Mário Cesariny, o homem que se barbeava com ódio

Mário Cesariny, o homem que se barbeava com ódio

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Com ascendência corsa, italiana e espanhola pelo lado da mãe, beirão de Tondela pela linha do pai, Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu na Estrada da Damaia, ao cair do dia de 9 de agosto de 1923. Com três irmãs já no mundo — Henriette, que seria mais tarde o seu inseparável talismã, Maria del Carmen e Maria Luísa —, Mário Cesariny foi o milagre das irmãs e da mãe que o embalaram como se fosse um menino Jesus nascido às portas de Lisboa. Criado no coração da cidade, num vetusto prédio do Martim Moniz, paredes meias com a Praça da Figueira e com o Poço do Borratém, onde ainda estavam as mesmas tascas onde Fialho ceara grelos, bacalhau assado e iscas fritas junto de gandaieiras e fadistões, depressa se incompatibilizou com o pai, ofi cial de joalharia que só via o deve e o haver e que tinha oficina de prata lavrada e outras joias. Se a lenda de Mário Cesariny não começou no colo da mãe e das manas, abriu caminho neste despique com o pai, que se tornou depois a freima da sua vida.

A poesia veio depois, meio por acaso, meio por ódio

Dando de barato os livros de contabilidade do pai e da loja, acabou também por desprezar os manuais escolares e a férula dos professores nas duas escolas onde assentou — o Liceu Gil Vicente (1934 a 1936), no bairro da Graça, e depois a Escola de Artes Decorativas António Arroio (1936 a 1941), na Rua Almirante Barroso. O que lhe passou a interessar era o piano, que descobriu com a pianista Maria da Graça Amado da Cunha e com Fernando Lopes Graça, seu primeiro mestre. A poesia veio depois, meio por acaso, meio por ódio, com a boémia do Café Herminius, um estanco lisboeta ao pé da Praça do Chile, frequentado pelos cábulas da Escola António Arroio de mistura com outros ruidosos maníacos.


You Are Welcome To Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore
E há palavras nocturnas, palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

MÁRIO CESARINY —


Com este grupo de rapazes, onde estava Júlio Pomar, se meteu ele na política anti-salazarista e no neorealismo, que era então o quartel-general do estado-maior da arte em Portugal. Chegou a aderir ao Partido Comunista Português (1944) e a fazer uma folha artística, suplemento semanal de um jornal diário do Porto, A Tarde (1945), onde se estreou com sete textos — todos como crítico de arte, com exceção do último dedicado à música soviética. De seguida, a pedido de Lopes Graça, fez crítica musical na revista Seara Nova (1946 e 1947). Da poesia nem rasto, embora tenha sido por esta mesma altura que concebeu e escreveu “Notas sobre o neo-realismo português” (revista Aqui e Além, 1945 e 1946), onde a sua ideia de literatura poética pela primeira vez se coa de mistura com uma programática neorealista que era uma pedrada brava atirada aos neorealistas então em destaque. Para ilustrar uma tal veemência escreveu os seus primeiros grandes poemas — “Nicolau Cansado Escritor”, “Um auto para Jerusalém”, “Louvor e simplificação de Álvaro de Campos” e os de Nobilíssima Visão — que guardou na gaveta e só mais tarde, quando já nada tinha a perder e a ganhar, os deu a conhecer. São hoje o reverso fundibulário da farpela vincada a ferro quente com que o neorealismo se normalizou.

Ânsia desmedida de liberdade e de boémia

Torrinha demasiada apertada para quem tinha uma ânsia tão desmedida de liberdade e de boémia, o neorealismo foi em Mário Cesariny um mal-entendido ou então o sinal preparatório de coisa distinta. Na primavera de 1947 descobriu o surrealismo por meio da leitura de um livrinho de Maurice Nadeau. Aderiu com raiva e paixão, partindo de imediato para Paris com a teima de acamaradar com André Breton, que acabara no ano anterior de regressar de um demorado exílio na América do Norte e o chegou a receber, embora mais prudente que entusiasmado, na sua velha casa da Rue Fontaine. Portugal tinha fama de sacristia, era tutelado com mão de ferro por um antigo seminarista que se inspirava nas ideias de Mussolini e não podia interessar muito a um Breton desconfiado de Europas que passara já o meio século de vida e vira as maravilhas excêntricas da Martinica e os mistérios dos Hopi do Novo México.

Começou então a vida verdadeira de Mário Cesariny. Nunca separou as tintas das palavras e para ele desenho, pintura e poema eram sempre uma e a mesma criação. A crista da sua poesia em palavras situa-se neste período com livros como Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957) e Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor (1958), os dois primeiros editados por Luiz Pacheco e o terceiro financiado por Maria Helena Vieira da Silva. Mas as suas primeiras experiências com as tintas são também desta fase ardente e eletrizante, que vai até ao início da década de 60 e onde faz as primeiras exposições dos seus trabalhos plásticos, que tanto valor tiveram para ele na experimentação, aquisição e domínio do automatismo surrealista.

A dinâmica própria ao surrealismo, a libertação dos conteúdos do inconsciente, a assunção das perversões sexuais reprimidas na baixa infância e a apologia febricitante de uma sociedade desinibida que não estivesse ao serviço do trabalho e do cifrão tornaram a vida impossível ao movimento surrealista no Portugal de Salazar e muito especialmente à sua figura carismática — Mário Cesariny, que devido à sua homossexualidade acabou por ter problemas com a polícia dos costumes, com a censura e com os tribunais, que o arrolaram para um sinistro processo contra dois poemas seus, “Panasca” e “Praeludium” publicados por Natália Correia na sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965).

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Perseguido pelo Regime, desacreditado pela Oposição

Perseguido pelo regime, desacreditado pela oposição, essa que era incapaz de lhe perdoar ter cavado com mais meia dúzia de rapazes uma nova trincheira na luta contra o sistema, maltratado e incompreendido, cada vez mais isolado, sentiu-se obrigado a sair do país, primeiro para Paris, o que aconteceu em 1964, e depois para Londres que se tornou a sua cidade preferida, o seu refúgio doirado debruado de brumas nostálgicas mas também de muitas descobertas surpreendentes e exaltantes para quem pouco mais conhecia do que Cacilhas e a Póvoa, onde os seus primos Cesariny Calafate viviam e ele passara férias de verão na meninice e na adolescência.


“Há o perigo de um grito lindíssimo quando andas assim comigo no invisível.”


Com o golpe militar do 25 de Abril e a revolução que se lhe seguiu pensou que tinha chegado a hora do movimento surrealista em Portugal deixar as catacumbas onde vivia escondido e oculto e surgir em pleno vigor à luz do dia. Preparou a grande antologia de textos surrealistas internacionais com que sonhara antes e que a censura oficial do lápis azul — a mesma que o empurrou para os tribunais em 1965 — nunca deixaria passar. Publicada com o título Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial (1977), a coletânia foi desde logo recebida em França e noutros lugares onde o surrealismo fizera e estava a fazer história como uma obra única, sem par, destinada a ser um marco miliário da historiografia do surrealismo internacional e da sua atualização.

Cesariny não desistiu nem do surrealismo, nem da sua vida boémia de insurrecto

Era, porém, demasiado tarde para o velho grupo surrealista do final da década de 40 se refazer. António Maria Lisboa morrera em 1953 e Pedro Oom em 1974. O primeiro não tivera pulmão para resistir aos miasmas do Estado Novo e o segundo rebentara a bomba do coração no momento mesmo em que a liberdade entrava. Morreu a 26 de abril de 1974, quando estava amesendado com os amigos numa tasca do Bairro Alto, taça na mão, a brindar a queda do fascismo. Por sua vez, Mário-Henrique Leiria encarquilhara como folha seca.

Devastado, tolhido pela artrite, abandonado num casarão onde vivia com uma tia cancerosa e uma mãe acamada, tendo por única companhia um cão chamado Vodka, quase não se mexia. Morria pouco depois, em 1980, no mais completo abandono. Restava Cruzeiro Seixas, que Mário Cesariny conhecia desde os tempos do calção e do berlinde e que acabou por ser para ele rei, valete e duque com quem tudo fez, mas também com quem entrou depois de 1978 numa guerra de morteirada pesada que lhes deu cabo da amizade e os obrigou a um longo afastamento. Só a poucos dias da morte de Mário Cesariny, já em novembro de 2006, se abraçaram e se reconciliaram.

Sozinho, igual ao que sempre fora, tão rebelde aos 60 anos como aos 20, Mário Cesariny não desistiu, porém nem do surrealismo nem da sua vida poética de insurrecto. Continuava a ter as suas aventuras sexuais nos cinemas de ocasião, a atravessar o mistério perturbante da noite, para depois à luz tangível do dia se entregar à pintura clara das linhas de água e à sátira feroz daquele que veio a ser o seu derradeiro grande livro de poemas, O Virgem Negra — Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais e estrangeiras… (1989), que teve o supino atrevimento de descanonizar o santo oficial da poesia portuguesa do século XX, preferindo-lhe uma linhagem obscura de malditos e de aldeões que tinha em Raul Leal e em Teixeira de Pascoaes dois grandes incêndios de deboches e de estrelas.

As suas últimas palavras foram para perguntar as horas

Com quase 80 anos, Mário Cesariny continuava sem receber um único prémio. A seu lado, havia poetas e pintores da sua geração que recebiam quatro e cinco por ano. A situação agradava-lhe, dava-lhe até um ponto de orgulho interior, pois não esquecia que o poeta que mais admirava, André Breton, nunca fora galardoado. Em 2002 deram-lhe um prémio pela sua pintura e três anos depois outro pela “Vida literária” — ele que abominava a literatura, mais ainda a carreira literária, e se sentira sempre um sem-abrigo da poesia. Ainda assim, aceitou-os. Terá sido a única transigência, a exceção que fez a um sistema que sempre detestou — o dos prémios — e contra o qual escreveu uma violenta invectiva em 1962. É possível que se tenha arrependido, porque numa entrevista dada ao Expresso (20 de novembro de 2004), teve o desplante de se confessar farto e irritado com tanta atenção dada à sua obra. O que lhe interessava, disse ele na altura, não era a arte, mas a revolução.

Morreu pouco depois na madrugada de 26 de novembro de 2006 na casa onde vivia desde 1942 — altura em que o seu prédio do Martim Moniz foi demolido e a família se mudou para a Palhavã, no começo da Estrada de Benfica. As suas últimas palavras foram para perguntar as horas, como se soubesse o momento exato em que havia de partir e o esperasse com a mesma raiva e o mesmo empenho com que sempre se barbeara de manhã — ele que nunca deixou crescer a barba e aconselhou sempre, e assim o disse num poema antigo, que a barba era para fazer com ódio.


“Só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta.”


Imagens: 0) FCM, 1) Bertrand

Obs: texto previamente publicado na revista e no blogue Somos Livros, da Bertrand Livreiros, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.

Autor: António Cândido Franco


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