Vivemos numa era de incertezas, num tempo de muitas dúvidas. Ninguém acredita no que quer que seja, inclusive em milagres. Até estes parecem ter-se acabado e serem apenas possíveis mediante aquisição, tal como qualquer outro objeto, produto ou ideia.
Nada existe para além da inacreditável concretização do desejo, sobretudo desse desejo futuro que ainda está por chegar e acontecer e acaba por se concretizar apenas mediante uma troca calculada em função de um determinado valor numérico.
Adequando a expressão de Lavoisier, nada se cria, nada se perde, tudo se compra; assim se pode, talvez, sintetizar a sociedade em que vivemos.
Acreditar em ti, em mim, nos valores fundamentais da pessoa humana, parece ter deixado de ser possível. Os valores de referência da nossa civilização têm-se esfumado de tal modo que o seu valor tem-se vindo a assumir cada vez mais como um simples valor de mercado.
É neste contexto que Le Havre, de Aki Kaurismaki, mexe connosco, nos surpreende e nos deixa com um nó na garganta enquanto o vemos e ainda durante algum tempo mais após a sua exibição.
Le Havre, lugar de passagem(ns)
Filme contido, de registo pictográfico, vive em função das personagens, verdadeiras personas de alma pura como tantas vezes pensamos já não ser possível encontrar. É claro que, aqui, Kaurismaki quase só nos apresenta as suas melhores facetas: neste caso, os valores solidários de amor e entreajuda desinteressada ao outro.
Le Havre, como todos sabem, é um porto, ponto de passagem de inumeráveis barcos confluentes das mais diversificadas proveniências. Le Havre tem sido também, nos nossos dias, local de destino de milhares de migrantes ilegais, verdadeiros mortos-vivos, que pretendem rumar a Inglaterra, aí correndo o risco de serem presos, deportados ou até mesmo mortos antes de conseguirem atingir o seu tão almejado passaporte para a vida.
Marcel e Arlety, viver do nada e viver de um com o outro
Marcel Marx, boémio escritor da juventude, é hoje um escorraçado da sociedade de sucesso. Velho engraxador, convive com outros miseráveis (ou perto disso) habitantes do seu bairro, e migrantes em busca de uma melhor saída para o seu futuro e o das suas famílias. Vive do nada, isto é, da meia dúzia de ilusões que mantém na sua vida e de euros que vai conseguindo amealhar no dia-a-dia. São estes últimos, aliás, que lhe permitem, a ele e à sua mulher Arletty, sobreviver a muito custo.
Arletty vive permanentemente em casa, isolada, como tantas outras mulheres da sua idade, e cuida, na medida do possível, do amor da sua vida, esse homem um tanto estranho, lunático, que se cruzou com ela bem lá atrás, mas que ela jamais poderia deixar e a quem adora.
Os laços solidários entre quem nada tem para dar
Um dia, Marcel faz uma pausa para o almoço numa escadaria do porto. Prepara-se para trincar uma sanduíche quando vê emergir à sua frente um jovem negro, com aspeto que ele sabe só poder ser um fugitivo às malhas da lei. No momento em que se prepara para partilhar a refeição com o rapaz aparece a polícia – inspector Monet – à sua procura, mas o polícia que o interroga acaba por facilitar a sua fuga, propositadamente e sem que Marcel o perceba.
Sucedem-se, a partir de então, toda uma série de acontecimentos que nos vão deixar tristes e preocupados com o que pode acontecer a esse pequeno rapaz que viremos a saber chamar-se Idrissa, bem como a Arletty, a quem é detetado um cancro que Marcel é levado a crer ser benigno, mas, na verdade, maligno e, ao que tudo indica, sem qualquer hipótese de cura.
O bairro de Le Havre onde se vive esta história é habitado por toda uma série de personagens solidárias entre si e com os personagens principais da ação. Se, aparentemente, Marcel não é tido em boa conta porque só com grande dificuldade consegue cumprir os seus compromissos financeiros, quando surgem as verdadeiras dificuldades Marcel passa a ser constantemente apoiado por todos, com exceção de um vizinho malquisto: cedem-lhe alimentos, tratam-lhe do jovem que está à sua conta, visitam a sua mulher no hospital, apoiam-no psicologicamente; ajudam-no, de facto, em tudo o que podem, até a facilitar a fuga do jovem Idrissa para Inglaterra.
Milagres com o tamanho da vida
No final, Idrissa acaba mesmo por conseguir escapar com o beneplácito do próprio inspetor Monet. Na derradeira pesquisa a uma embarcação onde o rapaz se encontra escondido e se prepara para viajar, acaba por decidir ajudá-lo e, assim, dá vida àquilo que vai demonstrando ao longo do filme, que é um bom homem e que apenas se preocupa com verdadeiros malfeitores.
Se este parece um milagre improvável, mais ainda sucede com a recuperação da saúde de Arletty com a regressão do cancro no momento final em que Marcel se prepara para a visitar e acaba por a trazer de volta a casa logo após pensar que a mesma estava já morta – o quarto e a cama onde estiveram estão vazios quando se apresenta com uma flor amarela para a visitar.
Le Havre é cinema em estado puro, do tamanho da vida, do tamanho do coração.
‘Le Havre’ de Aki Kaurismaki – trailer
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Pelo artigo, dá interesse ver o filme. Verdade que os valores focados, por vezes já não são aplicados.
Noutros casos sim., viu-se por exemplo nos incêndios do verão passado.
Mas penso eu, que os ditos senhores que se chegam á frentre nestas situações catastróficas, são depois falados ou indiciados muitas vezes de abuso dessa mesma chefia…
Ora o cidadão comum que dá parte do pouco que tem, fica como?
Acredita em qué?
Tem vontade de apartir dali, fazer o quê?
Eu própria já dei ajuda sendo de comer na hora…o resto , também ponho as minhas reticências….