Ao cabo de escassos sóis, a unanimidade das trevas: uma leitura de Cormac McCarthy (1933-2023)

Ao cabo de escassos sóis, a unanimidade das trevas: uma leitura de Cormac McCarthy (1933-2023)

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1.

Há coisas anodinamente imbecis que ficam gravadas na memória, e um tipo trata de as proteger, só porque sim, à falta de amuletos maiores para conseguir manter a angústia a uma distância razoável. Clarifico: Cormac McCarthy, um dos grandes vultos das letras norte-americanas e um dos escritores mais influentes dos últimos sessenta anos, morreu a 13 de Junho de 2023, a um mês de se tornar nonagenário. Dos doze livros que escreveu, li apenas quatro, traduzidos por Paulo Faria, pela seguinte ordem: ‘A Estrada’ (The Road, 2006), ‘Filho de Deus’ (Child of God, 1973), ‘Este País Não É Para Velhos’ (No Country for Old Men, 2005) e ‘Meridiano de Sangue’ (Blood Meridian or The Evening Redness in the West, 1985). Acontece lembrar-me, tão-só, de que A Estrada foi um dos primeiros livros (talvez o primeiro) que comprei pelo Facebook, assim que cedi à razia de adicionar ao meu perfil um punhado de alfarrabistas, livreiros e editores. Comprei-o por 9 euros ao Sr. Teste, livro usado, uma bonita leitura naquele Verão (era Verão), não obstante a devastação gélida que o percorre. Ficou-me isto na memória (e pelo menos parte dela pertence já ao senso comum de quem, mesmo não tendo lido o romance, passou pela adaptação fílmica de John Hillcoat): num cenário consumado de pós-apocalipse, deserto atrás de deserto, escombros sobre escombros, um pai mostra o mar ao filho pela primeira vez. O dia dera em cinzento, o oceano tinha uma cor escura. E o pai pedira desculpa ao filho por o mar não ser azul.

2.

Admito, à primeira vista, que este remate soe um tanto ‘kitsch’; mas o defeito das palavras é assumidamente meu, não de McCarthy, que modela aquele e outros diálogos com o vento seco dos lugares que conheceu no terreno, a devastação em curso roendo até ao íntimo dos ossos, mostrando por que veredas obscuras estamos dispostos a seguir até não sermos mais do que uma monstruosa danação, vendida a alma ao diabo por mais um dia na terra. E vender a alma ao diabo, como escreveu no ‘Meridiano de Sangue’ (1985), é tão-só devolver a alma à sua origem: pois o que é o animal humano senão a criatura que Deus fez escutando instruções demoníacas? “Uma criatura capaz de tudo, capaz de criar uma máquina e uma máquina para criar a máquina. E maldade que se perpetua sozinha durante um milhar de anos, sem ser preciso alimentá-la”, diz ao rapaz proscrito o anacoreta meio louco de ‘Meridiano de Sangue’ (2008, p. 24), pouco depois de ter posto entre as mãos do jovem “um coração humano, seco e enegrecido” que encontrara pendurado ao pescoço de um pobre escravizado. Foi neste épico histórico carregado de infâmias que o crítico Harold Bloom entreviu o grande romance norte-americano do século XX. Não obstante as vanglórias literárias, é um retrato desolador de um país, em 1849, a partir da zona Sul dos Estados Unidos na fronteira com o México. Um país “cuja verdadeira geologia era o medo e não a rocha” (p. 47).

Eis o gangue de mercenários e caçadores de escalpes, sob a égide do Juiz Glanton e do capitão Holden, personagens à altura daqueles que Bataille incluíra no seu famoso estudo sobre ‘A Literatura e o Mal’: “Cavalgavam como homens imbuídos de um propósito cujas origens os antecediam, como legatários de sangue de uma ordem a um tempo imperativa e remota. É que embora cada homem ali presente fosse um ser distinto e uno, juntos formavam uma entidade que nunca antes existira e nessa alma comunitária havia lugares ermos que a mente mal conseguia abarcar, mais ainda do que aquelas regiões desbotadas nos velhos mapas onde vivem monstros e onde nada mais existe do mundo conhecido para além de ventos hipotéticos.” (p. 129).

O medo, a morte, os escalpes arrancados no saque do Oeste, os Apaches, a descrição minuciosa das carnificinas, bebés mortos espetados nos galhos de árvores, o ataque de um morcego-vampiro, o ingresso a 25 cêntimos para assistir ao “Homem-Bicho” mentecapto que mastigava excrementos, um colar de orelhas humanas como “um rosário de figos secos” a orlar o pescoço, homens que baptizam as armas, lendas contadas à volta das fogueiras. Mas também o pôr-do-sol no mar em San Diego, na Califórnia: o mar que o rapaz sem nome, aos 16 anos, vê pela primeira vez após a longa jornada por ravinas e desfiladeiros. Há uma exuberância de fauna e flora que exibe a orografia do deserto como o avesso da monocronia arenosa, deixada ao abandono: ao olhar do narrador não escapam as opúncias e o nopal, as lutas fratricidas entre moscas varejeiras, as iúcas azuis, as artemísias e os aloés, os lagartos e ratos-cangurus servidos num guisado, a sombra dos zimbros e dos amieiros, o tremular de pequenos morcegos e noitibós, o exotismo fabuloso que se desprende de nomes tais como figueiras-do-inferno, sarças-unhas-de-gato e espinheiros-da-crucificação. Perde-se a conta à diversidade de luares que irrompem no cenário. E às igrejas em ruínas, com Virgens esborceladas sustendo nos braços Cristos sem cabeça, um elenco de santos e apóstolos desmembrados, altares onde abutres vêm bicar carcaças que nem depois da morte encontraram ali o derradeiro repouso.

Eis, em suma, à velocidade dos dedos sob o frémito da memória, a tonalidade amiúde gótica e a excessividade barroca deste ‘Meridiano de Sangue’. Mas o seu âmago narrativo é uma vasta galeria de horrores engessando o mundo como um lugar corroído até às entranhas. A história de qualquer lugar é sempre uma enorme sangria: “Antes de o homem existir, a guerra já estava à espera dele. Sempre foi assim e sempre assim será” (p. 207). Por um lado, conclui o hediondo juiz, “A guerra é deus” (p. 208). Por outro, a guerra enquanto história inescapável constitui a prova acabada de que deus existe para ser humilhado pela humildade dos seus despojos.

“Os livros mentem, disse.

Deus não mente.

Não, anuiu o juiz. Não mente. E estas são as palavras dele.

Ergueu um pedaço de rocha.

Ele fala através das pedras e das árvores, através dos ossos das criaturas.” (p. 102).

3.

Uma crispação calamitosa nas suas descrições monumentais alinha este western com a sublimidade colérica do Antigo Testamento; percorre-os, no fundo, o mesmo vento, o mesmo pó dos caminhos e ermos, idênticas provações cheias de sangue. A mais mesquinha das criaturas pode servir como emissária de Deus, ou da sua imperscrutável inexistência (há diálogos incríveis acerca disto no romance); em qualquer esquina ou esconso o demónio monta o seu ardil.

O clarão iluminista, com o seu optimismo ebuliente, aparece aos olhos de McCarthy como uma imprevidência quase infantil na longa história da diáspora humana. Estamos a maior parte do tempo às escuras, cercados por trevas; e “quem poderá decifrar o motor da sua ruína?” (p. 98). E é dessa declinação tenebrosa do iluminismo que surge uma criação tão imponente quanto aberrante como o juiz Holden, espécie de Mr. Kurtz no Congo de Joseph Conrad: sempre munido do seu caderno, onde regista pensamentos e desenha retratos das espécies de animais com que se defronta, é nele que omniscência e omnipotência se equivalem de modo funesto: “Tudo o que existe na criação sem o meu conhecimento existe sem o meu consentimento. / […] Só a natureza pode escravizar o homem e só quando a existência de todos os entes sem excepção for trazida à luz do dia e todos os seres se perfilarem nus diante dos seus olhos é que o homem merecerá o epíteto de suserano da terra.” (p. 167). Num momento em que se problematiza a sobrevivência da espécie humana num planeta climaticamente desregulado, este monólogo do juiz Holden encapsula a loucura suicidária do denominado Antropoceno, que crê na Terra enquanto reserva eternamente disponível para todos os saques extractivistas.

Apesar de tudo, crer na existência de Satã e dos desígnios fraudulentos ameniza a angústia face aos desalinhos e às perplexidades no grande enigma do mundo tal como ele se desvela ao comum dos mortais: serve como álibi, justifica determinados juízos moralistas e determinadas escolhas em detrimento de outras. E é sob esse prisma que o problema do Mal irrompe nos romances de McCarthy, ou pelo menos naqueles que li. No livro ‘Filho de Deus’, de 1973, por exemplo: “Acha que as pessoas eram piores nessa altura do que são agora? disse o auxiliar. / O velhote olhava ao longe por sobre a cidadezinha inundada. Não, disse ele. Não acho. Acho que as pessoas são as mesmas desde o dia em que Deus fez a primeira” (ed. Relógio D’Água, 1994, p. 165).

4.

Entretanto, por outras paragens nos seus livros, sobe ao ar um falcão, vai um tipo para o meio do mato de carabina, há carrinhas perfuradas de balas, estilhaços de vidro e poças de sangue, ervas secas furando a gravilha e o asfalto com manchas de óleo e de pneus queimados. O vento do Oeste Americano afaga a crina do cavalo e esculpe, com pequenas aves do deserto e o uivar dos lobos, a renhida, mas por isso comovente, longa dança entre forças rivais que sustenta o ritmar da vida. Segundo Sophie Haigney, no testemunho legado à The Paris Review (16 de Junho de 2023), é do balanço entre ternura e brutalidade que se erguem os enredos de McCarthy. O amor percorre as suas páginas, como nota na mesma revista Elena Saavedra Buckley, contrariando os que fincam a exegese no predomínio da brutalidade: esta não é o cerne da questão, assegura Buckley, mas antes o pretexto para indagar sobre as tensões, as heráldicas e os mitos que lhe subjazem; e o amor, ainda que não salve ninguém da desforra, é a força que empurra a acção em diante, conduzindo as personagens ao encontro umas das outras. Para o bem — e para o mal. Terei que ler Belos Cavalos (All the Pretty Horses, 1992) para modelar um pouco melhor estes juízos acerca do amor em McCarthy.

Entretanto, de novo. Entram e saem fiscais nos postos fronteiriços, há embrulhos de cocaína, o anedotário machista e xenófobo que sai pela boca com a inevitabilidade e a moleza de um respirar. Há velhos no café remoendo as gordas dos jornais e ampliando, nesse desânimo digestivo, a paisagem arenosa onde cresceram e onde acabarão certamente por morrer, “se Deus quiser”. A fé que nutrem não se distingue de um amuo. Com um pouco mais de tempo, e desse amuo um homem passa à abjuração ou à apostasia por mero desleixo, numa espécie de abandono de si à frieza bruta dos factos, à lei da bala na qual se forjam pátrias e nações, à decepção de nunca ter havido um paraíso, mas um clima transversal de ambivalências terríveis, com breves intervalos de paz à sombra dos nossos egoísmos (pois apenas à sua sombra se cai na leviandade de gizar momentos de paz…). E por fim, com os ossos gelados, concluímos que “Deus não existe e nós somos os seus profetas” (‘A Estrada’, p. 113).

(Mais tarde ou mais cedo, pensando sob o olhar de Rui Nunes, abeiramo-nos da aflição de sermos todos exilados, herdeiros da mesma estrela maligna de Ulisses que, uma vez regressado a Ítaca ao fim de muitos anos, constatara não haver Ítaca nenhuma: nem Penélope o reconhece, nem Telémaco o espera junto às portas do palácio. Somente o cão vai ter com ele. O gume trágico que cinde, pelo lado de dentro, a consciência da espécie humana face à brevidade com que existe está toda concentrada aqui: na distância mínima e irrazoável que vai da pele de Ulisses ao focinho húmido de Argos, o seu cão.)

5.

As coisas são como são e serão sempre assim, dizem as personagens umas das outras, ou até de si mesmas. Aos olhos de quem, como McCarthy, nasceu em 1933 e testemunhou os alvoroços da Segunda Guerra, a ameaça atómica, o soporífero da televisão, o espectáculo do Kennedy a ser assassinado em directo, mais o Vietname, a segregação racial e a alunagem, o 11 de Setembro e a voragem da simultaneidade desmaterializante ou desrealizante do presentismo digital, a experiência da relação com o tempo, e em particular com o tempo da escrita, é necessária e singularmente outra coisa, com o vinco diferencial de se fazer parte de uma certa geração. Como assinala o seu tradutor português, Paulo Faria, McCarthy pertence à geração de escritores que não usa computador nem navega na internet:

“Ele cresceu num tempo e num lugar em que as crianças, qualquer que fosse a sua classe social (e Cormac McCarthy nasceu numa família abastada), aprendiam desde pequenas a pescar e a caçar, trepavam às árvores, tinham com o mundo natural uma relação de enorme intimidade. Essa comunhão, sempre com a morte à espreita, essa atenção aos ciclos naturais, essa conversão permanente do mundo físico num prolongamento das nossas mãos e do nosso olhar, tudo isso esteve sempre no âmago da escrita dele. Acabou a era dos escritores que, em garotos, foram pequenos Tom Sawyers.” (Público, 14-6-2023, em linha).

Pensando em figuras como McCarthy, assim como nos ainda vivos Don DeLillo e Thomas Pynchon, reconhece-se haver outro tipo de autoridade para muscular literariamente a matéria anónima de que se revestem os dias. Por outras palavras: fica-se condenado a ter razão. Década após década, afinal, foram muitas as máscaras que Cormac McCarthy viu cair, e muitas as ilusões que vieram incensar ainda mais a nudez mítica do rosto. Não se chega a uma última verdade, nem mesmo no leito de morte, rodeado de ouvidos atentos à cata de auspícios sibilinos desvendando o sentido ósseo das coisas; mas diz-se que é a verdade quem ri por último, e essa forma de saber é um consolo que funciona. Como ter um alicate e uma chave de fendas e a habilidade de os saber usar. Um saber mundanamente fundado, sobretudo para quem ter vindo ao mundo significa ter de sujar as mãos.

Um exemplo disso: às vezes, medita uma das suas personagens mais velhas, o maior elogio que se pode fazer a alguém é apelidar uma pessoa de “normal”. Pouco importa o redil insidioso em que estas pessoas aceitam sucumbir, como enterrados vivos, emparedando a existência neste género de tautologias proverbiais. Persiste aqui aquele fatalismo clássico, indiferente a quaisquer negociações, exposto na fluência dialógica de McCarthy, que é tão realista e verosímil na sua indigência, no seu desinteressado tu-cá-tu-lá, que até a sua transposição fílmica parece ter sido pensada de raiz pelo autor, como se os diálogos fossem de raiz guiões para filmes futuros (algo que acontecera, de facto, objectivamente: ele é o autor do argumento de The Counselor, filme de 2013 realizado por Ridley Scott). É a potência cinemática da escrita de McCarthy, o movimento intrínseco às suas imagens verbais.

As personagens falam assim, o granulado da voz emergindo a torto e a direito: “Ele é como é”, “as coisas são como são”, “quem conta um conto acrescenta um ponto”, “o que foi feito não pode ser desfeito”, “cá se fazem, cá se pagam”, “o que não tem remédio, remediado está”. Banalidades de base que nos servem hoje como já serviam aos contemporâneos de Homero. O que urge à literatura é libertar nesse banal um grão que desassossegue e impeça o pó de assentar, complacente, na mobília. O que pesa é como se respira por entre a poeira depois de um remoque desta verve, a tal autoridade vetusta, mas discreta na sua ancianidade, que irrompe pela voz de um homem que terá, presume-se, a mesma idade de McCarthy: “Não gosto do rumo que este país está a tomar. Quero que a minha neta possa fazer um aborto quando quiser. E eu respondi assim: Olhe, minha senhora, não me parece que tenha razões para se preocupar com o rumo deste país. Da maneira como eu vejo as coisas a evoluir, não tenho grandes dúvidas de que ela vai poder fazer o tal aborto. E mais: não só ela poderá fazer o aborto como vai pôr a senhora a dormir quando bem quiser.” E isto, num diálogo evocado em ‘Este País Não É Para Velhos’, “pôs um ponto final na conversa” (2010, p. 137).

O narrador não cede um milímetro ao cinismo vigente, não retira um prazer mesquinho em aflorar, neste caso, as cisões sociais sobre o aborto e a eutanásia sem com isso comprometer um posicionamento visivelmente moralista. Entre conservadores e progressistas, entre maniqueísmos ao desbarato e relativismos vários, sobretudo os que mais embrutecem no lugar de matizarem o real, como seria desejável, ou entre o preto e o branco das realidades terraplanadas a que a falsa consciência cinge o laço da paz podre da rotina, – compete, se não à vida, pelo menos à literatura o dever de mostrar a zona cinzenta em que o silêncio da dúvida permanece quente, muito depois de tudo arder. Compete-lhe, em nome da sua honra (que é a honra de se elevar acima de tudo o que é facil, pois “fácil é só a merda”, segundo o poeta Vladimir Holan), interpelar os leitores como gente adulta, que dá a outra face a contragosto. Ou, no limite, encostar os leitores à parede, como faz o psicopata homicida Anton Chigurh (o papel que valeu um Óscar ao actor Javier Bardem) à desesperada viúva Carla Jean, num fabuloso diálogo de absoluta perversidade, que passa por alimentar na futura vítima “um derradeiro lampejo de esperança neste mundo, para [lhe] alegrar o coração antes que tombe o véu, as trevas”. Mas a bala terá que ser disparada, segundo Chigurh; caso contrário, explica à vítima, “estás a pedir-me que desminta o mundo” (p. 180).

6.

Em simultâneo, independentemente das imediatas contingências históricas (ou como se tal independência pudesse, de facto, ser cobiçada e estivesse à mão de semear), perpassa pelas vozes, pelos lugares, pelo ruminar sobre o destino, a sorte e o azar, perpassa qualquer coisa de imemorial, qualquer coisa que sopra desde sempre, seja do passado ou do futuro, qualquer coisa, sensivelmente concreta, como se lê nesta passagem de ‘A Estrada’: “Um pântano morto. Árvores mortas a emergir da água cinzenta, com os restos cinzentos de barba-de-velho a penderem-lhes dos ramos. Os montículos sedosos de cinza contra a berma. Ele parou, encostado ao parapeito rugoso de betão. Talvez agora, com o mundo destruído, fosse finalmente possível perceber de que era feito. Oceanos, montanhas. O ponderoso contra-espetáculo das coisas a deixarem de existir. A aridez que tudo varre, insaciável e friamente secular. O silêncio.” (2007, pp. 179-180).

Ou então aqui, do livro ‘Este País Não É Para Velhos’, sob o signo judaico-cristão da culpa inexpiável: “Quedou-se ali parado, a espraiar a vista sobre o deserto. Tão silencioso. O sussurro grave do vento nos fios. Altos tufos de ambrósia junto à estrada. […] As montanhas de rocha em bruto toldadas pela sombra do sol tardio e, a leste, a abcissa cintilante das planuras desérticas sob um céu de onde pendiam, em todos os quadrantes, cortinas de chuva sombrias como fuligem. O deus que puniu a terra da sua criação com sal e cinza vive agora em silêncio.” (2010, p. 32).

E ainda, num clamor judicioso, a voz de um menonista em ‘Meridiano de Sangue’: “A ira de Deus jaz adormecida. Ocultou-se um milhão de anos antes de os homens existirem e só os homens têm o poder de despertá-la. O inferno ainda nem está meio cheio. Ouçam-me bem.” (2008, p. 42).

Passo os olhos por estas frases, capto-as cinematicamente (aliás: li ‘Este País Não É Para Velhos’ um par de anos após ter assistido à adaptação dos Irmãos Coen, uma ordem sequencial que teve inevitáveis repercussões no protocolo de leitura). Acrescento a estas passagens aquele timbre roufenho à la Johnny Cash, numa amplitude de alcance cósmico: como se escutássemos nas entrelinhas de McCarthy algo como “Go tell that long tongue liar / Go and tell that midnight rider / Tell the rambler, the gambler, the back biter / Tell ‘em that God’s gonna cut ‘em down / Tell ‘em that God’s gonna cut ‘em down”…

Filosofâncias destas, é certo, surge no tresler de cada leitor a sós com os livros; às personagens, de resto, importa-lhes sobreviver, fintar a bófia, a máfia, o tiro que lhes sai pela culatra. Escapar a pistoleiros sinistros, a um canibal, a todos os que não pestanejam no instante de meterem uma bala na testa de seja quem for. “Isto é o que se chama ter o Inferno a bater-nos à porta, não acha, xerife?” (in ‘Este País Não É Para Velhos’). Isto é o que se chama não se valer nada, excepto o dinheiro que se tem: por ele se morre, por ele se mata, por ele se manda matar. Todos mortos no fim, e seria preciso “construir um anexo no Inferno” (p. 56) para que lá coubessem todos.

E, ainda assim, continua-se, como a vida. Continua-se desse modo rasteiro, que nem sequer se dá conta de como é obstinado no seu fazer-se rasteiro para perseverar: para lá de todas as mentiras com que se entulha o motim diário, sobrevive enfim uma forma de “verdade”, que é o que, por cá, e por exemplo, fascina um autor como Rui Nunes quando se depara com uma escrita em detrimento de todas as outras (e há um bonito parágrafo, de uma beleza austera, acerca dessa verdade nas páginas 172 e 173 do livro ‘Este País Não É Para Velhos’); ou, então, dito de outro modo, uma forma de “real”, segundo a conhecida e tão porosa a parvos equívocos formulação de Joaquim Manuel Magalhães. Não resisto a citar o poeta e crítico neste desdobramento tão chão, sem com isso perder a elegância reflexiva, disso que entende por “real”:

“Entre as palavras e o existente, a captação é uma hipótese em contínua mutação. Olho à minha volta e sei lá como se institui o real, mesmo de uma forma relativa. Só posso saber que ao mundo multiforme responde a inquietação da minha interioridade. Ainda que goste do conceito empírico de real. / […] Sempre, em épocas menos amadas por mim, irrompiam malabarismos que procuravam destruir o princípio de indicação do concreto. Fosse o concreto a imaginação. Pois que a imaginação é uma abertura para a elevação do mundo e não um mecanismo da sua castração, na forma de um fim em si mesma. Às vezes é preciso pedir para ‘isso’, chamei-lhe real, voltar.” (“Ir dizendo”, in ‘Poesia Portuguesa Contemporânea’, ed. Bestiário, 2022, pp. 1134-5).

Cormac McCarthy palmilhou igualmente estas paragens em ‘Meridiano de Sangue’, quando põe na boca do juiz as seguintes palavras: “[…] um livro falso nem sequer merece tal nome” e, pouco depois, “Seja no meu livro ou não, cada homem habita em todos os outros e em troca alberga-os em si e assim por diante numa infindável complexidade de ser e testemunha até aos confins do mundo” (p. 122).

Cá está: cada qual se mune com os amuletos possíveis para melhor perseverar em vida, sem com isso trair a realidade que é própria da vida. Seja uma verdade que sobrevive à empáfia babosa das estórias à qual se verga a imensa maioria, iludindo-se com um poder que nunca será seu. Seja um real que é o real de se parar uns segundos, olhar em volta em silêncio, um cão ladrando ao longe, e reconhecer as mesmas trevas: o real como aquilo que fica e resiste e não se dissolve (note-se que o estilo de McCarthy é marcado pelo polissíndeto) quando se desiste de crer no que quer que seja. E eis a vida. Que nos intervalos da mais sórdida violência tem e terá pais exaustos e filhos pequenos e a promessa defraudada de um mar, demasiado longe do mar que ressoa na memória. Mas – “Assim seja. Evoca as formas. Quando nada mais tens, constrói cerimónias a partir do nada e dá-lhes vida com o teu sopro.” (‘A Estrada’, p. 54).

7.

Há uns meses, em Salamanca, num seminário sobre literatura, comentei que a escrita de Rui Nunes acaba sempre, de uma maneira ou de outra, por turvar qualquer aproximação ingenuamente virgem a outras formas de escrita e de esclarecimento do mundo. Improvisei este lance a propósito do épico ‘Guerra e Paz’, o livro que Rui Nunes considera matricial na sua escrita. Contei como li os dois volumes da ‘Guerra e Paz’ (na tradução de António Pescada, edição da Relógio D’Água) nos primeiros meses de 2023 já sob a pulsão desintegradora que Rui Nunes inflige aos textos, tornando-os meros bocados, nacos irradiantes que não se deixam apropriar por qualquer síntese, um mosaico de episódios que são tanto mais esplêndidos quanto mais realistas, e são tanto mais realistas quanto mais impiedosos, exacerbando a lenta mas progressiva corrosão dos ideais, dos altos projectos de vida, das composturas hierárquicas, dos corpos humanos, das famílias, dos poderes. De tudo um pouco, tal como na vida. É o grande livro do que resiste inacabado, porque inacabável, não obstante ser ‘Guerra e Paz’ o protótipo do romance épico, dito linear e coeso, à la narrativa oitocentista.

E é sob o signo desse inacabamento – das migalhas por varrer aos folhos puídos na roupa, das manchas de sangue pisado aos corrimentos de greda na parede – que a leitura de tudo o que Rui Nunes escreve acaba, inevitavelmente, por contaminar todas as minhas outras leituras, de outros autores, como Cormac McCarthy. Há diferenças óbvias entre a escrita de um e a escrita de outro, como são óbvias as diferenças entre Rui Nunes e Lev Tolstoi – e todavia algo acontece, algo que não é redutível a questões genológicas, a explicações historicistas, nem é fruto de um impressionismo descabelado. Embora, com o passar do tempo, mesmo em questiúnculas literárias, eu vá perdendo o pudor em admitir que o coração tem razões que a própria razão desconhece.

Ler Rui Nunes contamina-me outras leituras. Como? Fazendo dos livros verdadeiros, esses onde o real ou uma intimidade ressumam na sua contingência inabordável, livros de bocados, bocados de livros. Até mesmo nesta escolha vocabular – “bocados” – fulge menos uma provocação do que um assentimento perante o que nos excede e que tomamos por inevitável (e Rui Nunes já aflorou esta escolha imensas vezes, tanto nos seus livros como em entrevistas e conversas): “bocado” é o que resta, a sobra desprotegida, o resíduo inassimilável. Expulsa continuamente o enlevo ansioso do sentido, é estranho à benevolência da interpretação, que espera sempre das coisas mais do que a superfície que as bordeja; afinal, se o foco é a arte ou a literatura, custa admitir que as coisas artísticas ou literárias não cumpram o desígnio arquetípico das arcas, dos cofres ou das criptas, isto é, que não contenham em si outras camadas além da que é visível. Pois o bocado é todo ele de uma visibilidade atroz, sem subterfúgios nem labirintos espiralados. De um bocado não se extrai nada: nenhum sentido para a vida, nenhum tratado sobre estética, nenhum pergaminho teológico, nada.

O bocado está só aí, está completo nessa solidão desapegada. É a sobra inútil, a parte suja, o elemento perturbador porque heterodoxo até ao fim. Não chega sequer a morrer, porque não chega a ter uma vida sequer: é uma excrescência integral que não sabe tão-pouco que existe. Lê-se em ‘Baixo Contínuo’ (2017): “a vida só produz bocados: só lembramos bocados; a escrita tende a tornar-se bocados” (p. 14). No fundo, talvez seja isso a melhor parte de toda e qualquer escrita verdadeira, por ser essa, justamente, a parte que fica connosco. A parte de nós que invade o livro. Essa “fratura contínua que existe no mundo” e que Rui Nunes procura “dar na escrita” (in ‘Dizer o Mundo’, 2021, p. 92). Livros de bocados, bocados de livros.

8.

Por outras palavras: eis uma atenção votada a sondar aquilo que nas coisas, humanas e não-humanas, reacende uma primitividade em comum, uma primitividade que já é, de certo modo, perturbadoramente póstuma. Seja porque em todas as eras restam ruínas e escombros de eras passadas; seja porque, no extremo da vulnerabilidade, tudo se iguala a tudo: “somos todos bichos que se vão extinguir, que podem ser extintos”, observa o autor de ‘Neve, Cão e Lava’ (p. 35). Há neste livro, que veio a lume em Maio de 2023, justamente no bocado textual em que ocorrem os três nomes constitutivos do título, uma ilação singular acerca da força primitiva, ou subterrânea, que irrompe no gesto de escrever. “Talvez desmembrando irrompa”, assim se inicia esse bocado na página 29. Que fascina pelo que traz de “inesperado”, pelo “desequilíbrio” e pela “incerteza” que provoca, pelo seu devir-cão – recomeçando assim, naquele que lê e naquele que escreve, a viagem sem regresso de Ulisses, o intervalo irredutível entre o seu corpo e o corpo de Argos: “Todos os livros têm o seu cão, esse animal atento ao ruído do aparo. Descobrir o cão do livro que se escreve, ou lê, o cão que esperou, tenso, […] que fabrica a sua neve para que ela lhe silencie a corrida. A neve sob. Que apazigua a lava. Ou se une a ela e ao cão. E neve, cão e lava são os demónios de um texto” (p. 30).

No início de ‘No íntimo de uma gramática morta’ (2021), Rui Nunes escreve o seguinte: “Há um livro que eles não leram e que estão sempre a citar. Lê-o tu. E espera. O apocalipse não terá túmulos a abrirem-se nem mortos a erguerem-se deles, já não haverá túmulos nem mortos, só um vento árido, limpo, sem um grão de poeira.” (p. 9).

Apenas trago esta passagem à colação por um punhado muito pobre de fulminações adjacentes, mas que me despertam uma alegria muito breve: a existência de um livro, o terror da espera, a visão apocalíptica e a presença do vento. Imagens que Cormac McCarthy também concretiza em ‘Meridiano de Sangue’, uma e outra vez, nessa “alucinação de repetir” com que Rui Nunes define o deserto (cf. ‘A margem de um livro’, 2017, p. 9). Num vídeo do YouTube, o escritor surpreendeu os leitores ao surgir à conversa com David Krakauer, em Dezembro de 2017, sabendo-se de antemão como ao longo da vida o autor de ‘O Passageiro’ e ‘Stella Maris’ (ambos lançados em 2022) se mostrara sempre relutante em dar entrevistas ou confraternizar com outros escritores. Perto do final desta conversa, McCarthy assente que há algo relacionado com o deserto – a austeridade, o isolamento – que impele as pessoas a pensarem sobre certas coisas, de modo involuntário. Talvez o deserto tenda a espacializar o funcionamento interior do inconsciente, sobre o qual McCarthy escrevera um ensaio em 2017, “The Kekulé Problem”, propondo nesse texto que o inconsciente precede o aparecimento da linguagem em muitos milhões de anos. Talvez o fascínio de McCarthy por problemas matemáticos, pela mecânica quântica, pela astrofísica – passava os dias no Santa Fe Institute, no Novo México, rodeado pelos cientistas de maior renome no mundo – ilumine essa vocação de cão pisteiro para roer ossadas fundacionais, as grandes inquirições filosóficas comuns a todas as eras. E é na voracidade inclemente dos vastos desertos que fulge, nos bocados deixados a nu, a aparição exacta desse enigma primitivo, ao mesmo tempo sem mistério nenhum e tão pródigo em incertezas:

“Uma velha ajoelhou-se junto às pedras enegrecidas diante da sua porta e, soprando, reavivou uma chama a partir das cinzas e começou a endireitar os potes tombados. Em volta dela, os mortos jaziam com os crânios esfolados semelhantes a pólipos de um azul húmido ou melões luminescentes a refrescarem numa qualquer meseta ao luar. Nos dias seguintes, os frágeis logogrifos negros traçados a sangue naquelas areias iriam gretar-se e desfazer-se e ser arrastados para longe de modo que, ao cabo de escassos sóis, todos os vestígios da destruição daquelas gentes estariam apagados. O vento do deserto salgar-lhes-ia as ruínas e nada haveria, nem espectro nem escriba, para contar ao peregrino de passagem de que modo um povo vivera naquele lugar e ali mesmo perecera.” (‘Meridiano de Sangue’, p. 147).

E por fim: “Na austeridade neutra daquele terreno, a todos os fenómenos era concebida uma estranha igualdade e nenhuma criatura ou objecto, nem aranha nem pedra nem folha de erva, podia reivindicar primazia sobre os restantes. […] ali nada havia mais luminoso do que o resto e nada mais sombrio […] e um homem e um penedo vêem-se dotados de afinidades insuspeitadas.” (idem, p. 206).

 

Referências bibliográficas

 Alexandra Carita, Dizer o Mundo. Conversas com Rui Nunes e Paulo Nozolino, Lisboa, Relógio D’Água, 2021.

 Cormac McCarthy, A Estrada, tradução de Paulo Faria, Lisboa, Relógio D’Água, 2007 [2006].

________, Este País Não É Para Velhos, tradução de Paulo Faria, (sic) idea y creación editorial/Relógio D’Água, 2010 [2005].

________, Filho de Deus, tradução de Paulo Faria, Lisboa, Relógio D’Água, 1994 [1973].

________, Meridiano de Sangue, tradução de Paulo Faria, colecção “Biblioteca Sábado”, (sic) idea y creación editorial/Relógio D’Água, 2008 [1985].

Rui Nunes, Baixo Contínuo, Lisboa, Relógio D’Água, 2017.

________, A Margem de um livro, Porto, Cosmorama, 2017.

________, No íntimo de uma gramática morta, Porto, Officium Lectionis, 2021.

________, Neve, Cão e Lava (Aproximações Assimptóticas), Lisboa, Relógio D’Água, 2023.

Joaquim Manuel Magalhães, Poesia Portuguesa Contemporânea, Bestiário, 2022.

Paulo Faria, “Cormac McCarthy, o escritor que nunca navegou na Internet”, Público, 14-6-2023, disponível em https://www.publico.pt/2023/06/14/culturaipsilon/cronica/cormac-mccarthy-escritor-navegou-internet-2053259.

“On Cormac McCarthy”, The Paris Review, 16-6-2023, disponível em https://www.theparisreview.org/blog/2023/06/16/on-cormac-mccarthy/?fbclid=IwAR2PH51lgNySZ1Xsls78dWnieIP_lANSI6bEvSCqm0T3UHVZsrFVQ3GSe8Q.

Conversa entre Cormac McCarthy e David Krakauer, “Couldn’t Care Less”, Dezembro de 2017: https://www.youtube.com/watch?v=HrUy1Vn2KdI.

Fotografias: Cormac McCarthy fotografado por Kurt Markus.

 

Nota: A escrita deste ensaio integra-se no âmbito do projecto pós-doutoral Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes (referência: SFRH/BPD/114849/2016), financiado por fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia; e no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada, Unidade I&D financiada igualmente através da FCT (UIDB/00500/2020).

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Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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