Projeto e obra para a Reabilitação do Moinho de São Marçal no Rio Pelhe, Esmeriz, Vila Nova de Famalicão

 

 

Após um conjunto de atividades públicas de sensibilização e divulgação do projecto[i] para a «Reabilitação do Moinho de São Marçal e Requalificação do Espaço Público Envolvente» deu-se início, no mês de Outubro de 2018, à obra de reabilitação do Moinho de São Marçal promovida pela Junta de Freguesia de Esmeriz em cooperação com a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão – Gabinete do Património Cultural.

Figura 1: Plano Geral para a Reabilitação Moinho de São Marçal e Requalificação das margens do rio Pelhe. Autor: R. Bruno Matos. Data: 2017.

O projeto de arquitetura foi desenvolvido em 4 fases: 1 – Enquadramento geográfico, histórico e territorial; 2 – Levantamento arquitetónico, construtivo e molinológico; 3 – Inspeção e diagnóstico das patologias; e 4 – Proposta de reabilitação arquitetónica.

A primeira fase da obra destina-se à reabilitação arquitetónica do edifício que se encontrava em ruína eminente. Tal como verificamos atualmente com inúmeros moinhos implantados ao longo dos cursos de água, o Moinho de São Marçal apresentava diversas patologias construtivas, devido à ausência de uso nos últimos 30 anos e à degradação dos materiais construtivos com o passar do tempo.

A estrutura da cobertura em madeira apresentava um avançado estado de degradação, com sinais de abatimento no cume, podendo colapsar a qualquer momento. As alvenarias exteriores estavam bastante degradadas. O recurso a argamassa de cimento utlizada em abundância nas paredes para preencher as juntas da pedra quer no exterior quer no interior contribuíram para a descaracterização do edifício. Os lintéis das bocas de escoamento da água, que suportavam a parede do alçado Poente, apresentavam graves fissuras que originaram o abatimento dos lintéis e, consequentemente, a deformação da parede, o que colocava em causa a sua estabilidade.

Figura 2: Estado de conservação do Moinho de S. Marçal e detalhe das fissuras dos lintéis das bocas de escoamento da água que proporcionou uma deformação da parede do Moinho. Autor: R. Bruno Matos. Ano: 2017.Após a análise técnica das patologias procedeu-se a uma proposta de intervenção que visa reparar as patologias mais graves e simultaneamente reforçar algumas fragilidades detetadas no edifício que ocasionaram problemas estruturais. É o caso dos lintéis das bocas de escoamento da água que se encontravam fissuradas devido à carga exercida pela parede (figura 2). Para corrigir esta anomalia optou-se por: 1 – retirar os lintéis fissurados; 2 – repará-los suturando a fissura com recurso a barões em aço ocultos; 3 – recoloca-los no local original; 4 – introduzir um arco novo para evitar a subcarga dos lintéis aumentando a sua durabilidade para o futuro; 5 – Reconstruir a parede com as mesmas pedras e método construtivo tradicional.

No projeto optamos por preservar os materiais originais e as técnicas tradicionais de construção identificadas na  preexistência e centramo-nos apenas nas medidas estritamente necessárias para a consolidação do edifício.[i] Deste modo pretende-se recuperar um edifício histórico com elevado valor cultural, patrimonial e arquitetónico preservando a sua identidade construtiva e carácter tradicional.

Figura 3: Metodologia de projeto aplicada – 1 – Levantamento do existente; 2 – Identificação das patologias; 3 – Sobreposição da proposta com o existente; 4 – Proposta de reabilitação arquitetónica. Autor: R. Bruno Matos. Ano: 2017.

A segunda fase da obra destina-se ao equipamento do moinho. O objetivo é reconstruir dois engenhos tradicionais com funções distintas – um moinho de rodízio e um pisão de panos acionado por uma roda vertical. Simultaneamente com o objetivo de aliar tradição / inovação, pretende-se introduzir uma nova utilidade ao Moinho de S. Marçal relacionada com a microgeração de energia renovável para autoconsumo de eletricidade.

A reconstrução do engenho de moagem pretende recuperar o sistema de moagem de roda horizontal – moinho de rodízio – respeitando todas as especificidades tecnológicas tradicionais. Para isso é necessário recorrer aos diversos tipos de materiais – madeira, aço e pedra – exigidos na construção do engenho para garantir a correta funcionalidade e durabilidade do mesmo. Quando visitamos pela primeira vez o Moinho de São Marçal verificamos que nos caboucos já não existiam os rodízios e no interior apenas existia uma moenda em avançado estado de degradação. Os casais de mós ainda estavam no local original. O projeto pretende reconstruir um rodízio tradicional em madeira de carvalho – formado por um penado de rotação horizontal, no sentido contrário aos ponteiros do relógio; – um cabaço e um eixo vertical – formado pela pela e lobete onde encastra a segurelha que irá movimentar a mó andadeira. No interior do moinho será reconstruida a moenda em madeira conforme o modelo original encontrado no local – composta pela moega que recebe o cereal, o quelho que deposita o cereal no olho da mó, o chamadouro, o cambeiro e o farinheiro que armazena a farinha acabada de fazer.

A reconstrução do engenho de moagem destina-se aos seguintes fins:

1 – Promover novas atividades educativas e pedagógicas com os alunos das escolas – Escola Básica do 1º Ciclo – que poderão conhecer um moinho em funcionamento e os processos artesanais de moagem do cereal para a produção do pão;;

2 – Estimular atividades de memória com os mais idosos residentes em Lares da 3ª Idade no intuito de recordarem a ida ao moinho para obterem a fornada do “pão nosso de cada dia”;

E por último, 3 – Atrair a comunidade em geral e o turismo cultural para conhecerem o funcionamento de um moinho hidráulico tradicional, em vias de extinção, e deste modo sensibilizar para a importância da preservação dos processos artesanais de fabrico do pão “verdadeiramente” tradicional – mais saudável, nutritivo e saboroso.

Figura 4: Estado de conservação da moenda da “porta”. Desenho de pormenorização da reabilitação do engenho de moagem de roda horizontal com as designações das peças constituintes e materiais de construção. Perspectiva virtual do interior do moinho de São Marçal após a obra de reabilitação. Autor: R. Bruno Matos.

A reconstituição do Pisão de Panos de pancada vertical pretende recuperar um mecanismo tradicional extinto durante o séc. XIX com a industrialização têxtil. Será ao que tudo indica um exemplar único e desconhecido na região. A ideia surgiu no projeto de arquitetura após o estudo histórico do edifício conjugado com a investigação científica  sobre património molinológico e suas tecnologias tradicionais.[i] Os indícios encontrados em documentação histórica, nomeadamente nas «Memórias Paroquiais de 1758», cruzados com as referências da toponímia local – “lugar do Pisão”, e as evidências construtivas e tecnológicas inerentes ao próprio moinho – características do funcionamento hidráulico – permitiu levantar a hipótese sobre a existência no passado do Pisão de Panos de pancada vertical. Esta foi a chave para uma proposta de reconstrução de um engenho, cuja origem da invenção mecânica remonta ao período Romano. «Os Romanos já praticavam o apisoamento dos seus panos de lã, sendo em Roma os pisoeiros tão numerosos que se encontravam agrupados em Collegia ou Sodalicia».[ii]

A funcionalidade de um pisão pode ser entendida na seguinte transcrição: «Na fase artesanal da industria das lãs, os tecidos caseiros, feitos com fio fiado na roca e tecido em teares manuais, apresentam, à saída do tear, uma textura frouxa, rala, e pouco firme, que “deixa ver o dia através” e se desfia com facilidade; o pano chama-se então “cherga” ou “encherga”, e requer uma operação especial de acabamento: ele deve ser “enfortido” ou “pisuado”, isto é, batido fortemente em molhado e durante bastante tempo, de modo a apertar a trama e até a teia, operando ao mesmo tempo a amálgama das fibras, que o transforma numa espécie de pasta feltrosa, homogénea, espessa e forte; tal é precisamente a função dos pisões, onde além disso, porém, como regra, os tecidos são lavados e desengordurados da sujidade e restos da “suarda” natural da lã […] pelo mesmo processo de apisoamento, com água, sabão, ou outros ingredientes apropriados».[i]

Figura 6: Estado atual e proposta de reabilitação do Moinho de São Marçal. Reintrodução da roda vertical de acionamento do primitivo pisão de panos. Autor: R. Bruno Matos.

Para terminar pretende-se introduzir uma inovadora funcionalidade no Moinho de São Marçal. Num dos locais onde existiu um rodízio tradicional será introduzida uma microturbina que aproveita a energia renovável do movimento da água para gerar eletricidade, destinada à iluminação do interior do moinho e do espaço público envolvente nomeadamente, a ponte e o novo “Largo do Moleiro”.

Figura 7: Estado atual e proposta de reabilitação do Moinho de São Marçal. Autor: R. Bruno Matos.

Deste modo pretende-se salvaguardar, preservar e valorizar este raro e precioso património, profundamente enraizado na cultura e na memória da população, e que atualmente tem vindo paulatinamente a desaparecer. Num futuro breve desejamos ter as portas do Moinho de São Marçal abertas à comunidade dando a conhecer os processos tradicionais de moagem, o funcionamento de um pisão e uma inovadora funcionalidade de microprodução de energia. O objetivo é requalificar a paisagem ribeirinha do Pelhe unindo cultura, património, ambiente e inovação.

Figura 8: Sequência da evolução do projeto/obra para a reabilitação do Moinho de São Marçal. Autor: R. Bruno Matos.

[i] 1. A apresentação pública do projecto – Reabilitação do Moinho de São Marçal e requalificação da margem do rio Pelhe -,  2. A atividade de sensibilização ambiental junto ao Moinho e margem do rio Pelhe integrado na iniciativa «Projeto Baixo Pelhe Mais Limpo, Rota dos Rios +»; e 3. A exposição pública do projecto no congresso A linha do tempo e o tempo de reabilitar.

[i] NABAIS, António Maia. Moinhos de Maré – Património Industrial. História do Concelho do Seixal, Câmara Municipal do Seixal, Seixal, 1986, p. 75. «Ao abordarmos o capítulo do restauro do monumento arquitectónico no seu aspecto propriamente técnico, deparam-se-nos problemas de escolha de materiais, a falta de materiais de construção tradicionais, processos de aplicação e mesmo a natureza da mão de obra aplicável. Acontece que muitos dos materiais tradicionais já não se fabricam no local e as técnicas tradicionais já só são do domínio de poucos».

[i] Esta investigação encontra-se em curso no grupo PACT – Património da Arquitectura, da Cidade e do Território do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

[ii] OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando. Tecnologia Tradicional – Pisões Portugueses. Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1977, p. 7.

[i] OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando. Tecnologia Tradicional – Pisões Portugueses. Instituto Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1977, pp. 5-6.

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Imagens: Bruno Matos

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