O Surf foi a coisa mais importante que alguma vez me aconteceu na vida.
Várias vezes tento definir-me a mim próprio, tento perceber quem sou, o que sou para mim e para os outros que me vêem passar de bicicleta na marginal ou que me encontram ao por do sol a beber uma cerveja encostado ao carro a olhar para o mar, para os desconhecidos que se cruzam na hora de ponta e me medem de relance antes de me perderem para sempre na multidão. Quem sou? O que é que me define? Qual é a característica que mais moldou a minha vida?
Continuo a responder a tudo isto com a mesma resposta. O surf foi o meu segundo parto: diz-se “dar à luz”, eu descobri no surf a luz que orienta a minha vida.
Os anos passam, o corpo envelhece, a forma física já não é a mesma, as costas doem, a ciática acusa, as expectativas ajustam-se, as “performances” ajeitam-se, mas uma coisa permanece imutável, sagrada e omnipresente como um deus: o surf.
O que é o surf? Cada vez mais é “estar no mar”, “entrar numa onda”. Trata-se da alegria mais contagiosa, do sistema de valores mais simples e coerente que conheço. Não sei ser outra coisa antes de ser um surfista, tudo o resto vem depois, ou pelo menos não é bastante abrangente, não é demasiado completo como definição.
O surf fez-me um participante deste misterioso ritual da Natureza que é uma onda a quebrar, um ritual que se desenrola há milhões de anos e que continuará a desenrolar-se muito tempo depois da espécie humana ter completado a sua existência neste planeta. Há uma religião antiga, um misticismo pagão no acto de mergulhar no mar, de atravessar uma onda.
Várias vezes tive a sorte de me sentir leve e espiritual na minha vida. Mas as experiências mais intensas, mais leves, mais espirituais que eu atravessei passaram-se dentro de água, a fazer surf. Esta é a única benção que aceito, a única religião que professo, a única forma de redenção que conheço. Se existe deus, encontra-se de certeza dentro do movimento duma onda.
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Obs: publicação original em “No Princípio Estava o Mar”, Clube do Autor, 2005
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