Quando o ‘brincador de palavras‘ Álvaro Magalhães percebeu que a sua miopia o impossibilitaria de ser um bom guarda-redes, o futuro escritor trocou o jogo de futebol pelo da literatura. Desde então, publicou mais de uma centena de livros, o primeiro dentre eles em 1982, repartindo-se entre a poesia, os contos, a ficção e o teatro. Se a maioria dentre eles se destinam a crianças e jovens, a sua obra é mais vasta e abrange todas as idades. A sua obra caracteriza-se pela originalidade e invenção, quer na escolha dos temas quer no seu tratamento.
Nascido no Porto, em 1951, Álvaro Magalhães foi várias vezes premiado pela Associação Portuguesa de Escritores e pelo Ministério da Cultura. Em 2002, O limpa-palavras e outros poemas foi integrado na Honour List do Prémio Hans Christian Andersen, em 2004, Hipopóptimos – Uma história de amor foi distinguido com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian e, em 2014, O Senhor Pina recebeu o prémio Autores, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores ao melhor livro infantojuvenil publicado nesse ano.
Várias das suas publicações integram o Plano Nacional de Leitura e constam da lista e obras das Aprendizagens Essenciais de Português. Parte da sua obra encontra-se também publicada no Brasil, Espanha, França, Itália e até mesmo na Coreia do Sul.
Conhecer um ‘brincador de palavras’
Beatriz Sertório: Entre o futebol, que praticou em criança na posição de guarda-redes, e a escrita, acabou por escolher a escrita como carreira. Numa entrevista justificou esta decisão ao explicar que a carreira de um futebolista evolui de forma inversa à de um escritor – enquanto a carreira de um futebolista termina cedo, um escritor torna-se melhor com o tempo, tendo mesmo partilhado que acredita que cada vez “joga melhor literatura” Continua a pensar da mesma forma? Orgulha-se mais dos seus livros mais recentes?
Álvaro Magalhães: O tempo dá e tira. É verdade que ele apura qualidades, mas há outras que se perdem. Há coisas que só agora as podia ter feito, depois de quase 40 anos de experiência, mas aquele fulgor inicial, dos primeiros anos e dos primeiros livros, também nunca mais se manifestou.
Beatriz Sertório: Afirmou ter aprendido a lição mais importante da sua vida com o seu primeiro livro, Histórias com muitas letras (1982): a de que um livro para crianças deve também ser apreciado por adultos. Que outras lições importantes aprendeu sobre o seu ofício, desde então?
Álvaro Magalhães: Essa lição que refere foi a mais importante. Aliás, o grande problema da nossa literatura infantil é a escassez de livros desses, que servem a crianças e adultos, enquanto abundam os livros menores, que são só para crianças. Graças a estes últimos é que existe o rótulo de literatura infantil e a fama de esse ser um género menor, quando nós sabemos que não há géneros menores: só livros menores de qualquer género. Pelo contrário, os outros livros, os que agradam a crianças e adultos, embora por diferentes razões, mostram-nos que não há literatura infantil; só há literatura.
Beatriz Sertório: No livro O Senhor Pina (2013) escreveu: “Quando for lido por uma criança é um livro para crianças. Quando for lido por um adulto é um livro para adultos. Os livros não são para, os livros são”. Considera importante que tanto adultos como crianças leiam livros sem se preocuparem com a faixa etária para a qual estes são recomendados?
Álvaro Magalhães: Não foi sempre assim? Há muitos livros que foram dirigido aos mais novos e acabaram por ser, principalmente, fruídos por adultos, como é, por exemplo, o caso dos clássicos como Alice no País das Maravilhas ou Winnie-the-Pooh (Joanica-Puff em português) ou O Principezinho, e há outros que fizeram o percurso inverso. Não vale a pena dar um destino final aos livros, pois eles desviam-se pelo caminho. Eles nunca são para, são de quem os apanhar.
Beatriz Sertório: Voltando a essa frase, quer isso dizer que não existem temas proibidos nos seus livros?
Álvaro Magalhães: Tudo o que faz parte da vida entra nos meus livros. O que acontece é que há alguns temas que, por isto e por aquilo, têm de ser tratados com mais sensibilidade ou com mais humor. Mas todos, sem exceção, são tratáveis literariamente, mesmo tendo em vista os leitores mais novos.
“Tudo o que faz parte da vida entra nos meus livros.”
Beatriz Sertório: Que livros recomendados para um público infanto-juvenil acredita que deviam fazer parte da biblioteca de qualquer um, independentemente da idade?
Álvaro Magalhães: O verbo dever talvez não seja o mais apropriado quando se trata de literatura, que é o território da “liberdade livre”. Aliás, todos nós nos formámos lendo, antes de mais, aquilo que nos diziam que não “devíamos” ler. Mas talvez se possa aplicar aos clássicos, que já venceram a prova do tempo. Falo, por exemplo, de Alice no País das Maravilhas, As aventuras de Pinóquio, Moby Dick, Joanica-Puff, Tom Sawyer, O Principezinho, A Ilha do Tesouro. Porém, o leitor tem o direito de rejeitar até os clássicos e procurar noutros sítios os livros que mais lhe agradam.
Beatriz Sertório: Na sua biblioteca pessoal também coabitam harmoniosamente a literatura dita para adultos com a literatura geralmente destinada a crianças? Que livros tem na sua mesinha de cabeceira neste momento?
Álvaro Magalhães: Na minha biblioteca, sim. Na minha mesinha de cabeceira, aguardando leitura, há só livros para adultos. Agora, estão lá A realidade não é o que parece, de Carlo Rovelli e O infinito num junco, de Irene Vallejo. Também lá está sempre alguma poesia. Neste momento, poesia de Wislawa Szymborska e Manuel António Pina.
Beatriz Sertório: Escreveu o poeta Manoel de Barros que “a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”. Tendo o Álvaro começado por escrever poesia, e só depois iniciado o seu percurso na literatura infanto-juvenil, diria que encontrou nas crianças os seus verdadeiros mestres? Que lições podem os adultos aprender com elas?
Álvaro Magalhães: A liberdade, não tenho a certeza, mas a poesia, sim. As crianças estão mais próximos do ser e da sua essência, pois não estão ainda separadas do mundo, são parte dele. Por isso, acedem naturalmente à poesia, e a mais beleza e a mais duração, ou à fantasia, por exemplo, sem precisarem de ultrapassar os limites impostos pela sua estrutura, como acontece com os adultos. E, sim, também diria que encontrei nas crianças verdadeiros mestres. Com elas tento sempre aprender naturalidade, espontaneidade, sinceridade, a capacidade, espanto, abertura à novidade e à diferença. No fundo, o que os escritores, sobretudo os poetas, querem é recuperar o estado puro do mundo, ou seja, essa capacidade de ver e sentir das primeiras idades, sob a forma de uma segunda inocência. E como escrevem, inventam, criam, isso também faz deles seres em criação: crianças.
Beatriz Sertório: Enquanto escritor, e adulto, continua a conseguir exercitar o seu olhar de criança perante o mundo ou, por mais que tente, só vê “metade de tudo o que existe” [excerto do poema Lembro-me perfeitamente, incluído no livro Poesia-me]?
Álvaro Magalhães: A literatura, principalmente a infanto-juvenil, que mais pratico, exige mesmo esse estado de infância para se estabelecer. George Bataille dizia que a literatura era “a infância finalmente recuperada” e Paul Auster que ela era uma continuação e um substituto das brincadeiras da infância. Não é tarefa fácil, mas vale a pena preservar e cuidar desse naco de infância que soubemos arrecadar e onde, como dizia Eugénio de Andrade, a poesia vem fazer o seu ninho. Quando eu fazia visitas escolares, costumava dizer aos meus jovens leitores que conseguia compreendê-los e comunicar com eles porque tinha uma orelha verde, a esquerda, que nunca amadurecera, e que me ficara dos tempos de menino.
“O grande problema da nossa literatura infantil é a escassez de livros que servem a crianças e adultos.”
Beatriz Sertório: Numa das suas coleções de histórias mais populares, O Estranhão, escreve sobre vários tópicos atuais, como o Facebook, o YouTube, a Netflix ou os Angry Birds. Como se mantém a par dos interesses dos mais novos?
Álvaro Magalhães: Já não tenho filhos pequenos, nem tenho netos, que me poderiam ajudar nessa tarefa, mas, como escrevo para os mais novos, esforço-me por saber como são e como vivem. Porém, para comunicar eficazmente com eles não chega conhecer os seus gostos e hábitos ou usar a sua linguagem, é preciso fazê-lo naturalmente, sem truques ou artifícios frágeis. Não sei explicar isto bem, mas, quando escrevo para eles, é como se cada um desses jovens fosse companheiro da minha própria juventude. Já escrevi para os jovens dos anos 90 (e que têm agora à volta de 40 anos e encontro em todos o lado), para os jovens do ano 2000, do ano 2010, agora escrevo para os de 2020 e que, nalguns casos, são filhos dos que liam a série “Triângulo Jota”, nos anos 90. Não será possível, mas poderia continuar assim eternamente.
Beatriz Sertório: No volume mais recente desta coleção, O Estranhão — Oh, não! Sou um Influenciador Digital, aborda a questão da pressão que as redes sociais exercem nos jovens de hoje. Que efeitos acredita que isto poderá ter a longo prazo?
Álvaro Magalhães: Frequentemente vemos perigosas ameaças no que é apenas novo e, portanto, desconhecido. As redes sociais são um meio, não têm nenhum mal em si; os eventuais malefícios resultam do modo como esse meio é utilizado. O que a história do livro que refere mostra é justamente que um uso obsessivo e desajustado pode tornar-se muito pernicioso, tornando-se necessário partilhar essa atividade com outras, mais tranquilizadoras e fecundas, como a leitura, por exemplo.
Beatriz Sertório: Estarão as inúmeras distrações digitais que os jovens têm ao seu dispor atualmente a ocupar o lugar dos livros?
Álvaro Magalhães: Não podemos impedir os mais jovens de viverem essa imersão, que é própria do seu tempo, mas faremos bem em tentar temperá-la com a leitura. Bill Gates disse: “Os meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever — inclusive a sua própria história”. Vivemos um tempo em que a leitura está a ser empurrada para a margem da vida, mas penso que ela voltará a ocupar um lugar central a qualquer altura, nem que seja como refúgio do excesso de imagens, do excesso de exposição à tela e da cansativa velocidade de tudo. Fala-se há tantos anos da morte da leitura, que só podemos concluir que a notícia dessa morte é um pouco exagerada.
“Vivemos um tempo em que a leitura está a ser empurrada para a margem da vida.”
Beatriz Sertório: Defende que um dos maiores erros cometidos por quem escreve livros com um público infantil em mente é o de tentar ensinar uma lição, tendo partilhado a convicção de que “a literatura não serve para ensinar, para isso servem os manuais”. Pelo contrário, “a literatura serve para desensinar”. Existe espaço no ensino de hoje para a desaprendizagem, a brincadeira e o humor?
Álvaro Magalhães: Infelizmente, não existe. Mesmo a literatura é, na escola, um instrumento da pedagogia e é usada para dar lições ou ensinar gramática, por exemplo; não é usada como literatura, o que já comporta uma pedagogia (a pedagogia do literário). Pior ainda: a escola atual concede muito pouco espaço e tempo às atividades orientadas para a criatividade e a livre expressão. Não cria condições para que os mais novos se possam exprimir, investigando e criando, em vez de permanecerem quietos, receberem e escutarem. Preferimos encharcá-los de informação ou apelar exclusivamente ao seu desenvolvimento cognitivo. E, no entanto, como disse Montaigne, educar uma criança ou um jovem não é como encher um vaso, é como acender uma fogueira.
Obs: entrevista previamente publicada no Blogue Somos Livros, da Bertrand Livreiros, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.
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