Isabel Cristina Rodrigues, com o livro A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em Vergílio Ferreira, foi a vencedora de um dos mais importantes prémios literários portugueses, o Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho 2016, atribuído conjuntamente pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão e a Associação Portuguesa de Escritores. A forma emocionada como encara a obra de Vergílio, mas também como recebeu o referido galardão, atravessam a comunicação da autora aquando da cerimónia de entrega do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho 2016.
Neste Prémio, que a mim muito me honra, tive a chama de um autor roubado ao esquecimento.
Ninguém morre no espaço mais íntimo da literatura. (…) Continuo a caminhar com Vergílio Ferreira no bolso, como sempre fiz. (…) Vergílio continua connosco; ele continuará sempre vivo se a obra que deixou continuar a ser motivo de bons e melhores ensaios e, sobretudo, se nunca deixarmos de o ler.
Talvez os grandes escritores sejam também aqueles que sabem esconder-se do seu leitor. (…) As grandes obras não morrem nunca, (…) hibernam.
A honra de ter recebido o Prémio Eduardo Prado Coelho é para mim uma casa de muitas janelas e, por isso, porque acredito que devemos proteger sempre a casa onde nos somos, é de toda a justiça que eu comece pelo teto e não pelos alicerces que, de um modo mais discreto, o alimentam de confiança e força; começo, pois, por evocar o nome que empresta ao Grande Prémio de Ensaio a cintilação apensa ao nome do seu mentor, Eduardo Prado Coelho. Este prémio, que galardoou em edições anteriores ensaístas que são mestres absolutos da palavra pensada, tem no autor de Os universos da Crítica uma espécie de guia simbólico que a todos reúne na celebração de um parentesco intelectual que é também a forma inconfessada de uma fé – a de que não existe ensaio digno desse nome que não irmane à justeza do juízo crítico o rigor da palavra que o diz. Por este motivo, poder sentir-me, através deste prémio, um pouco mais próxima do legado intelectual de Eduardo Prado Coelho, tão próximo ele também da chama criativa de Vergílio Ferreira, é uma grande e impensada alegria, que nem sequer encontra na palavra curta do agradecimento o verbo certo para dizê-la.
Há muitos anos, num colóquio em Sintra sobre a obra do autor de Para Sempre, assisti à leitura de um texto absolutamente notável de Eduardo Prado Coelho sobre a alma da fotografia na obra de Vergílio Ferreira. O texto a que me refiro tem um título inusitado, quase surpreendente, e que o ensaísta retirou de um comentário do próprio Vergílio a uma fotografia antiga de uma tia, imobilizada pelo impudor da lente nas escadas de casa, a fazer renda, e com a biqueira do chinelo rota. Chama-se, por esta razão, «Com a biqueira rota» e é para mim uma peça fundamental da bibliografia crítica vergiliana, mostrando ainda à saciedade, tal como sucede com tantos outros textos do autor, por que razão o Grande Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, a que a Câmara Municipal de Famalicão tão generosamente se associa, tem como patrono o nome de Eduardo Prado Coelho. Creio que ninguém que tenha estado naquele colóquio de Sintra, no outono de 2001, esqueceu aquele momento, como eu de facto não esqueci: a minha memória é a de um anfiteatro grande, cheio de gente, e todos nós a ouvir, transidos e imóveis de silêncio e estupor. Foi um momento de puro encantamento, em que juízo e palavra formavam um só corpo, e em que ouvíamos alguém que já não era bem o Eduardo, mas o próprio Vergílio através do Eduardo, ou se calhar nenhum dos dois, mas apenas o espírito daquilo que nos faz amar a literatura e o seu impercetível rumor.
Alguns anos mais tarde, instalada eu então na Biblioteca Nacional de Lisboa, enquanto preparava esta minha Palavra Submersa, lembro-me perfeitamente das palavras matinais de Eduardo Prado Coelho no seu Fio do Horizonte (a coluna que então ele tinha no jornal Público) sobre um dos filmes da minha vida e que me levaram, não sei bem se elas ou o filme depois delas, à sessão do meio-dia no Saldanha durante quatro dias seguidos, para ter bem a certeza do que estava a ver. Neste momento de agradecimento, em que se me impõe a sombra do grande homem de cultura que dá nome a este prémio, muito para além dos escassos momentos de convívio pessoal que de facto houve, são estes os episódios que involuntariamente lembro e assim é que deve estar certo. No momento exato em que se soube da sua morte, há pouco mais de dez anos, estava eu a consultar uns materiais do autor de Aparição numa sala da biblioteca Vergílio Ferreira, em Gouveia, um pouco mais perto, por isso, de Eduardo Prado Coelho e de algumas das palavras que ele tanto amou. Mas não gostaria sequer de falar aqui em morte, porque ninguém morre no espaço mais íntimo da literatura, nem no espaço luminescente do ensaio, onde o pensamento se transmuda em luz quando a forma justa o escreve, e isto vale para as obras de ambos, Eduardo Prado Coelho e Vergílio Ferreira.
Na verdade, a presente edição do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho vem sublinhar a importância capital do autor de Manhã Submersa na literatura portuguesa do século XX, distinguindo um ensaio publicado em 2016, no mesmo ano em que o autor teria feito 100 anos se ainda por aqui andasse, e este facto deixa-me verdadeiramente feliz. Na verdade, continuo a caminhar com Vergílio Ferreira no bolso, como sempre fiz, só que agora há mais gente a ver. Porque, tal como sucede com o mentor deste Prémio, também Vergílio continua connosco; ele continuará sempre vivo se a obra que deixou continuar a ser motivo de bons e melhores ensaios e, sobretudo, se nunca deixarmos de o ler: é por causa dos seus leitores fiéis, em cujo grupo eu sempre me incluí, que Vergílio, nascido há mais de cem anos, não parou ainda de nascer, porque nenhum escritor morre enquanto puder continuar a cumprir o destino para o qual nasceu: seguir, pelos anos fora, de braço dado com o seu leitor, num diálogo ininterrupto que é também voz de fazer nascimentos.
Naquilo que me diz respeito, amo de idêntico amor alguns outros escritores, embora em relação a nenhum outro eu tenha uma dívida tão grande, porque Vergílio Ferreira ensinou-me tudo o que há para saber, incluindo-se nesse tudo a certeza de que só se aprende o que no fundo se sabe já. Mesmo assim: a aprendizagem a que aqui me refiro é sempre necessária, como a prova dos nove para uma conta que sabemos certa. Dele recebi o segredo desta coisa espantosa que é estar viva e gosto de pensar que dele recebi lições inesquecíveis e amigos insubstituíveis.
Depois de alguns anos sem lhe fazer uma visita, reli há pouco uma parte significativa da sua obra e regressei a ela com a paciência e o método de quem arruma a casa, a morada em espelho do que nos é, sabendo eu que há releituras que são isso mesmo, a expressão contínua de uma dívida: quanto mais queremos pagá-la, mais ela aumenta. Por isso falei há pouco de nascimentos, de qualquer coisa que vai crescendo em nós sem sabermos como e quando damos por ela é já outra coisa, somos de repente novos no que pensamos, o texto lido é já outro, somos outros. Assim me confrontei com a surpresa de ter lido há tempos atrás tanta coisa que, evidentemente, sempre esteve nos seus textos e eu não tinha lido em visitas anteriores, não porque tivesse visto mal antes, mas porque não havia ainda olhos para o que se impunha ver. Ocorreu-me então que talvez os grandes escritores sejam também aqueles que sabem esconder-se do seu leitor; são como candeeiros esquecidos da sua luz, ou vozes apagadas do próprio som, estudadamente ausentes do ouvido que há-de ser. E de repente, embora nunca saibamos bem quando, acendem uma pequena luz a dizer estamos aqui, na serena impaciência da treva.
Na realidade, julgo que as grandes obras, como as de Vergílio Ferreira, são organismos vivos: desenvolvem-se, em imprevisíveis metamorfoses, reconfigurando a cada curva do tempo o espaço instável da nossa solidão, e não morrem nunca, apesar do apocalíptico vaticínio da «Tabacaria». Quando muito hibernam, recolhem-se por um tempo à domesticidade de um camarim invisível para virem a despertar mais além, num rumor redivivo de folhas novas, e quando voltamos a tocar-lhes são já outra coisa, outros os ramos sobre a fundura da raiz. Italo Calvino dizia, como é de todos sabido, que um clássico é um livro que não acabou ainda de dizer o que tem a dizer. Creio, assim, que as obras verdadeiramente grandes (como a de Vergílio Ferreira) são aquelas que encontram sempre maneiras distintas de dizer o que têm a dizer, mas também aquelas que vão sabendo dizer coisas diferentes consoante as diferentes estações da vida dos seus leitores. É por essa razão que os grandes livros não são apenas o livro que também são; são bibliotecas inteiras na restrita virtualidade das páginas, a visão transcendente de uma lombada infinita, embora não no sentido de Borges.
Muitos anos antes de a obra de Vergílio Ferreira se me ter imposto como objeto de frequentação analítica, fiz a minha entrada no universo do escritor pela porta adolescente de Para Sempre e nunca mais encontrei o lugar da saída, nem razão sequer para cruzar o limiar da porta. Cheguei a Vergílio por causa de uma casa que ainda hoje navega o grande mar de granito e silêncio da Serra da Estrela e onde eu me acolho desde que me conheço. Sempre que lá chego encontro-a pronta, preparada para a vaga, e já assim era nos idos anos 80, quando eu me punha a olhar o lume das grandes tardes de verão recortado na maré escura do granito, uma maré de postal que me devolvia o eco metálico das enxadas e do falar beirão das mulheres, o eco do malho na laje onde se dava o parto dos feijões e dos grãos de milho. Até ao dia em que eu soube que havia um romance com as palavras certas para dizer a irrealidade da montanha e daquele silêncio a tremer na lonjura: foi um verdadeiro abalo, de que nunca mais me recompus. E ainda bem.
Como o narrador deste seu romance na casa a que regressou, abri depois, uma por uma, as muitas janelas da ficção do autor (as reais e as imaginárias), seja porque importava contemplar o silêncio da paisagem, seja porque havia também que atestar da solidez das portadas. Há janelas fechadas que não sei quando voltarei a abrir, tenho aberto outras que há tempos atrás padeciam de falta de uso e parece-me que assim é que está certo: como disse há pouco, as grandes obras são organismos vivos. Depois do deslumbramento inicial de Para Sempre, acolhi-me convictamente à casa difícil de Estrela Polar, que hoje me parece de novo um pouco fria para o convívio humano, inóspita no seu quase descarnamento, como os grandes casarões medievais. Continuo, porém, a habitar o conforto doméstico de Até ao Fim, Em Nome da Terra e Na Tua Face como quem sabe que encontrou a morada certa para a sua fome, uma fome sem desfalecimentos e que é possível saciar no quase aconchego das pantufas. São três romances de uma energia felina, difícil, enigmática, perturbadora, frágil como tudo aquilo que ergue da fragilidade a sua própria força, a sua própria beleza.
A este propósito, ocorre-me pensar que, apesar de haver um bom número de cães na ficção do escritor (e há, evidentemente, uma razão para isso), é o gato e não o cão que, no reino animal, melhor simboliza a essência de uma obra feita de contemplação e melancolia, mas também de um sentido difícil de alegria, uma alegria poderosa caminhando a par de uma sabedoria inata para a celebração da elegância e da beleza, mesmo aquela que nos chega por via da experiência impensável da tragédia.
Foi assim que sempre li os livros de Vergílio Ferreira (com o raciocínio, mas também com o coração) e, apesar da diferente relação de cumplicidade que fui tendo com cada um deles, nunca nenhum se me substituiu ao anterior, porque os livros não se substituem entre si, vão-se-nos acrescentando por sucessivas decantações do espírito, seguindo por vezes a lentidão incorporativa dos sedimentos ou então impondo ao que somos o ritmo da sua própria compulsão, ardentemente assassinos na suspeita de ser o lugar da ferida a semente maior da salvação.
Escreveu há tempos o poeta Luís Quintais, a propósito da morte de David Bowie, um verso belíssimo que Vergílio talvez não desdenhasse, ele que foi de facto um extraordinário poeta, embora o tenha sido sempre fora dos limites do verso enquanto morada preferencial da poesia: «a arte é o anzol que fere a morte», é este o verso que escreveu Quintais. Ora os romances que Vergílio Ferreira nos deixou são o anzol que fere o concreto da sua morte, do seu fim biológico, abrindo-lhe e aos seus leitores as portas imateriais do tempo.
Todavia, há também que ser exigente com quem tudo nos exige: Vergílio Ferreira não teve sempre razão, mas, tal como defende uma colega e amiga minha (a Joana Matos Frias), o autor encontra sempre a maneira certa de estar errado e a isso creio que também podemos chamar coerência. Não é, felizmente, um escritor unânime, ele que sempre advertiu os seus parceiros de tertúlia e escrita contra a perigosa cegueira do unanimismo, embora, sendo humano, talvez tivesse preferido ver-se incluído no veneno doce desse embrulho. Seja como for (para lá dos ensaios e das ficções irrepetíveis que nos deixou), julgo que seria certamente difícil compreendermos o momento da revolução e o tempo que depois se lhe seguiu sem o olho desconfiadamente atento de Vergílio, sem a sua sabedoria vigilante, de que os seus ensaios e os volumes de Conta-Corrente, com os seus equívocos, mas também com os seus acertos, são a cristalina prova. É de facto a minha convicção que não nos é possível ler grande parte do século XX sem a montra insubstituível dessas páginas, que nos abre a janela para um homem profundamente político, porque profundamente crente na bondade coletiva do raciocínio, na estudada luz do pensamento.
Entendo a atribuição do Grande Prémio de Ensaio a um livro sobre a obra de Vergílio Ferreira como a ponta certeira desse anzol de que falei há pouco, capaz de ferir o lombo da morte simbólica de um escritor. Na verdade, para Vergílio (como bem sabem os seus leitores e aqueles que mais de perto o estudam), a arte enquanto forma de ler o mundo não erradica do convívio humano a sombra inexpugnável da morte (esse inapelável fim que nos sobrevirá a todos), mas introduz na consciência que dela temos um espaço de encantamento capaz de tornar suportável a espada infalível da rendição. Sabemos bem, pelo menos desde os versos finais da “Tabacaria”, que a falência das coisas onde pomos o nosso coração é uma ameaça à espera de vez, mas por ora, mesmo sem tabuleta à porta dos versos que nunca escreveu, a língua literária que permitiu a Vergílio dizer o mundo está bem viva e o estarmos hoje aqui a celebrar o facto de ele continuar a ser motivo de reflexão e escrita é uma boa prova disso. Porque neste Prémio, que a mim muito me honra, vive a chama de um autor roubado ao esquecimento.

Nota: os outros trabalhos da autora publicados até agora sobre a obra de Vergílio Ferreira são A Poética do Romance em Vergílio Ferreira e A Vocação do Lume.
Para saber mais sobre a autora:
Angelus Novus Editora – Entrevista, escritores.online, INCM Editora, Jornal Universidade de Aveiro Online, Wook
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