No final do mês de fevereiro, uma notícia sobre a Escola Básica de Meães do concelho de Vila Nova de Famalicão foi alvo de especial destaque por parte dos meios de comunicação nacionais, em resultado de ser frequentada apenas por estudantes de etnia cigana. O assunto foi chamado à colação pelos dois deputados famalicenses da Assembleia da República, eleitos pelo Partido Socialista (PS), que publicitaram o facto e questionaram o Ministério da Educação: atendendo às normas nacionais e internacionais a que o Estado português está sujeito, e que estipulam a plena integração social de todas as minorias étnicas, os direitos desta minoria estariam a ser violados. Exigiam, nesse sentido, que fossem procuradas soluções para o problema. A notícia era acompanhada pelo esclarecimento da diretora da Escola: não estamos perante qualquer situação de discriminação; simplesmente não se registam nesta escola inscrições de crianças “da comunidade maioritária” há cerca de uma década.
Aos jornalistas cabe apenas a tarefa de comunicar a notícia e a leitura da mesma deixa-nos com a sensação de que, na verdade, se trata de uma não-notícia. Mas as questões filosóficas que lhe subjazem são pertinentes e merecem por isso ser invocadas para dar um enquadramento à questão.
Ensino obrigatório e liberdade de escolha de frequência em estabelecimento de ensino
Comecemos por esclarecer o argumento invocado pelos deputados famalicenses: a sociedade portuguesa (a generalidade das sociedades) é composta por diferentes comunidades étnicas, sendo possível o surgimento de conflitos entre as formas de vida (hábitos, costumes e valores) dessas comunidades. A título de compromisso entre a defesa contra uma possível discriminação da etnia minoritária por parte da etnia maioritária e o respeito da comunidade minoritária pelos valores do projeto coletivo maioritário, a conceção política prevalecente (fortemente estatizada) defende a necessidade de integração social da comunidade minoritária. No domínio escolar, tal significa não só que todas as crianças estão obrigadas ao ensino escolar obrigatório e de acordo com um programa nacional, mas também que o devem fazer com crianças que não da sua comunidade ou, nas palavras da diretora da Escola, com crianças “da comunidade maioritária”. Foi o incumprimento deste segundo requisito, a que Portugal está obrigado por força de legislação nacional e internacional, que levou os deputados famalicenses a levantar o problema. O outro lado da questão expõe-se facilmente: de acordo com a legislação em vigor, os encarregados de educação (EE) têm liberdade para escolher a escola que pretendem para os seus filhos, pelo que não há qualquer situação de ilegalidade.
Neste sentido, o conflito opõe duas determinações legais – mas o meu objetivo é ir para lá da questão jurídica e demonstrar de que modo as posições nesta matéria põem em confronto duas posições filosóficas clássicas.
Limitações à liberdade e filosofia política em discussão
A não ser que do Ministério da Educação saia uma visão engenhosa, sensata e equilibrada para o assunto, as soluções que os deputados poderiam apresentar assumem duas formas: a primeira seria colocar crianças da comunidade maioritária na escola (obrigando os EE?); a segunda seria deslocar as crianças ciganas para outras escolas (obrigando os EE?). Em qualquer dos casos estar-se-ia a limitar a liberdade individual do EE de escolher a escola que pretende para o seu filho; e em qualquer dos casos essa limitação é justificada com a prossecução de objetivos coletivos. Ora este debate reflete uma disputa filosófica com mais de duzentos anos entre duas posições éticas rivais, que apresentaremos de forma simplificada.
Progresso social v. direitos e liberdades individuais
A primeira dessas posições faz-nos recuar ao século XVIII e ao filósofo inglês Jeremy Bentham, proponente da teoria utilitarista. De acordo com Bentham, o ser humano é dominado por dois mestres soberanos – prazer e dor – e é a partir deles que devemos determinar o princípio da moralidade: a coisa certa a fazer é aquela que maximiza a felicidade (ou utilidade). No domínio político, tal significa que a bondade de uma medida política dependerá da maximização da felicidade como um todo. Bentham era um fervoroso crítico da ideia de direitos naturais, que ele considerava um “disparate sobre andas” e, consequentemente, a liberdade individual despertava-lhe pouca preocupação. John Stuart Mill, escrevendo cerca de setenta anos depois, virá corrigir alguns aspetos relevantes da posição utilitarista, sobretudo quanto ao respeito pela liberdade individual, e foi essa formulação que chegou até aos nossos dias. Não obstante esses aperfeiçoamentos, o utilitarismo colocará sempre o progresso social acima dos direitos e liberdades individuais.
Tratar os seres humanos como um fim em si mesmo
Apesar de bastante sedutora pela sua simplicidade e imparcialidade, a ética utilitarista despertou, naturalmente, reações – a mais forte delas promovida por Immanuel Kant. Contra uma ética utilitarista, Kant assenta a sua reflexão ética na ideia de dignidade humana. Tratando-se de um ser dotado de racionalidade e liberdade, o ser humano é, por isso, merecedor do maior respeito e consideração, o que determina uma ética deontológica, i.e., baseada em deveres. Assim, uma ação é moralmente correta se for motivada pelo cumprimento dos deveres morais, que podemos resumir na fórmula: “trata todos os seres humanos como um fim em si mesmo e nunca como um meio”. A diferença face ao utilitarismo torna-se evidente: se uma determinada medida política coloca alguém na posição de ser tratado como um meio para a prossecução de um fim social ou coletivo, i.e., não respeitando a sua dignidade individual, tratar-se-á de uma política moralmente inaceitável.
Deveremos subordinar a liberdade individual ao prosseguimento de um projeto coletivo?
Embora a filosofia pareça muitas vezes distante da realidade, a verdade é que muito do debate político que se faz hoje é uma continuação desta longa conversa entre utilitaristas e kantianos (ou entre a ética utilitarista e a ética deontológica). Quando discutimos, por exemplo, eutanásia, serviço militar obrigatório ou medidas de discriminação positiva, usamos geralmente o argumentário que nos foi deixado por aqueles autores e que nos permitem tomar posição. O filósofo norte-americano Michael Sandel ocupa um lugar particularmente importante na atualidade por mostrar, numa linguagem acessível e interessante, de que forma os grandes debates contemporâneos, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto ou as barrigas de aluguer, podem ser melhor realizados se tivermos em conta aquilo que foi dito antes de nós por mentes brilhantes que nos ajudam a pensar mais e, normalmente, melhor.[1]
Pela nossa parte, só temos de aplicar estas ideias ao nosso tema. Consideremos as soluções apresentadas para aquele problema concreto: elas passam sempre por subordinar a liberdade individual ao prosseguimento de um projeto coletivo.[2] Será correto?
Solução passa por compromisso e diálogo na comunidade
Decidir se estamos dispostos a perder liberdade individual em detrimento de um projeto coletivo passa por refletirmos e tomarmos uma decisão de caráter individual. Mas no plano político, a solução terá de compreender sempre compromisso e o compromisso só é possível através do diálogo – um diálogo levado a cabo dentro da comunidade local e não uma decisão vertical do Ministério da Educação –, mesmo que esse diálogo mais não seja do que a continuação de um debate que se iniciou há mais de duzentos anos.[3]
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Notas
[1] Para esta temática destaca-se o livro, traduzido em português, Justiça: fazemos o que devemos? (trad. port. Ana Cristina Pais, Lisboa, Editorial Presença, 2011). Sobre a atual dominação da racionalidade económica dos mercados ou os limites ao que o dinheiro deve valorizar, merece uma leitura: Michael Sandel, O que o dinheiro não pode comprar, trad. port. Alberto Gomes, Lisboa, Editorial Presença, 2015.
[2] Podemos também colocar uma questão mais ampla: quando o Estado decide a obrigatoriedade de plena integração social, não está igualmente a sujeitar a liberdade e a identidade das comunidades minoritárias à dominância de um projeto comum?
[3] Ao qual podemos acrescentar, na senda de Michael Sandel, a ética aristotélica e um pensamento político de base comunitarista.