O alimento da Igreja sempre foi o silêncio dos inocentes. Misturando a fé, como expressão de esperança num além radioso, com o medo de um castigo transcendente, divino, muito acima do qualquer castigo humano, a Igreja foi levando a água ao seu moinho, moendo o juízo e o corpo a quem nela se filiava. Ainda é assim, pois a Igreja não é capaz de ser outra coisa que não um moinho triturador, que se baba de prazer quando percebe que o medo de que se alimenta está a resultar.
Certamente que esta regra se aplica a todas as religiões, mas há singularidades que as marcam e distinguem. A pedofilia tornou-se uma marca maior da Igreja católica, não porque não exista noutras igrejas e, na verdade, em todas as instituições e estruturas sociais, desde a escola à família, mas por revelar ali um carácter sistémico. Ser sistémico não significa que seja esse o dia-a-dia da instituição nem que não haja quem a ele escape. Significa que se trata de uma prática que a própria instituição, pela forma como se organiza e prepara os seus agentes, cria condições para que exista e prolifere.
A singularidade do celibato na Igreja Católica
O celibato é uma singularidade importante da Igreja Católica, resultado de uma decisão eclesiástica que não decorre de nenhum dogma ou princípio irrevogável – passaram mais de mil anos desde que Cristo por aí andou até que alguém tivesse essa brilhante ideia. O celibato católico não é apenas a interdição de casar, é muito mais que isso. É a renúncia ao corpo em nome de uma insubstancialidade a que chamam espírito ou alma, nada que se veja ou nos sirva para apaziguar as necessidades que o corpo tem. Basta ler quem experimentou as «delícias» do Seminário, como Virgílio Ferreira, para perceber a violência das regras que proibiam qualquer toque, inclusive no próprio corpo, ou qualquer aproximação, mesmo que deserotizada. Esperaria a Igreja que os homens que forma e do seu ventre saem como padres se colocassem acima do humano? Não é isso que sucede, como amplamente se prova.
Veste eclesiástica desumaniza e isola
Claro que não faz sentido associar celibato e pedofilia. Há pedófilos casados e à esmagadora maioria dos celibatários repugna, por certo, semelhante prática. O que digo é que a forma de celibato que a Igreja impõe faz parte de uma cultura institucional que gera homens diminuídos, marcados pela falta de algo que faz de nós humanos: o outro como parte de nós, o calor da nossa pele misturado com o calor alheio, nem que seja num abraço fraterno. A veste eclesiástica é essa barreira que desumaniza e isola, ao mesmo tempo que serve para esconder um desejo que, por vezes, se manifesta de uma forma não apenas desadequada à doutrina mas também criminosa.
Hipocrisia irremovível
No rescaldo do Relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa tenho visto surgir uma estranha explicação: homens com perfil de pedófilos procurariam a carreira eclesiástica por entenderem que ali tinha um bom porto de abrigo. Podiam dedicar-se às suas perversões numa instituição tolerante, correndo o risco máximo de ter que trocar de paróquia uma vez ou outra. Não há explicação que melhor se adeque aos interesses de uma Igreja ferida e que procura arredar de si a culpa (essa mesma culpa que de forma tão expedita aponta aos outros). Acreditando nela, o mal não estaria na Igreja mas nos «homens maus» que se servem da sua abertura ao mundo para ali se acoitarem. Tudo se resolveria, portanto, impedindo que mais «homens maus» fossem ordenados, o que talvez pudesse ser feito, sei lá, contratando uma empresa de recrutamento externo! Sempre era moderno e mostrava que a Igreja está update.
Não, o problema está mesmo dentro da Igreja, nas catacumbas mais profundas da instituição. É um problema cultural, no sentido um pouco espúrio, é certo, de «cultura de empresa». Talvez não seja possível vencer essa tão secular cultura, mas se assim for a Igreja definhará lentamente, apenas mantendo o poder que os poderosos lhe quiserem atribuir. A Igreja católica fez da hipocrisia a sua pele, e é sempre difícil mudar de pele – a não que se seja serpente, mas essa representa o pecado e a Igreja não gosta dela. A hipocrisia está na pele como uma tatuagem irremovível, manifesta-se no discurso e nas práticas, seja quando se coloca ao lado dos pobres exibindo as infinitas riquezas que acumulou, seja quando prega para fora uma moral a que fecha a porta, fazendo do que se passa «lá dentro», em igrejas, capelas, confessionários, casas paroquiais, um assunto que só concerne e eles próprios e ao Deus com que falam, sem sequer perceberem que esse Deus há muito lhes virou as costas por pudor e vergonha.
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Obs: texto previamente publicado na página facebook de Luís Cunha, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
Imagem: Chad Greiter / Unsplash