Na sua segunda leitura de um filme para o Vila Nova, João Paulo Guimarães fala-nos do humor negro de Cães Selvagens, o filme exibido pelo Cineclube de Joane, na Casa das Artes, em 9/11(2017.
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(…) Apesar de tudo, a justiça (…) prevalece, não a justiça (porventura divina) de quem tem em conta as circunstâncias dos pecadores, mas a justiça secular, cega e vingativa, símbolo de uma América esquizofrénica, que promove a regeneração e o sonho mas que nunca realmente perdoa o fracasso, premiando-o apenas com o riso.
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Como Cães Selvagens é um filme recheado de piadas de mau gosto: rimo-nos das irrupções súbitas de violência que pontuam as escassas cenas de efémera harmonia, das bocas politicamente incorretas e das batéticas peripécias dos personagens, que trazem o espectador de volta à terra em momentos de exacerbada intensidade ou de pendor perigosamente genérico*. Não estamos, ainda assim, perante um filme em que o humor negro seja usado de forma gratuita ou para meramente fugir aos clichés. Como Cães Selvagens é uma pungente tragicomédia sobre o lado pernicioso do sonho americano (já lá iremos) que recorre ao humor, primeiro, para calibrar a dose de sentimentalismo a que nos sujeita mas, acima de tudo, para realçar o caráter trocista da vida, que teima em puxar-nos o tapete quando pensamos que estamos sob pleno controlo do nosso destino.
Troy, Mad Dog e Diesel não são homens intrinsecamente maus. Mad Dog tenta enveredar por uma carreira militar aos dezasseis anos mas é posto fora por ser desleixado. Troy vem de uma família com dinheiro mas acaba por ser empurrado para o crime na prisão, aonde vai parar quando é falsamente acusado de traficar droga. Por fim, Diesel, inteligentíssimo, diz-nos o filme, podia bem ter estudado direito em Stanford, fossem outras as circunstâncias. Mas a questão central é mesmo essa: apesar das suas nobres ambições e boas intenções (querem apenas ter uma vida desafogada, como toda a gente), os personagens são levados pelo desenrolar das coisas a cometer erro atrás de erro até serem colocados numa situação de tudo ou nada.
É como nos filmes, dizem: ou morremos, ou fugimos para o Havai cheios de massa. A ironia é que, feitas as contas, na vida real estas personagens também não teriam grande alternativa. Serem reintegrados na sociedade estaria fora de questão: pouca gente arrisca dar trabalho a ex-presidiários e os que o fazem pagam salários miseráveis. O filme abre com uma conversa telefónica em que um jovem “telemarketer” troça da ocupação de Mad Dog, que aqui ainda trabalha numa fábrica de peixe enlatado: “Ainda há quem faça essas coisas nos dias de hoje?”, pergunta o milenar a um Dafoe enfurecido. Somos logo aqui lembrados de que esta já não é a “grandiosa” América do passado, aquela do cinema clássico das fantasias de Troy ou aquela a que Donald Trump alude de forma contínua e eficaz nos seus discursos. No presente, predomina o Rap, género musical a que os personagens foram constantemente expostos na prisão (Diesel diz que deixou de gostar de música por essa razão) e que assinala aqui o declínio da influência, cultural e efetiva (os criminosos com poder real no filme são de etnia negra e mexicana), dos brancos no país que insistem ter fundado.
Mas apesar de este ser um filme sobre o desencanto de três ícones do chamado “white trash”, deixados para trás pelo progresso tecnológico, Schrader não descura as injustiças a que a população negra é sujeita, fazendo referência a políticas de “racial profiling” e à desproporcional violência que a polícia lhes aplica. Aliás, o filme termina com uma cena em que um casal de negros é gratuitamente baleado durante o confronto final de Troy com os seus carrascos, representados como passageiros (ou “espectadores”) de uma narrativa que continuam a não poder conduzir. Nesta cena final, que tem lugar já depois de Troy ter sido dado como morto e que se desenvolve num espaço que, com a sua neblina de cores irreais, parece funcionar como uma espécie de purgatório, Troy é perdoado pelo reverendo negro (e pelo espectador?), que aqui lhe oferece um pouco do “amor incondicional” que Mad Dog diz sempre ter procurado ao longo da vida. Mas é, apesar de tudo, a justiça que prevalece, não a justiça (porventura divina) de quem tem em conta as circunstâncias dos pecadores, mas a justiça secular, cega e vingativa, símbolo de uma América esquizofrénica, que promove a regeneração e o sonho mas que nunca realmente perdoa o fracasso, premiando-o apenas com o riso.
* ”Bathos” é a passagem súbita de um registo elevado para o plano da banalidade.
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Trailer: Cães Selvagens, de Paul Schraeder