“É fácil dizer que este é um dos mais belos filmes do mundo”, assim se exprime, maravilhado, João Pedro Ferreira, em registo efetuado no blogue De Roma a Londres, sobre o filme em Primavera Tardia (1949) de Yasujiro Ozu. Palavras destas deixam curioso o mais incauto, mas também, eventualmente, com um pé atrás muitos outros, uma vez que gostos e preferências têm sempre a sua subjetividade.
“A passagem do tempo e, por conseguinte, o ciclo da vida e a efemeridade das coisas” são o foco da obra de Yasujiro Ozu, realizador que ficou conhecido no mundo ocidental por filmes lado a lado com os dos grandes mestres do cinema, como Akira Kurosawa ou Kenji Mizoguchi. Primavera Tardia apela à reflexão e é um filme perfeito perfeito para rever o autor ou até mesmo conhecer o seu trabalho. Outros filmes, absolutamente extraordinários deste autor, são Viagem a Tóquio (1953) e O Gosto do Sakê (1962).
Seja como for, de acordo com a sinopse de Primavera Tardia, “Noriko (Setsuko Hara) está perfeitamente feliz a viver em casa com o seu pai viúvo, Shukichi (Chishû Ryû), e não tem planos para casar – ou melhor, não tem até a sua tia Masa (Haruko Sugimura) convencer Shukichi que, a não ser que ele case a sua filha de 27 anos em breve, há uma enorme probabilidade de esta permanecer sozinha para o resto da sua vida. Quando Noriko resiste ao arranjinho de Masa, Shukichi vê-se forçado a enganar a sua filha e sacrificar a sua própria felicidade para fazer o que ele acredita estar certo”.
José Carlos Maltez, no blogue A Janela Encantada, recorda que quando realizou Primavera Tardia, “Yasujiro Ozu era já um realizador veterano, com cerca de 40 filmes, alguns do período mudo”. Primavera Tardia “surge numa fase em que o Ocidente ganhava consciência da cinematografia do pós-guerra japonês, marcando aquilo que ficou conhecido como a Era Dourada do cinema japonês, sendo este o filme de Ozu que inaugura a fase final, e mais apreciada internacionalmente, da sua carreira”.
Produzido numa altura em que o Japão ainda se encontrava ocupado pelos Aliados, que supervisionavam a desmilitarização e transição para a democracia, Primavera Tardia apresenta uma narrativa familiar de gente normal, num género que, no Japão, ficou conhecido como “shomingeki“. Filmada num registo muito simples, a ação decorre em momento contemporâneo.
Sendo este o primeiro filme de Ozu da chamada trilogia Noriko (por em todos eles haver uma personagem chamada Noriko, interpretada por Setsuko Hara, embora sem relações entre elas), Primavera Tardia fala-nos de uma família do pós-guerra, constituída por um professor universitário, o viúvo Shukichi Somiya e a sua filha casadoira Noriko. Todos os seus familiares e amigos tentam, a todo o custo, encontrar um noivo para que a jovem se case, mas esta, com as suas ilusões e desilusões, rebate todas as insistências, dizendo que está bem a cuidar do pai e não precisa de mais nada. Mas quando o seu próprio pai decide casar, Noriko fica sem argumentos, finalmente aceitando conhecer o noivo que lhe fora proposto. Após uma viagem a Quioto com o pai, Noriko revê a sua atitude perante o casamento, e aceita casar, para que o pai não tenha que o fazer.
José Carlos Maltez aponta ainda algumas interrogações sobre o filme: “Qual o verdadeiro motivo do filme? Comentar os ciclos da vida? Criticar o casamento?”. Deixa também no ar a dúvida relativa à posição de Yasujiro Ozu perante a mudança de paradigma no Japão. “Perante a modernização forçada por parte dos Aliados, após o final da Segunda Guerra Mundial, com consequente repressão do tradicionalismo feudal, Primavera Tardia pode ser interpretado tanto como um exemplo da coexistência passado-futuro e evolução das tradições, como pode ser visto como um redescobrir da antiga tradição, agora que o Japão fugia dela”.
“Esta ambiguidade é transversal ao filme e suas personagens”. Aya representa a modernidade, Masa, a tia de Noriko, representa a tradição. Noriko representa ambas. “Pode por um lado ser vista como uma mulher emancipada, resistindo ao casamento e tendo amizades masculinas, para logo ser mostrada como considerando o casamento de um viúvo algo sujo, e apegando-se à dedicação à família”.
Em todo o filme, não faltam “exemplos deste jogo entre tradição e modernidade”, tanto nos personagens como nos cenários, que nos lembram em permanência a situação vivida pelo Japão. Primavera Tardia acabaria censurado. “O casamento arranjado de Noriko foi por isso disfarçado, e a visita à campa da mãe de Noriko foi completamente eliminada. O motivo era o medo de que no filme se fizesse o elogio de práticas ancestrais (casamentos combinados, cultos dos mortos), que lembrassem o Japão feudal. Do mesmo modo foram removidos do argumento quaisquer referências à devastação causada pela guerra”.
Mas, polémica à parte, considera José Carlos Maltez que Primavera Tardia “é um filme que bem documenta o modo de filmar de Ozu. Por um lado destaca-se a sua forma narrativa feita de elipses imprevisíveis (vê-se Noriko comentar que vai a uma exposição de arte, para a vermos no café após a exposição), ou o ocultar de informação importante (não sabemos até Noriko se rir – do pai e de nós – que Hattori já estava comprometido, e tal como o pai dela víamos um romance a surgir), para depois se delongar em factos irrelevantes. Como num haiku, interessam a Ozu os momentos pelo seu significado inerente, e não por construções artificiais de causa e efeito”.
“Recordar Primavera Tardia é seguramente absorver as várias facetas do mesmo filme, tal como a sua composição metódica, o ambiente exterior de uma linha de comboio, a contrastar com o núcleo familiar recheado de pequenos-nadas, de conversa feita de detalhes de ocasião, nos planos milimétricos, na posição da câmara reverencial e imóvel ao nível das personagens sentadas numa almofada à mesa das tradicionais refeições, seguramente um dos locais prediletos de Ozu e ideal para captar diálogos simples em contra-campos igualmente meticulosos” num rigor e ascetismo cinematográfico que parece evocar uma manta coerente de conceitos estéticos e ideias, assinala Paulo Portugal, na Comunidade Cultura e Arte.
“Todo o espaço fica definido, e quase geometricamente traçado, pelas formas geométricas do cenário. Tal dá, não só, uma perfeita definição do espaço, como permite que os personagens continuem enquadrados, mesmo que se movam, sem necessidade de mover a câmara” acrescenta Maltez. “Ozu usa quase sempre planos estáticos, e filma os diálogos de forma única, com a câmara encarando frontalmente o personagem, que olha num ângulo diminuto, quase como se olhasse a câmara. Perde-se assim a definição do espaço que se obtém com a informação visual de que um personagem olha para a esquerda e o outro para a direita. Ganha-se, porém, uma proximidade que nos faz sentir desconfortavelmente perto dos interlocutores”.
“Talvez por isso, em plena época de blockbusters estridentes, apetece receber um filme como Primavera Tardiaı, talvez um dos quadros de cinema menos sensacionalistas de sempre. Talvez por elevar a modernidade do tal drama de família, justamente a seguir ao conflito de arrasou o país – mas que mostra já diversos espaços de publicidade tipicamente americanos – e onde melhor supera essa ferida aberta, acabando mesmo por depurar o seu estilo centrando-o nessa pacata vida familiar, nos pequenos gestos e rituais, como beber saké, ou nas suaves tensões entre gerações. Seguramente, uma abertura de estilo que se serve até da tradição do teatro noh para contrastar com esta representação singela, em que por exemplo, os frequentes sons monocórdicos dos diálogos de Ryo acabam por acrescentar notas sublimes a este ritual de cinema difícil de superar. É também aqui que acontece aquele cinema contido, mas que se revela na sua integral pureza”, conclui Paulo Portugal.
Primavera Tardia foi muito bem recebido, à época, no Japão, onde recebeu o prémio da crítica para melhor filme do ano. Ainda assim, o filme só chegaria aos Estados Unidos em 1972. O seu prestígio internacional não tem parado de crescer, sendo, com frequência, considerado o melhor filme de Ozu e aquele que definiu o seu estilo. Assinale-se que Viagem a Tóquio é também considerado por alguns o melhor filme de todos os tempos
Assim sendo, a apresentação de Primavera Tardia no Cineclube de Guimarães, no próximo dia 30 de abril, pelas 21h45, em cópia restaurada será uma oportunidade única para rever em sala, nesta cidade, um dos grandes clássicos do cinema japonês. A exibição será efetuada no Pequeno Auditório do Centro Cultural Vila Flor.
Primavera Tardia (1949) de Yasujiro Ozu – trailer
Festivais e Prémios:
Kinema Junpo Awards (1950) – Melhor Filme
Mainichi Film Concours (1950) – Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Atriz, Melhor Argumento
“Primavera Tardia” (Banshun) de Yasujiro Ozu. Com Chishu Ryu, Setsuko Hara, Yumeji Tsukiota, Haruko Sugimura, Hohi Aoki, Jun Usami, Kuniko Miyake, Masao Mishima, Yoshiko Tsubouchi. Música: Senji Ito. Japão, 1949, Preto e Branco, 103 min.
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