1915
Já em 1914, a imprensa famalicense, principalmente com o “Estrela do Minho” e a “Gazeta de Famalicão”, considera nas suas páginas a crise das subsistências. De facto, apesar do governo de Bernardino Machado ter proibido, em 10 de Agosto, a elevação dos preços dos géneros alimentares para evitar a especulação, a verdade é que os famalicenses, assim como no geral do país, já se iam encontrando com a problemática da carestia da vida, conforme a crónica com o mesmo título de 8 de Novembro no “Estrela do Minho”.
Com a acentuação da crise das subsistências, organizou-se, em 1915, a Comissão Municipal de Subsistências, constituída por Carlos Bacelar (Administrador do Concelho), Zeferino Bernardes Pereira (Presidente da Câmara Municipal), Francisco Correia de Mesquita Guimarães, António Gonçalves Cerejeira e Manuel Pinto de Sousa. A temática da crise das subsistências não passou despercebida durante a campanha eleitoral.
De facto, a Associação dos Operários organizará um comício público a que estiveram presentes neste Dinis Pinheiro (Vice-Presidente da Assembleia-Geral), presidindo à sessão, Guilherme da Costa e Sá, este nomeando secretários João Pereira Mendes Martins (empregado comercial) e A. Gonçalves Branco (tipógrafo). Falaram sobre a carestia dos géneros alimentares Manuel Joaquim de Sousa e Maciel Barbosa, delegados da União Operária Nacional (do Porto), António da Costa Carvalho (da Póvoa de Varzim), José Alves da Silva e Júlio Cruz (de Braga). A Associação dos Operários apresentou a seguinte moção:
“Considerando que as condições económicas da vida actual se vão agravando assustadoramente para as classes operárias;
Considerando que, ao mesmo tempo, que o trabalho escasseia, a miséria aumenta com a constante subida de preços de todos os géneros de primeira necessidade;
Considerando que sendo a causa principal desta anomalia a guerra europeia, se verifica que com a mesma guerra especulam indignamente os negociantes, que tendo a vida quase garantida, com sede e ambição de mais copiosos lucros, açambarcam os géneros para os vender por preços por demais exorbitantes;
Considerando que com um dos géneros de mais consumo neste concelho – o pão – tem havido quem tem querido tornar mais desgarrada a já misérrima situação dos operários, favorecendo os açambarcadores, procurando assim enriquecer à custa da fome do povo:
O povo do concelho de Famalicão, reunido em comício público e convite da Associação dos Operários de Construção Civil, resolve:
1. Aderir ao protesto e tornar suas as reclamações já feitas pela União Operária Nacional e demais organizações operárias do país no sentido de serem compridas as normas governamentais tendentes a minorar as populações pobres do país, tais como o cumprimento das leis e decretos referentes à subida de preços, proibindo a exportação dos géneros, proibição que deve estender-se à raia seca; o comprimento do decreto sobre o preço das habitações, assim como as alterações à lei do inquilinato, no sentido de não serem permitidas as ordens de despejo aos operários em crise, etc.;
2. Que seja mantido o preço do milho estabelecido pela actividade administrativa anterior e referendado pela actual, evitando a sua saída para fora do concelho.” Precisamente, será Manuel Pinto de Sousa que, nas suas afamadas crónicas “Trabalhar”, tratará da problemática da crise das subsistências, a propósito da especulação dos preços, estando como causa e pretexto a guerra. A mesma Associação dos Operários da Construção Civil, em 13 de Outubro, faria uma reclamação ao governo, pelo facto de não estarem os operários representados na comissão de subsistências, tendo sido avançado em 25 de Julho, numa das crónicas de Manuel Pinto de Sousa, a constituição de uma cooperativa de consumo para Famalicão. Já no final do ano, os famalicenses ficam a saber que os operários de Riba d`Ave fizeram greve, que o governo decretou o fim das comissões municipais de subsistências, decretando a liberdade nos preços.
1916
Da problemática das subsistências, uma constante durante o ano, os famalicenses sabem no início de Março que foi criado o celeiro municipal, para numa crónica de 9 de Abril saberem que, com a eliminação das comissões concelhias de subsistências, existem agora as comissões distritais, não lhes augurando grande futuro o cronista. O abastecimento do milho no celeiro municipal nunca chegava para o abastecimento da população. Numa crónica editorial de 30 de Abril, evoca-se o problema da distribuição, elaborando-se na parte final uma ténue proposta: “No nosso concelho, embora com muito trabalho, a autoridade administrativa tem conseguido o milho necessário. Há faltas na distribuição? Dizem-nos que sim e também não admira, sendo ela feita apenas num só ponto para as 50 freguesias do concelho. Há também abusos, por vezes, alguns recebendo milho além das suas necessidades? Pode ser que assim aconteça, visto que o pessoal distribuidor não pode conhecer toda a gente. Mas tudo isto se evitaria se o milho fosse fornecido em cada freguesia, onde todos se conhecem, encarregada da distribuição pessoa respeitável.” O que é certo, para além destas questões logísticas, nem toda a gente conseguia obter o desejado milho para a sua subsistência. Em Julho, os famalicenses, por decreto governamental, ficam a saber, através dos editais que o administrador do concelho manda afixar, que todos os produtores são obrigados a dar por escrito de todos os cereais que produzem, para se saber não só as quantidades necessárias para cada concelho, como, igualmente, em caso de excedente, serem vendidos para outros concelhos. Da proposta para uma maior organização distributiva do milho, tal surge numa crónica de 17 de Setembro, na qual se propõe a criação dos celeiros paroquiais, para em Outubro, o administrador do concelho pretender abastecer as juntas de paróquia. Por seu turno, o administrador do concelho, agora em Novembro, para evitar a saída do milho do concelho, “oficiou os regedores das freguesias limítrofes do concelho, mostrando-lhes a conveniência que há em proceder, desde já, ao arroteamento” dos cereais. Finalmente, é assinado entre o administrador do concelho, Carlos Filipe Pereira Bacelar, e os comerciantes de feijão do concelho famalicense um “Compromisso”, com vários pontos a serem cumpridos, nomeadamente, e a título exemplificativo, que “nenhum feijão que lhes pertença, poderá transitar no concelho ou fora dele sem uma guia de trânsito passada pelo Administrador do Concelho.”
1917
O projecto constante das cooperativas de consumo, para defesa dos consumidores mais pobres e a concretização dos celeiros paroquiais, existindo alguns em algumas freguesias do concelho de V. N. de Famalicão, a constituição governamental concelhia das subsistências e de uma comissão de abastecimento local, assim como a criação de mais uma comissão de subsistências em princípios de Setembro, não conseguiram (através da configuração de uma Lei dos Cereais) suster a constante especulação dos preços à volta dos mesmos e, em especial, do milho, com a constante polémica do seu abastecimento e a sua falta, quer na feira e no mercado, originando conflitos sociais durante o ano não só a nível nacional, como também a nível local. Em Março, numa crónica com o título “Abastecimento de Milho”, o cronista do “Estrela do Minho” informa que “sabemos de lavradores que, solicitados para vender milho a alguns pobres, se têm negado a fazê-lo”, caindo na retórica propagandista usual de que a “hora é de sacrifícios para todas as classes.” Em princípios de Abril, anuncia-se que o problema das subsistências “é o assunto máximo que a todo o país preocupa” e que “é a falta de pão” que leva a “tumultos em várias terras pela falta de milho e se assim continua não pode calcular-se onde irá parar o sossego público.” Em Maio, os famalicenses tomam conhecimento que chegaram para a freguesia de Calendário “cerca de cinquenta carros de milho”, os quais foram adquiridos em Viana do Castelo pela “junta de paróquia daquele freguesia, para poder atender, ao menos em parte, à enorme falta de milho que ali tem havido.” Depois dos conflitos sociais em Lisboa, relatados e comentados em editorial, noticia-se os do concelho, particularmente em Oliveira Santa Maria e nos da Vila. Veja-se a notícia destes dois acontecimentos, publicada em 3 de Junho:
Segunda-Feira última [28 Maio], veio uma comissão de lavradores, daquela freguesia, queixar-se à administração do concelho de que cerca de 200 indivíduos tinham assaltado a casa do lavrador Francisco caseiro, agredindo, barbaramente, os donos da casa e roubando todo o milho que havia para consumo e sementes, além de 80 escudos em dinheiro e várias roupas. / Imediatamente, a digna autoridade administrativa tratou de iniciar as suas averiguações e como lhe constasse que os assaltos se iam repetir, seguiu para Riba d`Ave, acompanhado do destacamento da Guarda Republicana, em serviço nesta vila, conseguindo saber o nome dos principais assaltantes e realizando logo a prisão de alguns deles, apesar da atitude hostil do operariado daquela região. / Nessa ocasião requisitou mais forças da Guarda Republicana, que lhe foram fornecidas de Guimarães. / Na Terça-Feira [29 Maio] passada correu na vila o boato de que tinha sido lançado fogo à casa da Lavandeira, pertencente ao proprietário sr. Narciso de Abreu, da freguesia de Oliveira, o que infelizmente mais tarde se confirmou, tendo ardido a casa por completo e perecendo nesse criminoso sinistro 9 cabeças de gado! / Nessa ocasião foram efectuadas mais 3 prisões, sendo arbitrada a cada um dos presos, segundo se diz a fiança de 2000 escudos. / As patrulhas da Guarda Republicana têm percorrido, de noite, todos os lugares da freguesia de Oliveira e limítrofes, estando agora a ordem pública completamente assegurada. / Diz-se que antes do assalto houve uma reunião de operários a que não foram estranhos certos elementos ultra-avançados de fora do concelho, constando também que os operários de Riba d`Ave e fábricas vizinhas, acompanhados de Pevidém, pensavam em vir a esta vila e, pela força, subtrair os preços à acção da justiça. Para obstar a isso, chegou ontem aqui uma força militar a qual veio a requisição do digno administrador deste concelho, que tem sido de uma actividade e energia raras, merecendo por isso os aplausos de toda a gente. /Consta-nos também que em Riba d`Ave tem havido sempre milho à venda por preço acessível e que os operários ainda não deixaram de ter trabalho, motivo porque de modo algum se justificam os excessos por eles praticados e que mais lamentáveis seriam se não fossem as prontas e enérgicas providências tomadas pelo sr. dr. Carlos Bacelar, digno administrador do concelho.
Em 10 de Junho noticia-se que “escoltados por uma força militar, partiram Quinta-Feira para Braga, nove indivíduos capturados por causa dos acontecimentos de Oliveira. Estão todos pronunciados pelo crime de roubo e agressão, sendo-lhe admitida fiança. Os presos que são todos tecelões chamam-se José de Oliveira, David Moreira de Carvalho, Manuel Pereira, António Antunes, João Ferreira, Manuel de Almeida, Joaquim António Cardoso e António Luís de Araújo.” Ainda em Junho, noticia-se que o município apreendeu um carro de milho que transitava sem guia de licença, mandando fazer pão para os pobres, comentando-se que “é sabido que nos concelhos do norte deste distrito existe milho em abundância, tendo já vindo bastante para os celeiros paroquiais do Calendário e de Joane e ainda para Riba d`Ave. Para esta vila é que já há tempos não vem nenhum e, por isso, a Câmara poderia ser a reguladora do mercado se tivesse milho em quantidade.” Por outro lado, “se o milho que vem das colónias é insuficiente para as necessidades da capital”, sugere-se adquirir milho em Braga, cidade que terá, nos inícios de Julho, os seus próprios conflitos. Até que em 5 de Agosto informa o “Estrela do Minho” da constituição de uma Comissão Governamental das Subsistências no Concelho e de uma Comissão de Abastecimento Local. A primeira foi representada pelas seguintes personalidades: Delegado do Governo, Adelino Adélio dos Santos; pela Comissão Executiva da Câmara Municipal, Domingos Lopes da Silva; Pela Associação Central de Agricultura, António Joaquim de Sousa Veloso. Por seu turno, a segunda foi constituída da seguinte forma: Pela Câmara Municipal, Francisco Correia de Mesquita Guimarães, Jaime Valongo e Manuel Pinto de Sousa; Pela Associação Comercial e Industrial, Manuel António Bouças Júnior e Augusto Pereira Sampaio; Pelo Sindicato Agrícola, António Joaquim de Sousa Veloso, Duarte Maria Pinheiro de Menezes. Em 9 de Setembro, é noticiada mais uma Comissão de Subsistência, constituída por Mesquita Guimarães, Bouças Júnior, Augusto Sampaio, Joaquim de Sousa Veloso e Manuel Pinto de Sousa. Mas quem critica a propaganda do jornal “Estrela do Minho” será a Comissão de Subsistências da Freguesia de Ribeirão, a propósito da distribuição (o que leva a supor a existência de mais comissões espalhadas pelas freguesias do concelho), constituída então por João José da Silva, Manuel Dias da Costa, Manuel Dias de Sá Couto, Manuel Pereira de Araújo, José Dias dos Santos, António Ferreira da Costa, Alberto Ferreira da Cruz Loureiro, Manuel Joaquim Machado e Manuel Maria de Albuquerque Gerard (regedor), cujas reivindicações serão publicadas em 18 de Novembro:
Nós, os membros da Comissão de Subsistências da freguesia de Ribeirão, tendo lido no seu conceituado jornal referências menos verdadeiras e justas sobre o milho que tem transitado para esta freguesia com guias legais, vimos apressadamente pedir a V… o favor de publicar, quanto antes, o respectivo desmentido, por serem inexactas tais informações. / Certa desta gravíssima crise do milho nenhuma freguesia deste concelho terá sido tão duramente experimentada como a nossa! Nem admira, Sr. Director! / Esta freguesia consta já 470 famílias! E pelo exacto arroteamento daquele cereal, apenas tem para a venda 60 carros de milho! Há, portanto, um deficit pavoroso! É necessário importar para aqui fatalmente 430 carros! / É certo que a digna autoridade administrativa, conhecedora dos factos, tem passado algumas guias, mas as quais algumas vezes, infelizmente, não têm sido reconhecidas por alguns dos seus subalternos e populares. E não se diga, Sr. Director, que algum milho de Ribeirão ou que para Ribeirão venha, com guia por nós informada passa para o sul. / E devemos informar, em abono da verdade, que a digna autoridade administrativa deste concelho nenhumas guias tem passado para esta freguesia, sem previamente ouvir esta comissão sobre o assunto.
Das actividades da Comissão de Abastecimento Local, realça-se a realização de um inquérito ao consumo do milho, com a participação dos regedores das freguesias, e a projecção para a formação dos celeiros paroquiais. Após a realização do inquérito, o administrador do concelho proibiu a saída de milho e de centeio para fora do concelho, bem como o trânsito dos mesmos. Em 30 de Setembro noticia-se que a Comissão de Subsistências já conseguiu a implantação de alguns celeiros paroquiais em algumas freguesias; até que, após os conflitos sociais no Porto, receou-se em Dezembro em Famalicão pelo assalto às mercearias da Vila, defendendo-as uma força militar:
Quarta-Feira [12 Dezembro], ao meio da tarde, que é a hora de maior negócio nos estabelecimentos, correu a notícia de que vinha o pessoal das fábricas de tecidos de Riba d`Ave assaltar as mercearias da Vila, proeza a que se associariam os operários das fábricas e oficinas daqui. O facto alarmou toda a gente que estava na feira, que debandou logo, tratando todos os comerciantes de encerrar as portas. / Perdeu-se quase pro co0mpleto o negócio desse mercado. O crime não se efectuou porque os iniciadores dele, dizem-nos, não encontraram o apoio do povo que enchia o campo da feira. / Também parece não restar dúvida de que os assaltos foram premeditados, pois neles se têm falado já há duas semanas – é o exemplo do que aconteceu no Porto – e tanto que já a autoridade administrativa tem a Guarda Republicana de prevenção para evitar os assaltos.
1918
Independentemente da criação do Ministério da Agricultura, da criação do celeiro paroquial da Vila, do apelo constante nas páginas do jornal “Estrela do Minho” aos lavradores do concelho para alargarem a área das sementeiras, da criação da comissão de subsistências sidonista, da criação da lei da restrição e do racionamento das subsistências, da criação do decreto n.º 4506 de 20 de Junho (castigando os açambarcadores dos géneros alimentícios), da criação do celeiro municipal, tais medidas não evitaram a projecção dos conflitos sociais e a escassez dos géneros alimentícios, agravando-se cada vez mais o problema da fome. De facto, o texto publicado em 16 de Junho com o título “Cultivar mais a terra”, evidencia precisamente o abandono da agricultura em Portugal, relacionando-a com países como França, Inglaterra e Itália e como estes a desenvolveram para combater a fome:
Em França, como na Inglaterra e Itália, o governo ordenou por todas as formas a intensificação da cultura de cereais para evitar a fome dos seus concidadãos, vista as dificuldades da navegação motivadas pela guerra. Fizeram mais ainda que foi o Estado mandar cultivar por conta dos proprietários os terrenos incultos ou mal aproveitados e ainda cultivar de pão os jardins públicos. / Em Portugal, nada disto se tomou a sério, apesar de nos faltar um terço do pão necessário ao consumo. A agricultura pré-histórica, terrenos mal aproveitados, tudo ao Deus dará, pois nem o Estado nem os particulares trataram de intensificar o cultivo dos cereais.
Para além das tentativas do delegado do agrónomo distrital em V. N. de Famalicão, o qual até à constituição da comissão de subsistências seria o responsável no concelho pelo serviço da mesma, de nome Guilherme Costa, este estará presente numa crónica de 17 de Fevereiro, sendo aquela personalidade que “com a melhor vontade se tem esforçado por obter milho para as classes operárias poderem abastecer-se de milho”, tendo, aliás, “recebido promessas de o milho não faltar para o consumo local mesmo vindo de outros concelhos.” Algo que parecia tão simples, vai criar em Famalicão um conflito social em Fevereiro, existindo incidentes provocados pela população da Vila a seis carros de milho destinados a Ribeirão, assaltando os carros e os sacos esfaqueados. Aliás, tais acontecimentos servirão a Guilherme Costa para escrever uma carta-justificação ao director do jornal “Estrela do Minho”, evocando não só questão dos arrolamentos que se encontrava a tratar, assim como a questão de ter passado as guias de trânsito para os respectivos carros se deslocarem até Ribeirão. A revolta deveu-se, segundo Guilherme Costa, não só às atitudes de “certos figurões”, como se notava “uma má vontade na aquisição de milho para aquela freguesia por os lavradores dali, naturalmente por espírito de ganância, terem vendido para fora toda ou a maior parte da sua produção”. Contudo, a questão é mais complexa como à primeira vista parece ser, envolvendo questões políticas, como já iremos ver.
O celeiro municipal, em princípio, parece que vinha colocar ordem na distribuição e nos conflitos sociais. Falando-se já do celeiro municipal em Fevereiro, começará a funcionar institucionalmente em 15 de Março, tendo sido organizado pela comissão paroquial da Vila e tendo obtido duas doações monetárias: da Casa Pinto & C.ª e do cidadão António Gonçalves Pinto, respectivamente a quantia de três contos. Em meados de Março surge a Comissão de Subsistências de V. N. de Famalicão, cujos corpos-gerentes ficaram assim constituídos: Presidente, Henrique Machado; Secretário, Guilherme Costa; Vogais, Machado da Silva, Alferes Baptista Pinto, António Melo, Manuel Alves e Álvaro Bezerra. Guilherme Costa não ficaria muito tempo no cargo de secretário da respectiva comissão, pedindo a demissão no final do mesmo mês, justificando-se num texto publicado em 7 de Abril, constando-se que tinha conflitos com o celeiro paroquial e com a comissão de subsistências, para além do conflito de Ribeirão, o qual será assinalado num comunicado no mesmo número e assinado por José Joaquim Santos e António dos Santos, publicando o “Estrela do Minho” o texto com o título ”Para a História da Conciliação Sidónia. Um Regedor à Altura”.
O sr. Joaquim da Costa Painço, regedor da freguesia de Ribeirão, aproveitando-se da situação favorável, quer e tenta apoderar-se dum terreno público em frente da sua casa e junto duma propriedade do sr. António dos Santos. / Na Quarta-Feira passada vedou ele, a toda a pressa, esse terreno com uma parede e, na Sexta-Feira, às duas horas da tarde, vários indivíduos que se julgam prejudicados, demoliram-na. / Pois nesse mesmo dia, o tal sr. regedor, para se vingar, passou guias de fornadas a toda a painçada, parentes e aderentes e, às 10 horas da noite, junto com a quadrilha, apresentou-se em casa do sr. Jacob Joaquim dos Santos a exigir-lhe a venda do milho que tinha para seu consumo. / O pároco da freguesia tinha anunciado à missa, no último Domingo, em nome da comissão de subsistências, que o milho arrolado na freguesia para o celeiro estava esgotado e que o distribuído esta semana era de empréstimo até chegar o que a comissão tenha adquirido. Além disso, o pároco também anunciou há tempos que a distribuição das guias e do milho só se fazia aos Domingos de manhã, o que até agora se tem feito. / Pois o sr. regedor, sem se importar com estes avisos da comissão apresentou-se nesse mesmo dia em que demoliram a parede, e a tais horas, 10 da noite, para esse serviço! E se não fosse o auxílio dos vizinhos e a intervenção de um membro da comissão de subsistências a quem o sr. Santos avisou, veria este a sua casa invadida e talvez assaltada…
Entretanto, a par dos açambarcadores, das controladeiras e/ou das regateiras, tínhamos nas feiras e no mercado os espanhóis, que compravam tudo fora das horas estipuladas, levando clandestinamente galinhas e ovos, ficando depois os géneros alimentícios a preços elevadíssimos para a população famalicense. Em Abril, o ministério das subsistências cria os celeiros municipais, para em Agosto dotar ao de V. N. de Famalicão a verba de 45 mil escudos, para se constar no início de Dezembro que já não existia o celeiro municipal, em plena Monarquia do Norte. Mas a meio do ano, para além de se saber que tem havido alguns assaltos a lavradores em todo o concelho, no mês de Julho acontece na Vila o assalto a uma mercearia, que foi narrado da seguinte forma:
… a nossa terra apresentou-nos o espectáculo tristíssimo da desordem e indisciplina social que jamais esperamos presenciar na pacata Famalicão. Um grupo numeroso de operários e gente sem medo de vida estacionou largas horas em frente à mercearia dos srs. Azevedo & irmão, da Rua Pinto Basto. Coincidiu o facto com a ida para Riba d`Ave da maior parte da Guarda Republicana, da qual só ficaram aqui dois soldados. Deu-se, por acaso, também a circunstância de aqui vir nesse dia em inspecção, o sr. tenente-coronel da Guarda Republicana. Claro que, no cumprimento do seu dever, o sr. administrador do concelho devia vigiar de perto o ajuntamento e de tratar procurar os meios de dispersá-lo, a bem da ordem pública e segurança da propriedade dos cidadãos. Afirma-nos pessoa que merece todo o crédito, que o não fez, e pior ainda, quando a sua acção se tornava mais necessária, retirou-se para fora da terra, justamente quando o grupo mais engrossava e, açulado por desordeiros sem escrúpulos, mais ameaçadoramente se manifestava. / Resultado desta imprevidência, que não tem desculpa, foi principiar o arrombamento da casa aludida, seguido de invasão selvagem e ladravaz do saque a quanto no estabelecimento se encontrava – no valor de muitos contos de réis. Mais ainda, a malvadez ou inconsciência desenfreadas, começou a destruir tudo o que não pode arrastar para fora, quebrando garrafas, vertendo líquidos, quebrando louças, numa fúria selvagem de fazer mal!
Enquanto que em 9 de Agosto se realizava o comício da Associação dos Operários em V. N. de Famalicão, solicitando às entidades governamentais e municipais a descida dos preços dos géneros alimentícios, em Setembro seria publicado o Edital n.º 1 do racionamento das subsistências e, no mesmo mês, o “Estrela do Minho” publica o manifesto da União Operária Nacional.
“A Sopa dos Pobres”
Instituída numa iniciativa do jornal “O Século” e de várias juntas de paróquia da cidade de Lisboa em Abril de 1917, a ideia de se criar a “Sopa dos Pobres” em V. N. de Famalicão desenvolveu-se logo no início do ano de 1918, não faltando as respectivas doações monetárias. Desta forma, em 20 de Janeiro surge um apelo para a sua constituição na vila, a exemplo de Barcelos, na qual a Associação Comercial tomou a resolução de criar a sua distribuição diária. O “Estrela do Minho” não só faz o apelo para a sua criação em Famalicão, como anuncia que o cidadão famalicense, e comerciante, José de Araújo Coutinho disponibilizou-se a oferecer feijão amarelo. Em 3 de Fevereiro a comunidade famalicense fica a saber que a junta de freguesia da vila iria tomar a seu cargo a distribuição diária da “Sopa dos Pobres”, dizendo também que António Gonçalves Pinto, vice-provedor do Hospital ofereceu cem escudos para a referida instituição de solidariedade social. Aliás, destes dois doadores, sabemos por notícia de 17 de Fevereiro que partiu de José de Araújo Coutinho a ideia de se criar na comunidade famalicense a “Sopa dos Pobres” e em 24 de Março lamenta-se não se ter inaugurado ainda o “serviço de sopa aos pobres, nem está projectado fazer-se em Famalicão.” O mesmo José de Araújo Coutinho fazia a doação de 30$000 réis, prometendo contribuir mensalmente com mais cinco réis mensais, comentando o cidadão famalicense, em carta enviada ao director do jornal “Estrela do Minho”, que como a comissão paroquial andava muito ocupada com o abastecimento de milho, faz um apelo para a constituição de uma comissão de senhoras para a constituição da “Sopa dos Pobres”, podendo fazer, a exemplo da Comissão Promotora da festa da Flor, uma festa no Clube de Caçadores para a angariação de fundos. Entretanto, José de Araújo Carvalho, do Louro, instituía nesta mesma freguesia uma Caixa dos Pobres para em editorial de 26 de Maio se lamentar que ainda “não se chegou a a inaugurar a instituição da sopa dos pobres”, para em 29 de Junho se insistir na sua fundação e organização. Em Julho noticia-se que a junta de paróquia da Vila vai nomear uma comissão para a distribuição da sopa e pão para os pobres. Não se efectivou e não aparecem mais notícias sobre a hipótese ou não da instituição “Sopa dos Pobres” em V. N. de Famalicão.
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Imagem de destaque: Capa do Estrella do Minho, de 8 de novembro de 1914. Pela primeira vez na imprensa famalicense, faz-se referência ao problema da carestia de vida em consequência da Grande Guerra. (Arquivo Municipal; digitalização).
Outras imagens: Capas de O Século Cómico, suplemento humorítico d’ O Século, com ilustrações alusivas ao grave problema da carestia de vida na época da Grande Guerra de ’14-’18 (Arquivo do autor; digitalização).