Em qualquer caso, Hípias, há uma vantagem que me parece ter retirado da minha conversa convosco: a de compreender melhor aquele provérbio que diz que «o belo é difícil»
Platão, Hípias Maior ou Sobre o Belo, 304e
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Esta célebre obra de Platão, na qual o autor reflecte sobre a essência da beleza, interrogando-se “o que é o belo?”, conclui com um aforismo socrático ainda válido vinte e cinco séculos depois: o belo é difícil, pelo menos, de definir.
Se nos perguntássemos o que é o belo na arte e, mais concretamente, na “arte de erguer e decorar os edifícios construídos pelo homem, qualquer que seja o seu destino, de modo a que a sua aparência contribua para a saúde, a força e o prazer do espírito”, segundo a definição de arquitectura de Ruskin[1], seria ainda mais difícil.
A definição deste termo – que, aplicado à arte, é talvez um dos vocábulos que nos nossos dias continua a suscitar os maiores problemas de conceptualização – é e será sempre subjectiva, discutível e mutável com os tempos e as culturas, pois, tal como afirmou Mies van der Rohe, “A arquitectura é a vontade de uma época expressa espacialmente. Viva. Mutável. Nova”[2].
Neste diálogo entre o seu alter ego, Sócrates, e o sofista Hípias, Platão confronta a ideia de beleza inteligível – procedente da razão – com a beleza sensível – procedente dos sentidos –, subordinando as sensações à razão.
Tal como o mestre da Academia, Pedro Araújo aborda uma questão difícil de resolver – provavelmente nunca será resolvida definitivamente – e também essencialmente ligada à ideia de beleza: a percepção da arquitectura. E tal como Sócrates, enfrenta corajosamente o problema sem, contudo, estabelecer conclusões definitivas, uma vez que não pretende “encerrar a problemática com qualquer tipo de formulação”, mas “apontar apenas alguns caminhos para o futuro da Arquitectura”.
Porém, ao contrário do alter ego platónico, Araújo dá prioridade às sensações sobre as ideias e propõe “Um repensar da Arquitectura a todos os níveis” para a tornar mais sensível ao homem, nesta que ele chama a “Era da Sensação, Emoção e Razão” cujo objectivo deveria ser o de “Procurar novas respostas cognitivas que façam aproximar a Arquitectura ao homem e vice-versa”. Uma arquitectura dos sentidos tal como, em 1923, a definiu Le Corbusier:
“O arquitecto, pelo arranjo das formas, obtém uma ordem que é pura criação do seu espírito; pelas formas, impressiona fortemente os nossos sentidos, provocando emoções plásticas; pelas relações que cria, desperta em nós ressonâncias profundas, dá-nos a medida de uma ordem que se sente em harmonia com o mundo, determina reacções diversas do nosso espírito e do nosso coração; e então compreendemos a beleza”[3].
A partir destas ideias, Araújo aprofunda a apreensão da arquitectura a partir de uma nova abordagem que se insere no quadro de uma das tendências mais inovadoras, com origem no estudo da nossa psique: a neurociência, que se alimenta de inúmeros contributos de todos os ramos do conhecimento e que, por sua vez, os alimenta. É esse o caso da arquitectura, com contributos tão marcantes como o de Juhani Pallasmaa, conhecido mundialmente pela sua obra Os Olhos da Pele: A Arquitectura e os Sentidos, na qual estudou em profundidade a relação simbiótica que ambas as disciplinas mantêm ao longo de centenas de artigos e vários livros.
Seguindo o seu exemplo, o autor embarca na análise deste novo campo do saber, chamado “neuroarquitectura”, com o objectivo de “Apelar, sensibilizar, estimular o olhar sobre o ponto de vista neuropsicofisiológico entre as emoções e as sensações, fomentar a compreensão, a essência do que realmente significa a Arquitectura. Ampliando o conhecimento e contribuindo para melhorar o nosso sentido crítico relativamente ao estado actual da Arquitectura”.
Embora, no entanto, não se trate de construir uma nova metodologia arquitectónica ex novo, como ele próprio refere: “Os últimos avanços da Neuroarquitectura, que não tem como objectivo tornar-se um movimento ou corrente arquitectónica mas, sim contribuir e enriquecer o exercício de fazer Arquitectura, apontam para um novo paradigma que determinarão implicações de variada ordem desde a restruturação do ensino à prática arquitectural”. Em suma, trata-se de uma realidade conceptualmente mais simples: aplicar as novas descobertas sobre a percepção e os efeitos do espaço arquitectónico no homem para conseguir uma arquitectura mais sensível às pessoas e com maior responsabilidade social.
Com estes objectivos, realiza um interessante percurso histórico pelas principais teorias que lançaram as bases para o desenvolvimento desta nova arquitectura dos sentidos, que nos oferece em forma de compêndio, simplificando a compreensão de conceitos complexos, para todos aqueles que quiserem aproximar-se desta temática pela primeira vez.
Este livro está alicerçado num exaustivo e complexo trabalho de documentação e investigação, do qual resultou uma obra original e pessoal que, graças a um extraordinário trabalho de síntese e um estilo honesto e ameno, nos convida a viajar mentalmente por todos os textos-chave da teoria da arquitectura, visitando fisicamente os principais edifícios que servem de apoio à sua argumentação. Neste último aspecto, salientam-se especialmente as fotografias que ilustram as construções escolhidas, cuja grande expressividade nos permite recriar de algum modo as próprias sensações que o autor experienciou ao contemplar tais obras.
Com base no trabalho extraordinário de Edward T. Hall, o qual, de acordo com Araújo, “[…] introduziu o conceito de proxémia para descrever as dimensões subjectivas e as diferentes distâncias físicas entre os seres humanos, falando do espaço sensorial que nos envolve e condiciona a nossa forma de estar e sentir”, o autor desenvolve o seu próprio conceito de espaço no contexto da “neuroarquitectura”.
Uma ideia de vital importância, “Principalmente, porque no espaço coincidem vida e cultura, interesses espirituais e responsabilidades sociais”, tal como afirmou Bruno Zevi na sua obra fundamental Saber Ver a Arquitectura, e que Araújo faz sua: “O que nos toca, perturba ou comove exprime-se em emoções, um processo físico-químico de apreensão da realidade. O espaço transmite-nos sentido de protecção, orientação e sentimentos”.
Desse modo, para ele, “Alargar estes conhecimentos sobre a compreensão do espaço e a sua relação com o comportamento humano aos recentes avanços das neurociências, de como a Arquitectura pode condicionar e afectar-nos psicologicamente, quando interagimos com o ambiente no que diz respeito à percepção espacial e sua relação com a proximidade, permitirá aos Arquitectos terem um melhor desempenho na concepção dos espaços”.
Esta é uma conclusão lógica da pedra angular deste consciencioso trabalho de investigação: promover a compreensão, a essência do que significa a arquitectura do ponto de vista “neuropsicofisiológico”, ou seja, das sensações e emoções como funções superiores do cérebro humano e, acima de tudo, de como este toma consciência de si mesmo em relação com o seu contexto.
Nesse sentido, um dos destaques do livro que tenho o prazer de prefaciar é o contributo de um dos investigadores mais relevantes na área de estudo das possibilidades da neurociência na arquitectura, o arquitecto Harry Mallgrave, que levou a cabo a difícil tarefa de dar uma “história” à relação entre a neurociência e as artes, e com a arquitectura em particular. Nesse aspecto o autor concorda plenamente com as ideias que o Professor Mallgrave lhe formulou pessoalmente na correspondência que mantiveram sobre o seu trabalho: “Não há distinções a fazer entre sensações e percepções, por exemplo, ou entre percepção e cognição. A emoção é, na verdade, a base neurológica do processo de raciocínio, aquilo que António Damásio designou como um atalho do processo (O Erro de Descartes)”.
Do mesmo modo, e seguindo Souto de Moura, Araújo reflecte sobre o futuro da arquitectura, afirmando que deverá apoiar-se em outras disciplinas e trabalhar em conjunto, dado que não pode ser considerada como uma arte autónoma. Na realidade, não se trata de nada de novo, pois já Vitrúvio descrevia a arquitectura como sendo “tão complexa, tão meticulosa, e inclui conhecimentos tão numerosos e diferenciados que, na minha opinião, os arquitectos não a podem a exercer legitimamente a não ser que, desde a infância, avançando progressiva e gradualmente nas ciências referidas e alimentados pelo conhecimento nutritivo de todas as artes, cheguem a alcançar o supremo templo da arquitectura ”[4]. Mas a novidade que Araújo traz a esta disciplina híbrida e “impura”, como lhe chamou Pallasmaa,[5] é propor um novo paradigma. Uma arquitectura pluridisciplinar, “que integre o conhecimento das Neurociências, da Filosofia, da Psicologia, da Física, da Biologia, da Sociologia e da Antropologia em prol do bem-estar e da qualidade de vida das pessoas”. O que deverá passar por dotá-la de uma base que combine os conhecimentos que se revelarem fundamentais e determinantes para fazer frente aos novos desafios que se avizinham.
Termino estas breves palavras introdutórias incentivando o leitor a aprofundar as ideias originais de Pedro Araújo, embora em alguns momentos se dêem conta, como o Platão da antiguidade, que “o belo é difícil”. Mas, tal como já referiu Vitrúvio, “o que a vista persegue é sempre a beleza”[6], e é inegável a dos vários exemplos que ilustram esta excepcional viagem histórica e conceptual através da arquitectura.
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[1] Ruskin, J.: Las siete lámparas de la arquitectura. Altafulla, Barcelona, 1987, p. 6.
[2] Mies van der Rohe, L.: “Edificio de oficinas”, in Escritos, diálogos y discursos, Colegio Oficial de Aparejadores y Arquitectos Técnicos de la Región de Murcia, Madrid, 2003, p. 25.
[3] Le Corbusier: “Argumento”, em Hacia una arquitectura, Apóstrofe, Barcelona, 1998, p. XXIX.
[4] Vitrúvio: Los Diez Libros de la Arquitectura, Alianza Forma, Madrid, 1997, p. 29.
[5] Pallasmaa, J.: “Towards a Neuroscience of Architecture: Embodied Mind and Imagination”, Architecture and Neuroscience, Tapio Wirkkala Rut Bryk Foundation, Espoo, 2013, p. 4.
[6] Vitrúvio: ob. cit., p. 88.
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