Grande Guerra | As festas pós-Armistício e o monumento aos mortos na Praça 9 de Abril em Vila Nova de Famalicão

Antecipando a celebração do 99º aniversário do Armistício em 11 de novembro, o historiador Amadeu Gonçalves analisa as festas em homenagem aos mortos famalicenses. 

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Com o Armistício assinado em 11 de Novembro de 1918 e o Tratado de Paz em 28 de Junho de 1919, os países beligerantes da I Grande Guerra ficaram com um enorme vazio ontológico. No caso de Portugal, a I República tentou criar, no pós-guerra, um ritualismo simbólico e cívico para a conciliação de uma identidade colectiva, criando, ao mesmo tempo, espaços públicos de memória entre os Monumentos aos Mortos da Grande Guerra e a inscrição toponímica do 9 de Abril (em V. N. de Famalicão aconteceu em plena ditadura militar, no ano de 1927).

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1919

Esta busca ritual e cívica não trouxe à I República a sua reestruturação ideológica. Se as comemorações do 9 de Abril suplantaram as do Armistício, estas nunca se verificando em V. N. de Famalicão, as primeiras foram iniciadas em Portugal em 1919, ano em que o “Estrela do Minho” publica o texto de Matos Sequeira a propósito da “acção heróica do capitão Braz de Oliveira á frente de uma bateria portugueza”, na Batalha de La Lys.

Pelo meio, em V. N. de Famalicão, ressalva-se a Festa da Paz e a consagração aos Soldados Desconhecidos, cujas comemorações foram as primeiras do 9 de Abril em terras de Vila Nova, comemorando o 14 de Julho de 1919, dia que seria feriado nacional. Nessa notícia, de 13 (?) de Julho, informa-se que a “Câmara concedeu uma verba para as festas e amanhã em Famalicão haverá o ruído esfusiante da música e da dinamite estalando nos ares”, lembrando o cronista que se não deve esquecer o “Bodo aos Pobres”. Veja-se como decorreram as respectivas festas da paz em V. N. de Famalicão:

“Famalicão festejou ruidosamente o 14 de Julho corrente, Segunda-Feira, solenizando a assinatura da Paz.

Todas as corporações embandeiraram assim, como muitas casas particulares, destacando-se um grande troféu com a bandeira francesa e das nações aliadas, com que o sr. Rodrigo Carvalho engalanou a sua casa, como já o tinha feito no dia da Assinatura da Paz.

Uma música percorreu as ruas da Vila, sendo a cerimónia mais útil e comovedora a do Bodo aos pobres, que receberam 400 broas de pão.

À noite, ostentava-se na Praça da República finamente iluminada à electricidade, sendo de lindo efeito a fachada da Câmara Municipal, às árvores do jardim com lâmpadas coloridas e a fonte luminosa. Tocou também a música, o que foi notório para toda a população ali ir gozar algumas horas bem passadas, para o que a noite de calor muito se prestou.

Foi uma festa animada e linda.”

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1920

Não se comemorando ainda o 9 de Abril em V. N. de Famalicão em 1920, com uma chamada de atenção do republicano famalicense Manuel Pinto de Sousa na sua crónica de sempre intitulada “Trabalhar”, de 11 de Abril (veja-se o discurso tipicamente ideológico e telúrico: “Passou anteontem o 9 de Abril comemorativo do feito heróico dos nossos soldados na grande guerra, que deve ser sempre recordado pelos portugueses com páginas de ouro das mais belas da história pátria”), será na festa da raça de 10 de Junho que o município famalicense apresentará o projecto para a edificação do padrão comemorativo e memorial dos combatentes famalicenses na I Grande Guerra.

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1921

Em 1921, aqui sim, o 9 de Abril será comemorado pela primeira vez na comunidade famalicense perante as homenagens tumulares aos soldados desconhecidos. Será Bernardino Machado, na presidência do seu ministério, que realizará o projecto-lei de Março que projectará as comemorações aos soldados desconhecidos, no qual se diz que “é autorizado o governo a trasladar para o Panteon da Batalha os cadáveres de dois soldados desconhecidos, mortos em combate, um em África e outro em Flandres”, considerando o mesmo que o dia 9 de Abril de 1921 seja feriado nacional. Neste âmbito, o “Estrela do Minho” irá transcrever em 19 de Março o texto do “Diário de Notícias” em franca propaganda patriótica e, na mesma data, apresenta de antemão o programa das comemorações em V. N. de Famalicão, convidando o município “todos os antigos vereadores, associações locais, pessoas gradas, o povo, enfim, solenizando assim a homenagem prestada aos soldados desconhecidos mortos na grande guerra”, convidando também “as mães dos soldados do concelho, que na guerra morreram.” Salienta-se aqui, nesta notícia, a estranha e a enigmática projecção da inauguração do Monumento aos Mortos da Grande Guerra em V. N. de Famalicão, a qual não se concretizou, a ser então edificado na Praça da República.

No dia 9 de Abril de 1921, para além da sessão solene nos Paços do Concelho de V. N. de Famalicão, o município famalicense fez-se representar no cortejo da Batalha com Júlio de Araújo, Horácio de Azevedo e Adelino Sousa, assim como a Associação dos Empregados no Comércio, que esteve presente com o seu estandarte, representado por Angelino Mesquita, Joaquim Portela, Fernando Folhadela Marques, Alberto de Sousa Araújo e Flávio Marques. Paralelamente, a Escola Primária Superior associou-se aos festejos municipais e “as associações locais tiveram todas hasteadas as suas bandeiras, além da Câmara e Hospital da Misericórdia.”

Mas veja-se o acontecimento nos Paços do Concelho (com a enigmática insistência da inauguração do Monumento, agora, segundo o cronista, na Praça da Mota, à qual, imagine-se, “assistiu muito povo, tocando durante a acção, a música dos Bombeiros Voluntários”, para além da missa promovida por Monsenhor Torres Carneiro na Igreja Matriz, assistindo “elevado número de eclesiásticos e muitos fiéis”, tendo sido “chocante o «momento de silêncio», anunciado pelo repicar dos sinos”), edificando a ideologia unificadora republicana, no texto de 10 de Abril:

“Bem podemos chamar à semana que termina hoje a semana gloriosa da pátria desconhecida.

As homenagens que recebemos das nações aliadas, que de longe vieram assistir à consagração nacional dos nossos soldados desconhecidos, deve desvanecer Portugal de justificado orgulho.

Os representantes ilustres das nações amigas, vieram reconhecer nos seus companheiros de armas lusitanos a grande pequena nação, que, desde a primeira hora, foi combater a seu lado na grande guerra.

Famalicão solenizou também a festa nacional com uma sessão solene na Câmara Municipal, à qual assistiram todos os vereadores e pessoas gradas, estando repleto o vasto salão. Abriu a sessão o sr. presidente do senado e discursaram os srs. Sousa Fernandes, José de Menezes, dr. Sebastião de Carvalho e dr. João Machado da Silva, os quais produziram discursos cheios de patriotismo, enaltecendo a heroicidade da raça portuguesa.”

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1922

A comunidade famalicense volta a comemorar o 9 de Abril em 1922 e veja-se este estranho e paradoxal texto minimalista à volta da Batalha de La Lys, entre a tragédia e a heroicidade:

“Passa hoje o aniversário da Batalha do Lis, em que o nosso exército, embora vencido pelo número esmagadoramente superior, deu provas eloquentes de valentia do soldado português de todos os tempos.”

Na mesma data publica o “Estrela do Minho” o telegrama do Governador Civil de Braga enviado à administração do concelho para a realização das comemorações em V. N. de Famalicão:

“Exmo ministro do interior encarrega-me de comunicar a V. Ex.ª procurar conseguir dois minutos de silêncio, glorificando o magnífico esforço da República intervindo militarmente na Grande Guerra, às 17 horas precisas do dia 9 do corrente, seguidos de todas as manifestações festivas que for possível organizar.”

Por seu turno, a 16 de Abril, noticia-se que “Famalicão comemorou também a data para nós gloriosa da Batalha do Lis, embandeirando a Câmara e Associações, sendo observados rigorosamente os dois minutos de silêncio, momento deveras impressionante, no seu significado de respeito e de saudade pelos que defendendo a Pátria, morreram gloriosamente por ela.”

No mesmo ano, o “Estrela do Minho”, em 7 de Maio, publica o “Edital” da Comissão Executiva da Câmara Municipal para a adjudicação da construção do Monumento:

“Faz público que no dia 22 do corrente, pelas 14 horas, terá lugar no Paço do Concelho a arrematação verbal do Monumento a erigir na praça Conde S. Cosme do Vale, aos Mortos da Grande Guerra.

A base de licitação para o Monumento que será feito em mármore de Liós e os alicerces em pedra de Afife ou de Santa Marinha, de primeira qualidade, é de escudos 9.000$00.

As condições acham-se patentes na secretaria municipal para quem as quiser examinar.

E, para constar-se lavrou este e outros de igual teor, que vão ser fixados no ligar de costume.

Secretaria da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, 1 de Maio de 1922. E eu Adolfo Cândido de Macedo Vieira de Castro e Costa, chefe de secretaria interino, o subscrevi.

O Presidente,

Augusto de Sá Pinheiro Braga”

Ficando a obra a cargo da Empresa de Mármores do Porto, Ld.ª, os famalicenses ficam a saber quem é o escultor do Monumento em Outubro, nomeadamente Luís Esteves de Carvalho, do Porto, o qual, na sua estada no Brasil, realizou “trabalhos de alto valor artístico”, a saber, as esculturas do Barão do Rio Branco e da Princesa Augusta Vitória.

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1923

O ano de 1923 ficará marcado a nível nacional, assim como em V. N. de Famalicão, pela proposta da Comissão Central dos Padrões da Grande Guerra, a qual foi a realização de palestras nos estabelecimentos escolares, sendo a temática o 9 de Abril.

Em V. N. de Famalicão quem nos dá esse testemunho é o texto do professor Luís de Almeida como título “9 de Abril” e publicado no “Estrela do Minho” em 15 de Abril; e à volta do Monumento, o habitual cronista evidencia uma ansiedade da comunidade famalicense para a sua inauguração.

Em 1 de Abril noticia-se que se prometeu inaugurar em Famalicão “o padrão dos mortos na guerra”, o qual será edificado na Praça do Conde de S. Cosme do Vale, questionando-se se “será realmente nesse dia tirado o taipal no monumento”, para a 8 de Abril comentar que serão “inaugurados muitos padrões comemorativos.”

Contudo, as seguintes notícias leva-nos à conclusão de que o monumento ainda não deveria estar pronto nesta altura, até porque em 8 de Julho comunica-se que “já chegaram as pedras para o monumento”, sugerindo-se que na sua inauguração estivesse presente o Presidente da República, estando prevista a sua visita à Casa de Camilo.

Em 2 de Setembro informa-se a comunidade famalicense que “está a chegar o resto do material”, encontrando-se em Famalicão “quatro artistas enviados pela casa a quem o monumento foi adjudicado.” Ainda em Setembro notifica-se a característica estética, referindo-se a “um dos mais formosos padrões comemorativos” e em Outubro dir-se-á que “o monumento está concluído e o seu belo conjunto artístico muito honra os seus executores”, para acrescentar o cronista que é uma “bela obra de arte, uma das melhores que conhecemos, superior até às que para o mesmo fim se levantaram em algumas cidades”, faltando a “beleza do conjunto, o ajardinamento da Praça Conde S. Cosme do Vale” para que “seja feito com arte e bom gosto”.

Será em Novembro que se começa a exigir ao município famalicense a inauguração do Monumento, levando a supor que por esta altura já se encontraria pronto. Nesta perspectiva, o texto de 15 de Dezembro é sintomático:

“Várias pessoas nos têm manifestado o seu desgosto pela demora havida por parte da Câmara na inauguração do Monumento aos Mortos da Grande Guerra.

Realmente, toda a vila deseja poder apreciar devidamente esse magnífico trabalho que honra sobremodo os artistas que o executaram, assim como a edilidade que o mandou construir.

Estamos certos que a Câmara não se demorará a deferir esses desejos, que são, afinal, os de todos os famalicenses.”

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1924

Os desejos dos famalicenses serão concretizados em 9 de Abril de 1924. Anunciando a 9, a 16 e a 30 de Março o programa provisório da inauguração do respectivo Monumento (publicando antes o “Estrela do Minho” o texto de Gabriel Severo com o título “A Cruz-Monumento aos Novos Heróis, Vítimas Abençoadas da “Grande Guerra”, sugerindo que a inauguração do Monumento em V. N. de Famalicão fosse em 31 de Janeiro com a presença do Presidente da República, já que iria nessa data homenagear os republicanos revolucionários portuenses), nesta última data projectando que “não faltarão contingentes dos regimentos de Braga; as mães e viúvas dos soldados do nosso concelho que na guerra morreram; as crianças escolares de todas as freguesias, devidamente ensaiadas para cantarem o hino da Pátria ao desfilarem ante o monumento da Praça Conde S. Cosme do Vale.

Também não deve faltar o convite aos soldados do concelho que estiveram na guerra, para comparecerem ao cortejo, com as suas fardas de campanha.

A sessão solene, no salão nobre dos Paços do Concelho, há-de ter o significado compatível com a data que se soleniza”, solicitando-se que “as paredes das casas da praça sejam lavadas, branqueadas.”

A 6 de Abril, o “Estrela do Minho” publica o seguinte programa:

“Pela manhã, alvorada com bombas e uma banda de música, ao mesmo tempo que outras músicas tocarão pelas ruas da vila, durante o dia.

Às 9 horas, recepção na estação do caminho-de-ferro do Ex.mo Ministro do Comércio [Nuno Simões], ilustre filho desta terra, que, a convite da Câmara Municipal, vem expressamente de Lisboa tomar parte nesta grandiosa consagração.

Às 14 horas haverá sessão solene no Salão Nobre da Câmara Municipal, sendo oradores, além do Sr. presidente da Câmara, o Sr. Desembargador Eduardo Carvalho, José de Azevedo e Menezes, dr. Delfim de Carvalho, Sousa Fernandes, António José Nogueira e Abade da Carreira.

Em seguida, organizar-se-á o cortejo, em direcção ao Monumento, composto de um contingente de Infantaria n.º 8, com a respectiva bandeira e com a música deste regimento, mães e esposas dos soldados do concelho que morreram na guerra, alunos das escolas, Associação dos Bombeiros Voluntários, convidados, etc., inaugurando-se em seguida o Monumento, onde usará da palavra o você-presidente da comissão executiva.

Às 17 horas terão início os 2 minutos de silêncio que serão anunciados por três tiros de dinamite.”

Entre a simbologia cívica, profana e religiosa, o Monumento aos Mortos da Grande Guerra (que se encontrava coberto com “a bandeira verde-rubro da República, foi descerrado pelo sr. Ministro do Comércio, ante a apresentação de armas dos soldados, o som guerreiro da «Portuguesa» e de vivas calorosos à Pátria, ao exército e à República”, segundo a reportagem publicada no “Estrela do Minho” em 13 de Abril) tem a encimá-lo a Cruz de Cristo (na significação do sofrimento terreno e da garantia salvífica eterna), seguida da esfera armilar e pelo escudo, pelo anjo da vitória (para G. K. Chesterton, em “Ortodoxia”, “os Anjos voam porque se encaram a si próprios com ligeireza […] Recordem-se os anjos de Fra Angelico, que parecem quase borboletas”, dando “a impressão de estarem a preparar-se para levantar voo, para flutuar nos céus.”) e, finalmente, a representação imagética do leão, entre a força e a nobreza em serenidade.

Não sabendo de antemão os critérios que o município adoptou para a inscrição e a selecção dos trinta e sete combatentes, foram seleccionados trinta e dois de França e apenas cinco de África.

Nesta inauguração participou a Escola Primária Superior.

 

Imagem de destaque: Praça 9 de Abril: V. N. de Famalicão [material gráfico] (detalhe). Amadora: Francisco Mas, Ld.ª-Editores de Artes Gráficas, [s. d.]. [bilhete-postal: Il.]. (Vila Nova de Famalicão. Praça 9 de Abril. Costa Verde. Portugal). (obs: arquivo do autor)

 

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