Observatório de Cinema | Sjöström no 20.º aniversário do Cineclube de Joane

 

 

Um plano consumido a partir do seu núcleo, uma cópia de pelicula que rompe e que deflagra no ecrã, a fase deluxe de Hitchcock, de Vertigo e Psico, descerrou um dos eixos estratégicos das nossas escolhas – estávamos ainda nos anos 90, na vila de Joane – a história do Cinema, do persistente vai e vem da memória. Pela tela passariam autores menos consensuais, como o cristão Ferrara ou o incómodo Fassbinder, em duas rubricas – A Noite dos Realizadores e Já Não Há Cinéfilos?!, onde se cruzaram o João de Deus de César Monteiro e o Charlot de Chaplin, o romântico Herzog e Varda em vários formatos, Billy Wilder, o mestre do disfarce e as imitações da vida de Sirk, Cassavettes e o magnifico errático Welles, a nova vaga de Rohmer e o Antoine Doinel de Truffaut, os samurais de Kurosawa, o povo e a aristocracia de Visconti, ou o renegado Losey… até às reposições dos gigantes Bergman, Rossellini, Satyajit Ray e Ozu

Assinalaremos, então, 20 anos de actividade ininterrupta, com outro protagonista da historia do Cinema: Victor Sjöström e a apoteose de The Wind, com orla sonora do piano de Filipe Raposo.

O pioneiro sueco teve uma biografia peculiar, com apenas um ano a família emigrou para a América, para se instalar em Brooklyn, para meia dúzia de anos depois regressar à Suécia, após a morte da mãe. Ainda adolescente ingressou como actor numa companhia de teatro, que haveria de constituir uma influência decisiva, na sua predileção pelo realismo e pelo seu reverso, um lirismo sustentado em adaptações literárias, como a de O Carro Fantasma (1921), a partir da obra da nobel Selma Lagerlöf, que haveria de servir de passaporte para o regresso à América, para se instalar em Hollywood. Uma montagem sofisticada, flashbacks que se encadeiam, imagens fantasmáticas e da ordem do simbólico que se sobrepõem, narrativa de sonho e de vicio, de amor e compaixão, que Bergman haveria de venerar, como quem arroga um legado, em Morangos Silvestres (1957): Sjöström, um professor envelhecido e o vislumbre, um sonho de morte, de um caixão que pende de uma carroça.

Na sua chegada a Hollywood, Sjöström, agora Seastrom, assina a primeira produção da MGM, He Who Gets Slapped (1924), um êxito comercial, com uma interpretação notável de Lon Chaney, o homem de mil caras. Um cientista é traído pela mulher e pelo benfeitor, um barão que apresenta na academia as descobertas de Chaney como sendo suas. Perante a revolta de Chaney, a plateia responde com aplausos vigorosos, intercalados por um estalo desferido pelo barão no rosto do homem, a que se sucedem risadas em bloco da plateia de académicos. Este acontecimento produzirá uma transfiguração em Chaney, com o clique adicional conferido pelo encontro com a mulher no regresso a casa que, após a narração dos acontecimentos, o esbofeteia e o apelida de palhaço. Elipse para um pequeno circo, com um número muito popular: o palhaço Chaney é esbofeteado continuamente por outros sessenta palhaços, replicando a plateia dos académicos, o que gera uma miscelânea sonora, um paroxismo de chapadas, gargalhadas e ovações da assistência. O número termina com o coração do palhaço a ser arrancado: a farsa torna-se cruel, de ímpeto trágico.

The Wind (1928), então, obra máxima quando o período mudo começava a fechar-se, onde assomaram as mais apuradas e complexas formas, que o cinema dos anos seguintes, preocupado com o som e os sincronismos, teria dificuldade em alcançar. Lilian Gish, a musa de Griffith, viaja de Virgínia para um rancho de Sweet Water no Texas, rebaptizado de A Terra dos Ventos, a obsessão americana pelo mito, pelo povoamento de territórios agrestes. Nessa viajem inicial, o vento varre a areia contra as janelas do comboio, como uma teia que cerca desde logo a protagonista, o vocabulário de Sjöström assente numa sobreposição de efeitos de luz e de sombras, portentosa sugestão que o cineasta nunca afrouxa. Chegada ao inóspito povoado, Gish é invejada por uns, a sua beleza é disputada por outros, levada ao engano por um homem mais velho: é como se o vento espalhasse a rudeza e a crueldade entre aqueles homens e mulheres, colhendo a pureza, corrompendo o anjo da américa, empurrando-a para a tragédia. Aqui, podemos tender para emparelhar The Wind com o realismo feroz de Greed (1924) de Stroheim, com a natureza árida a manifestar-se como uma extensão do ímpeto humano, até que do céu carregado começam a agitar-se cabeças de cavalos brancos… Antes da resolução da intriga, vemos que a areia é usada para remover a sujidade da loiça, um efeito benévolo, que afirma os paradoxos do humano: Gish de aspecto delicado e frágil, sempre no olho do furacão e com um pé na demência, vai revelar forças ocultas e tomar conta do seu destino.

Os números redondos pedem celebração e renovação de utopias, a valorização sociológica da exibição de cinema em espaço público, as imagens em movimento como motor de circulação de memórias entre gerações: ecrãs há muitos, não há Cinema como na sala escura, com espectadores.

 

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