Cinema | Luz Interior. Uma leitura de A vida de uma mulher, de Stéphane Brizé

A partir desta data, João Paulo Guimarães irá manter regularmente uma coluna de cinema. Esta será realizada a partir dos filmes apresentados pelo Cineclube de Joane, habitualmente apresentados na Casa das Artes. Desta feita, fica a sua leitura do filme A Vida de uma mulher, de Stéphane Brizé, projetado em 2/11/2017.

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Adepto de cortes abruptos e de transições temporais intrusivas, aquilo que interessa a Brizé é o conflito, o choque entre a luz e as trevas que são, aqui, tal como Jeanne e Julien, forçados a coexistir. Celebra-se desta forma um casamento invulgar entre o fatalismo e o fantástico.

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Vais amar-me para sempre?”, pergunta Jeanne a Julien numa das várias sequências em que as paisagens bucólicas de Stéphane Brizé subitamente nos projectam para o plano remoto das fantasias e das memórias. É o filme que verdadeiramente nos responde, encadeando, de forma violenta, a reluzente e fantasmagórica cena anterior com uma nova série de momentos mortos em que, para além das cores fúnebres, predominam as pausas e os silêncios, pontuados pelo crepitar inconstante das chamas e o ruído impiedoso da chuva, sons que o filme amplifica para que o espectador não se deixe enganar: esta, sim, é a realidade.

Tal como um dos padres que aconselham Jeanne, Brizé parece preocupar-se com a revelação e, de uma perspectiva cinematográfica, a iluminação da verdade. “A mentira é filha das trevas”, diz-nos o sacerdote. Assassinando três personagens do filme numa das cenas subsequentes, aquilo que a luz clarificadora da razão nos mostra é, ironicamente, um mundo doentio e tenebroso, claustrofóbico e exasperante.

É contra a tirania do real, ideia muito cultivada pelos Naturalistas da época retratada pelo filme, que Jeanne, personagem com aspirações e motivações Românticas, se vai revoltando, com um heroísmo adequado à domesticidade das suas circunstâncias, ora perdoando o marido, ora tentando impedir que as aulas de Latim e Geometria entorpeçam o fascínio do filho pelo mundo mágico das árvores e das flores. Jeanne é, como o supramencionado padre a apelida, “filha da luz”, criatura, aparentemente desenquadrada, de um outro tipo de cinema, o cinema da ficção e da fantasia.

Quando o filme fecha e damos por nós boquiabertos com a improbabilidade da reviravolta final, a platitude de que “a vida não é boa ou má, como alguns julgam”, como nos diz a companheira de Jeanne, parece-nos provocatória. Isto porque, apesar da sua comedida paleta cromática, o foco do filme não recai de todo sobre as zonas cinzentas da vida. Inverno e Primavera não se sucedem de forma gradual mas vão-se interrompendo ciclicamente. Adepto de cortes abruptos e de transições temporais intrusivas, aquilo que interessa a Brizé é o conflito, o choque entre a luz e as trevas que são, aqui, tal como Jeanne e Julien, forçados a coexistir. Celebra-se desta forma um casamento invulgar entre o fatalismo e o fantástico. Dessa união resulta um filme que, ao realçar o lado potencialmente milagroso do quotidiano, consegue ascender a um tipo de realismo que é acima de tudo tocante no modo como nos consegue em simultâneo prender e surpreender.                                                                                                                                                                     .                                  

Trailer: A Vida de uma mulher, de Stéphane Brizé

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