Numa entrevista à Australian National University, a propósito da exibição do filme Cães Errantes, Tsai Ming-Liang diz-nos que, apesar de as suas obras muitas vezes retratarem a vida daqueles que vivem à margem da sociedade, enquanto cineasta, não está verdadeiramente interessado em questões sociais. Em Cães Errantes, durante o dia, faça sol ou chuva, o protagonista segura um cartaz/anúncio num movimentado cruzamento de Taipei enquanto os dois filhos vagueiam pelos centros comerciais e supermercados da cidade, e à noite, depois de se lavarem numa casa de banho pública, dormem numa casa abandonada e em ruínas.
Ainda assim, Cães Errantes não é, então, um filme de protesto, e o seu objectivo não é de todo comover-nos com as abjectas condições de vida das personagens. O que interessa ao realizador é conseguir capturar as gradações formais, cromáticas, sonoras e emocionais que existem neste espaço aparentemente negro e vazio. A câmara de Tsai raramente se move, centrando-se muitas vezes no mesmo ponto durante vários minutos, forçando o espectador a prestar atenção a certos detalhes que de outra forma passariam despercebidos (os sons, as cores e as caras que se destacam no trânsito caótico da cidade, o ritmo irregular da chuva, os movimentos subtis do corpo). Predominam os grandes planos e os ângulos oblíquos que, ao mesmo tempo, aprisionam as impotentes personagens na sua indiferente vastidão e, ironicamente, nos dão uma desculpa para contemplar a beleza sublime das zonas inóspitas por onde estas se passeiam.
Apesar da relativa descontração das crianças (que – tal como o realizador – vão tirando o melhor partido possível da situação, brincam da maneira que podem – com umas poucas couves fazem uma boneca à qual dão o nome de “Sra. Mamalhuda” –, e vivem a sua vida nómada como se esta fosse normal), os adultos têm perfeita noção da situação miserável em que se encontram. A sua tristeza não é, ainda assim, retratada de uma forma unidimensional. O exemplo mais óbvio é o da icónica cena em que o protagonista – de forma sequencial – mata, beija, come e abraça a boneca dos filhos, destrinçando um emaranhado de emoções que vão desde o ressabiamento, o ódio e a frustração (a dimensão sexual da cena é inegável) à ternura, resignação e reconciliação.

O penúltimo plano do filme é também riquíssimo na subtileza com que são geridos os gestos, os sons e, acima de tudo, as expressões faciais. Uma mulher – que ao longo do filme dá de comer aos cães epónimos e que decide tratar dos filhos do protagonista – contempla, emocionada, um mural pintado numa das paredes do edifício abandonado, imagem que aqui parece representar um destino longínquo (o motivo da fuga é recorrente ao longo do filme) que, noutras circunstâncias, poderia ser um lugar onde as personagens conseguiriam reconstruir e recomeçar as suas vidas. Hesitante, o protagonista, após vários minutos de prática imobilidade, abraça a mulher. Esta ignora-o e acaba por rejeitá-lo, saindo da cena. Os problemas destas personagens não podem ser fácil ou magicamente solucionados. No plano final, sozinho e embriagado, o homem fita a parede, tal como nós fitamos o ecrã. Contrariamente ao mural com que nos deixa, o cinema de Tsai desencoraja o escapismo e tenta cultivar a atenção, incitando-nos a encontrar o belo no feio e o humano no desumano. Não será grande consolo, é certo, mas paciência. É melhor que nada.
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Imagens:
Cães Errantes, de Tsai Ming-Liang – Trailer