Vês ali o arco sagrado da antropologia portuguesa,
De Vilarinho das Furnas até rio d’ Onor. De Dias,
Margot, Galhano e do belo Benjamim.
O volfrâmio queimando a pele e as mucosas profundas
Alimentando o surrobeco,
a caxemira e a chita, as blusas de filó.
A aldeia afundando no dilúvio incompreendido.
Onde as pagelas de Santa Joaninha atraíam o olhar
Das crianças e o uso de anáforas anunciava a santa
Catalina de Siena, a santinha de Averboim exibindo
As chagas de Cristo (olho no barro, olho na cruz dos outros,
Nas chagas dos pés). De uma proposta irrecusável
Que pairou na serra Amarela saiu o indizível
“Dizei-me o que desejais, e eu o alcançarei”,
Ou como se ouve por terras de Torre de Moncorvo:
Pode ser verdade, mas nunca ter acontecido!
Talvez um dia possa fechar os olhos e deixar verdadeiramente de o ser:
O parecer do bispo que se foda, será, decerto,
No amarelo incandescente dos tojais que farei leito.
O que nos interessa é a ligeira escarificação que nos faz gozar os espinhos.
É tão intenso, repito, quanto o amarelo incandescente dos tojais em flor.
No vidoeiro lerei a biografia de Santa Rita de Cássia
E da beata Lúcia Brocadelli de Marni, e levitarei
Bem alto com a beleza inútil de Maria de Leon Belli Delgado
E os anagramas esotéricos de Matilde Urback. Eu que
Vibrei com a separação dos cinco Violinos, com Jesus Correia e o seu hóquei divino.
E com Matateu na idade de Matusalém.
O meu velho relógio Certina recusava-se a continuar
E a não conhecer o nome das árvores do Barroso.
Quem não conhece o nome das plantas da província?
Negrilhos, vidoeiros, carvalhos, ouvia-se, agora,
O barulho do mar. Criaram narrativas irreais que se
Ajustassem a personagens reais: um ordálio incontornável:
Se fodes és culpado, se não o fazes culpado és.
O riso dos agentes da polícia política ao chicotear,
Banalizando o mal, os carregadores de pedras, o olhar
No chão dos cúmplices, o olhar em frente dos castigados.
Como se “a partir de dado momento todas as pessoas do mundo
Pudessem ser iguais em desumanidade”. Uma possibilidade
Que rompe quando a dor ultrapassa uma certa intensidade
E se deixa de fazer sentir. Quando a simpatia e o ódio
Se misturam e o resultado da fusão é um caldo
Pior do que a piedade divina.
(e assim, acabarei a minha experiência de mendigo em Bilbau:
Arrumarei a vida em caixotes de cartão e fechá-los-ei
Numa arrecadação sem janelas e sem luz. Esquecida!)
Bilbau, 20/2/2023
(a partir de umas notas que tirei durante da minha apresentação do livro de José Carlos Barros, As Pessoas Invisíveis, na Casa Álvaro de Campos, em Tavira)
Obs: texto previamente publicado na página facebook de Vítor Cardeira, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
Imagem: Anja Bauermann/Unsplash