Literatura | ‘A poesia de Amália’ na Biblioteca Nacional

 

 

2020 regista para a história o centenário do nascimento de Amália, a voz portuguesa que imortalizou o fado e o associou à forma de viver e sentir de todo um povo. Para celebrar a data, a Biblioteca Nacional de Portugal preparou uma exposição temporária dedicada à poesia da ‘estranha forma de vida’ que a artista cantou nos seus fados. A exposição tem início hoje, 15 de outubro, e prolonga-se por 3 meses, até 15 de dezembro.

O encontro com Alain Oulman

“No início de 1959 Amália faz mais uma temporada no Olympia, em Paris, com brilho incontestável de vedeta internacional – a revista Variety considera-a nesse ano uma das quatro maiores cantoras do mundo.

Numa dessas noites apresenta-se nos bastidores um rapaz que lhe oferece uma melodia. Tem trinta anos e chama-se Alain Oulman. Nem ele nem Amália podiam supor que deste encontro nasceria a mais original e profícua relação conhecida entre a poesia clássica e a música popular”, assinala Frederico Santiago no site da BNP.

A voz aos poetas de Língua Portuguesa

“É verdade que Amália já antes tinha cantado alguns poetas portugueses seus contemporâneos, como Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo ou Sidónio Muralha – [no disco busto, de 1962] -, e que a sua própria maneira de cantar já era uma poética em si – basta para isso ouvir a quase belcantista acentuação que dava à frase ou como nunca repetia um refrão de forma mecânica. Mas nunca um cantor popular conseguiria, como Amália – na maior parte das vezes, com a cumplicidade de Alain Oulman –, uma tão grande democratização dos clássicos da poesia através da música. Em poucos anos, Amália põe um povo inteiro não só a conhecer sonetos de Camões como a emocionar-se com eles, e inclui nos seus discos fados e canções com poemas de Mendinho, Dom Dinis, João Garcia de Guilhade, João Roiz de Castel-Branco, Bernardim Ribeiro…

Através desse arco projetado por Oulman e esculpido por Amália, o grande público descobriu um universo de novo requinte poético, que afinal tanto tinha em comum com o fado tradicional. Era uma forma elevada e intemporal de tratar o mesmo mistério”, acrescenta-se.

Cantar a lírica de Camões: um ultraje?

Em 1965, a propósito da edição de um disco de 45 rotações que se intitulava Amália Canta Camões, foi por muitos considerado um ultraje cantar o príncipe dos poetas portugueses em forma de fado. Saíram então gravações de Erros Meus, Lianor, Dura Memória e, logo de seguida uma edição do Jornal Popular onde diversas personalidades do meio literário e artístico davam o seu parecer sobre esta inovação, a princípio, atípica no Fado. Algumas das vozes manifestaram-se a favor, outras duramente contra. “A polémica foi tal que chegaram a ser publicados na imprensa depoimentos contra e a favor e a montar-se um tribunal fictício na televisão para julgar Amália. Mas a primeira experiência do género acontecera já quatro anos antes de rebentar o escândalo. Amália cantara um soneto de Camões na televisão e pressagiado todo o estrondo de 1965. À pergunta sobre de quem eram os versos cantados respondeu apenas: “Estavam num livro…”, revela Frederico Santiago.

Aguda sensibilidade literária

“A ligação da cantora à poesia contemporânea também se desenvolve com a chegada de Oulman: José Régio, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, Ary dos Santos ou Cecília Meireles. Mas Amália canta mais poetas, muitos mais. Se alguns desses poemas são escritos de propósito para a sua voz, como a “Gaivota”, de Alexandre O’Neill, outros são “roubados” dos livros e até adaptados pela própria Amália, como o “Povo que Lavas no Rio”, de Pedro Homem de Mello. Uma aguda sensibilidade literária que culmina nalguns belíssimos poemas seus, muitos deles também cantados [- e publicados em livro intitulado Versos, numa edição dos Livros Cotovia -], sobretudo na fase final da carreira”, prossegue.

Repertório dos grandes poetas na sua maioria reservado para a intimidade

Outros poetas ficariam na arca dos inéditos da cantora, como Gil Vicente, Almeida Garrett, Mário de Sá-Carneiro, Teresa Rita Lopes ou Armindo Rodrigues.

E como se de poemas para ler se tratasse, Amália reservou muitos destes fados para a intimidade do disco. Na sua grande maioria, este repertório não fazia parte dos recitais ao vivo, que nesta altura aconteciam sobretudo no estrangeiro, com públicos que não entendiam português, conclui o autor do texto.

Um legado imortal

O imenso legado discográfico que nos deixa, testemunho da sua livre atitude poética e do universalismo da sua voz, inicia ainda hoje muitos dos seus admiradores no mundo da poesia portuguesa de qualquer tempo, e para todos os tempos.

Se o assunto lhe interessa, poderá procurar um livro que reúne a poesia cantada por Amália Rodrigues. Trata-de de uma recolha antológica que, pelo seu conjunto, possui um inegável elevado valor literário, efetuada por Vítor Pavão dos Santos. O livro intitula-se O fado da tua voz – Amália e os poetas.

 

Fontes: BNP, Bertrand, FAR; Imagem: BNP

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