Kaúlza de Arriaga esteve no centro de um acontecimento ocorrido em dezembro de 1973 que teve profundas consequências para a evolução de Portugal, mas que parece estar esquecido no baú da História.
Há cinquenta anos, houve um movimento conspiratório conotado com a ala mais direitista do Estado Novo, no sentido de tomar o poder.
Este movimento, liderado pelo refereido general Kaúlza de Arriaga, tinha o envolvimento dos generais Silvino Silvério Marques, Joaquim de Luz Cunha e Henrique Troni e de outros setores da sociedade portuguesa de então.
O Marcelismo: da Primavera ao Inverno
Para elucidar os acontecimentos de dezembro de 1973, é da maior relevância compreender a trajetória da evolução política dos anos finais do regime do Estado Novo.
Em 27 de setembro de 1968, Marcello Caetano tomou posse como Presidente do Conselho de Ministros, ato com o qual tinha sido consumado a substituição de António de Oliveira Salazar que, semanas antes, sofrera uma queda no forte de Santo António do Estoril, não tendo recuperado das lesões sofridas.
O Presidente da República, o almirante Américo Tomás, ficou assim colocado no centro de uma das mais significativas decisões políticas do século XX em Portugal.
Por força do modelo político do Estado Novo, Américo Tomás foi chamado a decidir sobre o assunto de importância crucial para o regime e que teria um impacto profundo na evolução subsequente do país.
De acordo com a Constituição de 1933, o Governo, chefiado pelo Presidente do Conselho de Ministros, era exclusivamente responsável perante o Presidente da República. O Governo não era politicamente responsável perante a Assembleia Nacional, formalmente o órgão legislativo por excelência, eleita por sufrágio direto, coadjuvada pela Câmara Corporativa, constituída por representantes das autarquias locais e dos interesses sociais, com competências consultivas. Na prática, o Governo e o Presidente do Conselho de Ministros em particular assumiram uma posição cada vez mais hegemónica no sistema.
No presente artigo, não se pretende elucidar se a governação de Marcelo Caetano foi ou não foi salazarismo sem Salazar, nem se Caetano falhou ou não falhou uma possível transição política do regime autocrático do Estado Novo para a democracia.
Em 1968, o bloco político do Estado Novo estava longe de ser monolítico. Como resultado das transformações profundas na sociedade portuguesa e no mundo em geral, existia um número crescente de correntes que consideravam que a Segunda República só poderia manter-se através de reformas inovadoras e ousadas, de índole liberalizante e inclusive democratizante.
Mas existia uma ala mais conservadora, que enfatizava o imobilismo como a única defesa possível do regime, a qual tinha um peso forte nos escalões superiores das Forças Armadas e nas instituições políticas do regime. O Presidente da República, Américo Tomás, era precisamente uma das individualidades ligadas a essa ala.
Sob a lema evolução na continuidade, o Governo de Marcello Caetano promoveu um conjunto de reformas ambiciosas, nos domínios do ensino, da previdência social, da saúde e do desenvolvimento económico, mas tímidas noutras áreas, designadamente nas vertentes da censura e da polícia política, que foram pouco mais do que semânticas.
Paralelamente, houve um crescimento particularmente significativo da economia portuguesa. De 1968 a 1973, houve um crescimento de 34,74% no PIB, o que correspondeu a uma média anual de 5,79%. O ciclo virtuoso de crescimento económico foi afetado pelo choque petrolífero de 1973, resultado do embargo deliberado dos países árabes a Portugal, por causa do apoio português a Israel, no âmbito da guerra do Yom Kippur.
O projeto de uma evolução do regime, gradual, controlada e que excluísse a via revolucionária era equacionado por um bloco diversificado e heterogéneo, que abrangia as correntes reformistas do marcelismo, fações dentro das Forças Armadas ligadas aos generais Francisco da Costa Gomes e António de Spínola, a Ala Liberal presente na Assembleia Nacional, meios empresariais que viam o futuro e geopolítica e económico de Portugal ligado à Europa, contando inclusivamente com a colaboração ou a expetativa benigna de correntes moderadas da oposição democrática, entre as quais a Ação Socialista Portuguesa, embrião do Partido Socialista.
Na transição entre as décadas de 1960 e 1970, Caetano, Spínola e Costa Gomes estavam mais unidos nas suas opções políticas do que separados por elas.
Contudo, a partir do início da década de 1970, as expetativas em relação à liberalização do regime ficaram crescentemente frustradas. Existiram duas grandes oportunidades perdidas:
– A revisão da Constituição de 1933, realizada em 1971, que ficou aquém das expetativas em matérias estruturantes como os direitos fundamentais dos cidadãos, o reforço dos poderes legislativos e fiscalizadores da Assembleia Nacional, o sistema de eleição presidencial ou a autonomia dos territórios ultramarinos;
– A reeleição, em 1972, de Américo Tomás como Presidente da República pelo colégio eleitoral restrito estabelecido pela Constituição, que foi considerada como um triunfo da ala mais conservadora e imobilista do regime, os denominados ultras.
A fase marcelista do Estado Novo foi caraterizada pelo alargamento da dinâmica política, social e cultural adversa ao regime em meios sociais muito diversificados, nomeadamente os trabalhadores e os estudantes. Esta dinâmica foi muito evidente em instituições do ensino secundário e superior, sindicatos, associações, cooperativas e empresas. Entretanto, as diversas correntes da oposição foram reforçando as suas fileiras, no sentido da sua diversificação social, profissional e geracional.
Por conseguinte, houve um aumento da contestação ao regime autocrático e à política de guerra nos territórios da Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
O aumento da contestação político-social e a consolidação do poder dos setores mais conservadores do Estado Novo determinaram a reativação dos mecanismos repressivos e o aumento das restrições à atuação das diversas correntes da oposição.
A contestação nas Forças Armadas
Entretanto, o aprofundamento da contestação nas Forças Armadas agudizou a agonia do regime. A maioria dos oficiais intermédios tinha uma visão política completamente diferente da generalidade dos comandos superiores.
Em setembro de 1973, formou-se o movimento dos capitães, o embrião do futuro Movimento das Forças Armadas, formado por oficiais intermédios e subalternos. O movimento começou no Exército, mas alargou-se rapidamente à Marinha e à Força Aérea.
O acontecimento que contribuiu decisivamente para a formação do movimento foi o Decreto-Lei n.º 353/73, de 13 de julho, sobre a integração dos oficiais milicianos no quadro permanente das Forças Armadas, que gerou um descontentamento amplo entre os oficiais profissionais do quadro permanente.
Constituído inicialmente por reivindicações de cariz profissional, o movimento dos oficiais transformou-se rapidamente numa plataforma de clara contestação política.
Existiam três opções políticas dentro do movimento, cada uma com os seus adeptos:
– A primeira opção, que defendia a conquista do poder por via de um golpe de estado revolucionário, para, com uma Junta Militar, criar as condições que possibilitassem a democratização do país;
– A segunda opção, que preconizava a legitimação do Governo, através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelas Forças Armadas, seguindo-se um referendo sobre a questão do Ultramar;
– A terceira opção, que defendia a utilização de reivindicações exclusivamente militares, como forma de alcançar o prestígio das Forças Armadas e de pressão sobre o Governo, no sentido da realização de eleições livres e da consulta ao país sobre a questão ultramarina.
Inicialmente, a maioria do movimento estava inclinada para a terceira opção em relação à primeira opção, como aconteceu na resolução aprovada na reunião de Óbidos, em 1 de dezembro de 1973.
Essa reunião foi especialmente importante. Para além da resolução atrás referida, foi deliberado outros assuntos relevantes: a criação de Movimento dos Oficiais das Forças Armadas; a nova composição para a Comissão Coordenadora, de 19 elementos; a escolha de chefes miliares prestigiados (sendo o general Costa Gomes o mais votado, seguido do general António de Spínola); o alargamento do movimento à Marinha e à Força Aérea.
Kaúlza de Arriaga em ação
Foi precisamente no final de 1973 que enviados do general Kaúlza de Arriaga, entre os quais o coronel Frade Júnior, contactaram com representantes do movimento, tendo como objetivo promover a sua adesão a um golpe militar de direita radical.
No âmbito dos contactos, tornou-se evidente que o objetivo do golpe era afastar Marcello Caetano da presidência do Conselho de Ministros e eliminar os generais Francisco da Costa Gomes e António de Spínola, então Chefe e Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.
Não era claro que a eliminação fosse o afastamento dos visados ou a eliminação física.
Kaúlza de Arriaga, que tinha sido comandante-chefe das forças armadas portuguesas em Moçambique, tinha-se incompatibilizado com Caetano.
Kaúlza estava ligado aos ultras do Estado Novo, a extrema-direita que pretendia contestar qualquer política de abertura do regime, quer no âmbito da questão ultramarina, quer no âmbito da política interna.
O general tornou-se o chefe da ala militar dessa corrente e alimentava a ambição de suceder a Marcello Caetano.
Para além da influência nas Forças Armadas, Kaúlza de Arriaga tinha uma grande proximidade com o Presidente da República, o almirante Américo Tomás.
Na sequência dos contactos dos enviados de Kaúlza de Arriaga, a liderança do movimento dos oficiais das Forças Armadas ficou em estado de alerta e contactou os generais Francisco da Costa Gomes e António de Spínola.
Em 17 de dezembro de 1973, o major Carlos Fabião, o chefe do um curso para oficiais superiores no Instituto de Altos Estudos Militares, denunciou publicamente o golpe de extrema-direita, preparado por Kaúlza de Arriaga (apoiado ainda por Silvino Silvério Marques, Luz Cunha e Henrique Troni), com a finalidade de eliminar Francisco da Costa Gomes e António de Spínola.
Entretanto, as unidades militares foram alertadas para não tomarem parte em qualquer tentativa de golpe da ultradireita.
Costa Gomes optou por denunciar o assunto a Joaquim da Silva Cunha, Ministro da Defesa Nacional, que também foi abordado por Spínola.
Os planos de Kaúlza de Arriaga foram confirmadas pela embaixada norte-americana em Lisboa, que enviou um comunicado, em formato de telegrama, para Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA:
O comunicado, com o título de “Coup plot failed in Portugal” é datado de 28 de dezembro de 1973. Relatava que tinha sido desmantelado um plano de um golpe militar liderado por Kaúlza de Arriaga para derrubar Caetano. Entre os elementos civis ligados ao movimento, estariam Adriano Moreira e Franco Nogueira.
O documento alegava que a principal razão para a ação golpista seria o facto do Governo de Marcello Caetano estar a preparar a autodeterminação dos territórios ultramarinos em Africa.
A embaixada norte-americana referia que Costa Gomes e Spínola eram os responsáveis pelo falhanço do plano do golpe ao reportarem-no a Caetano e ao chamarem a atenção para a oposição dentro das fileiras das Forçar Armadas em relação aos planos de Kaúlza e da ultradireita.
A BBC e outros meios comunicacionais de referência internacional deram destaque relevante ao movimento conducente ao golpe de estado.
Na sequência dos acontecimentos de dezembro de 1973, a própria PIDE/DGS recebeu orientações do Governo para reforçar a oposição civil e militar de ultradireita.
Existem evidências de que esta ameaça da extrema-direita terá influenciado o posicionamento de Caetano e da sua ala mais próxima em relação ao movimento dos oficiais.
Embora tivesse fortes reservas à aplicabilidade da democracia pluralista a Portugal, Marcello Caetano era o tipo de doutrinário conservador liberal, defensor da legalidade e adversário de violências. Conhecedor das realidades do seu tempo, Caetano, muito provavelmente, tinha presente as implicações de um endurecimento do regime no sentido ainda mais autocrático e repressivo.
Na época, eram bem conhecidos os casos de Chile, dominado pelo regime militar do general Augusto Pinochet, e da Grécia, onde a ditadura militar estava num processo de endurecimento repressivo.
Além disso, existem informações de que terá havido contactos entre o movimento dos oficiais das Forças Armadas e o Governo de Marcello Caetano, através do seu ajudante-de-campo, o comandante Adriano Coutinho Lanhoso.
Teria sido preferível uma transição pactuada para a democracia pluralista em Portugal?
Numa visão contrafactual da História, pode-se refletir se teria sido preferível uma transição pactuada para a democracia pluralista em Portugal. Esta transição poderia ter possibilitado a manutenção do ritmo de crescimento económico sem as derivas ilusoriamente revolucionárias do período revolucionário em curso de 1974-1975 (PREC), bem como um processo de solução política justa e duradoura da questão ultramarina, no respeito pelos princípios da autodeterminação e da convivência pacífica e harmoniosa entre os diversos grupos étnicos, religiosos e culturais.
Em todo o caso, as comemorações do 50.º aniversário da revolução de 25 de abril de 1974 podem ser um incentivo para aprofundar a investigação cada vez mais ampla, rigorosa e multidisciplinar sobre a história contemporânea de Portugal, incluindo as suas vertentes menos conhecidas.
Imagens: KA