Todos os caminhos em aberto. À Bout de Souffle (1969), de Jean-Luc Godard

Todos os caminhos em aberto. À Bout de Souffle (1969), de Jean-Luc Godard

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Jean-Luc Godard, o mais romântico e lírico dos críticos franceses da Cahiers du Cinéma que no final dos anos cinquenta passaram à realização, segundo a opinião de João Bénard da Costa no primeiro dos catálogos da Cinemateca Portuguesa a ele dedicados. Godard, que com À bout de souffle inventou e arrancou no contrabando o mais avant-garde dos petardos da Nouvelle Vague que influenciaria inúmeros realizadores e artistas futuros, de Jim McBride a António-Pedro Vasconcelos, passando por Quentin Tarantino ou Wong Kar-Wai. Que posteriormente teria períodos inclassificáveis numa obra inclassificável e estratosférica, desde a fase maoista até se unir a Jean-Pierre Gorin e outros camaradas no Grupo Dziga Vertov, viajando até aos quatro cantos do mundo, de África ao Brasil, procurando a massa e os ecos de uma revolução política e artística. O JLG que flertou com Hollywood e sonhou com a sua reversão, que daí e de muitos outros lugares fugiu a sete pés para se enfiar em laboratórios revolucionários onde faria as mais impossíveis experiências com imagens e sons, sacando e testando raccords utópicos, revelando-nos ilusões e traçados possíveis, escancarando ou entrevendo as portas de novos mundos e linguagens… o intelectual furioso que à maneira de um James Joyce se apropriou da palavra gasta, da tecnologia, da filosofia, da história, da ciência, para ir muito além do conhecido, forjando limites e fronteiras… Puissance de la parole. O cinema e todas as histórias, inclusive a nossa, no monumental Histoire(s) du cinéma, uma das grandes obras do século XX, só comparável a Picasso ou à conquista da lua. Os emocionantes ensaios de poucos minutos, encomendas, cartas a amigos ou a falecidos, Dans le noir du temps… Tribute to Éric Rohmer. Jean-Luc Godard, que recentemente, depois de há muito usar o vídeo sem legislação alheia, enveredou pelos sinais, ondas, cores e combinações mais esconsas e oblíquas das 3 dimensões. O “eremita” que no passado festival de cinema de Cannes cumpriu a sua conferência de imprensa oficial via video-chamada, para deleite e espanto dos presentes e ausentes. Seriam precisas centenas de folhas biogáficas e hagiografícas para se começar a entender ou a perceber um pouco de toda esta complexidade, mas acreditando que cada um tem o seu Godard e o entende à sua maneira, fica-se por aqui. De resto, a irresistível juventude das suas primeiras obras, das cores às mulheres, são uma das primeiras e mais carinhosas lembranças de qualquer cinéfilo, estudante de cinema ou curioso.

O Acossado foi o último filme do ciclo de cinema Francês ora exibido pelo Lucky Star, ponto de chegada de tanta experimentação e poesia até à sua data e constante inspiração até aos dias de hoje. Muito se escreveu, se estudou e comparou a propósito de À bout de souffle, desse filme breve como uma bala perdida e jovial como os primeiros amores, dedicado à Monogram Pictures que produziu filmes por tuta-e-meia, por exemplo, de Budd Boetticher fornecendo-nos novas, pessoais e humanistas luzes nesta actualidade dominada pela vontade de poder e de falso brilho a qualquer custo. Peça com diferentes velocidades, à imagem das reduções gripadas numa caixa de mudanças faiscante ou aos fôlegos arrítmicos de uma caixa torácica de limites excedidos em vícios ou em demasiada saúde, a oposição natural e trilhante entre um solo distendido por muitos minutos num quarto de casal improvisado e provisório em relação com os sopros e nervos dos fogos-fátuos das fugas, não fazendo sentido tal andamento sem o seu oposto. Gesto artístico e selvático que preferiu o fluxo sanguíneo à encenação e à idealização, a febre ao controle, a intempérie e infiltração da alma e o perigo da perdição ao racional e à lucidez dramatúrgica, pessoal, industrial ou outra para qualquer caso, soltando a máquina de filmar, a montagem e vergando toda a atmosfera para os estremecimentos em causa, sob o ritmo do Jazz em equilíbrios precários numa corda bamba absoluta, arestas cortantes, desarmonias vitais, síncope acossada, como o título português e a perseguição deste mítico filme.

Obviamente, a partitura de Martial Solal é decisiva e descarna ainda mais as ruas, as personagens bamboleantes, os ínvios caminhos, a colagem modernista; é ela o motor do descentramento, o pistão que se solta da engrenagem e que reduz a cinzas a gravidade conhecida no terreno. Tudo isto, esta pressão entre as massas concretas dos meios e a metafísica desprendida dos corpos e dos cérebros, funde directamente com Miles Davis, desta época o artesão e artista que tanto se poderá ligar a Godard. Na monumental História do Jazz erguida por Ken Burns, em 2001, define-se assim Miles: «Davis tinha apenas vinte e três anos em 1949 quando começou a frequentar o apartamento de Gil Evans. Ele queria encontrar uma nova moldura para o estilo distinto e introspectivo que estava a desenvolver. Bem, Miles tinha de encontrar um som, um estilo que contivessem a delicadeza da sua natureza. Ele mantinha a aspereza cortante lá dentro. A sua música não era chorosa nem fraca. Porém, tinha uma nova delicadeza. Um sentimento que faz o romance aflorar e o transmite às pessoas. É um som bastante delicado para ser de um homem. Lester Young, antes dele, era assim. Miles tem uma vulnerabilidade e não teme partilhá-la com quem o ouve. Quando ele permitiu que essa vulnerabilidade permeasse o seu som, a sua música tornou-se irresistível

Para além da possível boutade, consegue-se arranjar paralelos para cada uma das comparações: também Godard frequentou apartamentos decisivos, mesmo que só com a sua caneta, o de Renoir e o de Rossellini, depois Fritz Lang como seu actor ou estátua, obtendo neles toda a frescura e liberdade; uma delicadeza, uma sensibilidade e uma aspereza cortante que segue da lembrança de Jean Vigo como do trompete para a câmara e para as convulsões de Belmondo, mais à frente para os grandes-planos de Anna Karina, chegando à ficção-científica toda nesta terra e não na lua de Alphaville; sem choro, nem fraqueza, mas sempre introspectivo, desbravando sendas dadas como seguras e combinando o que tem propensão para se afastar, nos anos 80 planaria pelos altos voos filosóficos, mas mesmo assim cacofónicos de Passion até Prénom Carmen, atingindo eternos retornos e avessos na Nouvelle Vague, já nos anos 90; Miles, que na sua missão desconhecida tocou no rock’n’roll, na electrónica, no noise, tirando o trompete de base ao jazz, também foi desconcertando todos os seus admiradores, seguidores ou puristas, em fusões e choques perfeitamente produtivos, isto é, esfomeados de humanismo, com todas as sensações; mas de tudo lhe chamaram, mal tratado como um suposto maluco ou chico-esperto, mano de Godard, não lhes perdoando supostos visionarismos ou atitudes herméticas.

Uma certa delicadeza e uma certa aspereza. Um certo lirismo e nervo. Contemplação desassossegada. Nem mais. Cada um que aproveite e use o que quiser. Que deite fora. Recuse. Se aproprie. Que se salve. Contradiga. Redima. Se perca. Todos os caminhos em aberto.

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Obs: Aquando da exibição de A Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard, em 1 de junho, pelo LUcky Star – Cineclube de Braga, foi também mostrado o comentário à obra, realizado em vídeo, por Joel Yamanji a título de apresentação do filme.

 

Publicação original em:

Lucky Star – Cineclube de Braga: À bout de souffle (1960) de Jean-Luc Godard

 

Hiperligações:

Lucky Star – Cineclube de Braga – homepage

Lucky Star – Cineclube de Braga – facebook

Uma introdução ao filme ‘O Acossado’, de Jean-Luc Godard

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Categorias: Cinema, Cultura

Acerca do Autor

José Oliveira

José Oliveira nasceu em Braga em 1982. Estudou Cinema na Escola Superior Artística do Porto. Realizou vários filmes de forma independente, alguns estreados na Cinemateca Portuguesa (como por exemplo 35 ANOS DEPOIS, O MOVIMENTO DAS COISAS, realizado em parceria com Mário Fernandes e Marta Ramos). LONGE é o seu último trabalho que escreveu e realizou, produzido pela OPTEC – filmes, e que fez parte da seleção oficial do prestigiado festival de Locarno na edição de 2016. Escreve sobre cinema regularmente no seu blog pessoal: http://www.raging-b.blogspot.pt (tendo sido referência de consulta no site da revista Cahiers du Cinema), bem como na Foco – Revista de Cinema. É ainda formador, tendo colaborado com Os Filhos de Lumière – Associação Cultural em inúmeras ocasiões. Recentemente fundou, com João Palhares, o LUCKY STAR – Cineclube de Braga. Em Março deste ano lançou um livro em co-autoria com João Palhares intitulado “Uma Viagem pelo Cinema Americano”. Em 2020 estreou o filme "Os Conselhos da Noite".

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