassinada quando perto do parto pelo marido raivoso, o rei de Portugal (ainda vivo segundo o cortesão inglês), a socos e pontapés, devido a uma intriga dos seus nobres. Tendo em conta que Walter Map escreveu pouco depois de 1180 e as imagens de Afonso Henriques como um homem impulsivo e colérico transmitidas pelos nobiliários portugueses nos séculos XIII-XIV, seria tentador identificar a rainha com Matilde ou até pensar que as relações entre o casal seriam tudo menos amigáveis. Contudo, não temos provas nenhumas de tal acontecimento nem de nenhuma falta de respeito de Afonso Henriques pela sua mulher nos documentos da cúria régia. Ao invés, pensa-se que Matilde de Sabóia terá morrido a 3 de Dezembro de 1158 depois de dar à luz Sancha Afonso, ainda muito jovem, como consequência das suas habituais dificuldades de parto. Por fim, sabe-se que foi enterrada em Santa Cruz de Coimbra.
Esquecida muito rapidamente pelas fontes desde finais do século XII, talvez devido ao reduzido tempo como rainha de Portugal e a parcimónia das fontes da época, viu-se ainda mais na sombra com o protagonismo da neta Mafalda e a construção da lenda de Afonso Henriques. No fim de contas, ficamos sempre com a sensação de que Matilde aparece nas fontes praticamente só na qualidade de consorte do monarca português, perdida entre as brumas da memória. Não deixa, contudo, igualmente de ser fascinante no pouquíssimo que se sabe actualmente dela e das suas ligações familiares. E, de certo modo, Matilde acaba por encarnar na construção da sua imagem representações masculinas da época de mulheres da nobreza contraditórias, desde a visão estereotipada de uma mulher irada (e quase perversa) a tentar perturbar a disciplina do cenóbio de Santa Cruz de Coimbra até à de uma mulher “firmada na fé”, passando também pela óbvia secundarização num mundo dominado por homens.
Fontes
Marques, Maria Alegria Fernanda (2012). “Mafalda de Mouriana (1133?-1158)”; in Rodrigues, Ana Maria S. A.; Sá, Isabel dos Guimarães; Silva, Manuela Santos, “Rainhas de Portugal, vol. II, “As Primeiras Rainhas”. Círculo de Leitores, Lisboa, pp. 13-104.
Mattoso, José (2007). “A rainha” in “D. Afonso Henriques”. Temas & Debates, pp. 217-227.
Nascimento, Aires Augusto do (2015). “Vida de São Teotónio”. Edições Colibri, Lisboa, pp. 138-140.
Imagens
0) Representação de Afonso Henriques e Matilde de Sabóia num sinal de selo rodado de um documento do cartório do Mosteiro de Pombeiro (1 de Novembro de 1147), copiado por Pedro Pais Ribeiro. Infelizmente, o original perdeu-se.
(Reprodução retirada da biografia da rainha por Maria Alegria Fernanda Marques, citada na bibliografia).
1) Representação de Matilde de Sabóia na imaginação renascentista de António de Holanda na “Genealogia dos Reis de Portugal” (1530-1534).
2) Iluminura de Pedro, o Venerável, abade de Cluny, do século XIII. Esta figura importantíssima da Igreja Católica no século XII foi provavelmente um dos intermediários do casamento de Afonso I de Portugal com Matilde de Mouriana em 1145-1146.
3) O claustro de Santa Cruz de Coimbra, onde Matilde teria tentado entrar de acordo com a “Vita” de S. Teotónio. O claustro actual é já da reforma manuelina no século XVI.
4) Igreja de Santa Maria de Abade de Neiva, no concelho de Barcelos. De acordo com uma inscrição desaparecida datada de 1152, Matilde seria uma protectora desta igreja.
Obs: Este texto foi previamente publicado no blogue Repensando a Idade Média, em 23-12-2018, sob o título ‘Matilde de Sabóia, Rainha de Portugal (?- 1158)’.
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