Bárbara, de Mathieu Amalric, foi exibido no Cineclube de Joane, na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, na passada quinta-feira, 5 de Abril. João Paulo Guimarães e Vítor Ribeiro estreiam uma nova rubrica de cinema, em formato de diálogo.
.
.
João Paulo Guimarães: Para começar, será interessante ver como o filme explora o tema da criação como processo: implica hesitações, interrupções, fracassos, digressões. Flutuações e manipulações do humor. A criação como tentativa de aproximação, sem sabermos bem a quê. O filme não só tenta capturar este processo mas dramatiza-o a nível formal, sendo ele próprio propositadamente digressivo, roçando muitas vezes a inconsequência e arriscando perder o espectador. Como nos diz o poeta amigo de Barbara, o processo de procura é como um “escarafunchar na lama”. Requer paciência e teimosia.
Porventura o aspeto mais interessante para mim é esta ideia de recriar ou repetir o passado (tema central na história do cinema; é pensar em Vertigem, de Hitchcock). Neste caso implica uma calibragem meticulosa, compulsiva, quase cirúrgica (a palavra aparece na boca de Bárbara), mas também aberta ao acaso. Reviver o passado no presente: um processo ao mesmo tempo incestuoso e inusitado.
Vitor Ribeiro: Sim, o incesto é um tema pertinente. Funciona também para o próprio realizador: permanentemente dentro e fora. Leva a coisa ao extremo por ser realizador de um filme em que interpreta um realizador que por sua vez… Até à cena limite em que ele salta para a plateia num gesto à Woody Allen (Rosa Púrpura do Cairo).
O filme também se move por contradições, quase paradoxos, entre a leveza (a cena de abertura em que Bárbara se deixa levar pelo vento) e a obsessão de criar, que faz com que se encerre em casa no final. Os trejeitos de vedeta são um misto de encenação e mecanismo de defesa contra um público voraz, vampírico, como se supõe na personagem de Almaric.
João Paulo Guimarães: Também há que ter em conta o tema da apropriação – usar palavras, canções, imagens de outros para nos conhecermos a nós próprios, central quer para o processo criativo de Bárbara/Balibar (cantora e atriz) quer de Zand/Amalric (o realizador real e o ficcional).
Vitor Ribeiro: A apropriação das letras também entra para a construção incestuosa. A ideia de contaminação está bastante presente. Não sei bem qual foi a relação dela com o Jacques Brel, se havia ou não um nível de intimidade, porque Bárbara faz lembrar Amália, muito reclusa, pouco dada aos prazeres sexuais.
João Paulo Guimarães: Certo. Mas o que é que ela procura? E o que é que os outros procuram nela? Yves Zand, o personagem de Amalric, realizador do filme dentro do filme, diz-nos que ela irradia conforto, compreensão e compaixão, o que faz sentido dado a natureza errática de Bárbara, tanto emocionalmente como no plano criativo. Desejar Bárbara é querer-se a si próprio, um desejo de auto-conhecimento pela via do artifício e da performance. Procurar a verdade por intermédio da cópia, da inautenticidade e do improviso. É também um puzzle que vai crescendo à medida que o tentamos montar: acumulam-se os post-its, as fotos, as gravações mas Amalric não tenta sintetizar. Pelo contrário, vai amontoando fragmentos sem perguntar porquê.
Vitor Ribeiro: É claro que Zand ficou fascinado por ela naquele encontro (conhece a cantora na juventude): quer descobrir-lhe a essência, o seu “Rosebud” (Amalric diz que foi influenciado por Welles). Mas podemos especular se Zand/Amalric procuram nela algo que corresponde à sua arte e por isso se apropriam da figura, do método e da arte da cantora. O Almaric cita em entrevistas o The Lady from Shanghai. Devia estar a pensar no jogo de espelhos do Welles e Rita Hayworth, uma narrativa que se espelha, se expande e multiplica, mas que também se torna difusa, inalcançável.
.
.
Bárbara, de Mathieu Amalric – Cineclube de Joane
Bárbara, de Mathieu Amalric – trailer
.