Governança pública e instituições locais no Século XXI

Governança pública e instituições locais no Século XXI

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No dia 10 de junho, assinala-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Uma data privilegiada não somente para honrar o passado multissecular do nosso país, mas para refletir sobre o presente e o futuro de Portugal como pátria soberana e livre, parte integrante da grande pátria planetária que é o planeta Terra, e a sua governança, em particular.

Atualmente, torna-se cada vez mais evidente que um fator determinante do desenvolvimento dos países, para além da qualificação das pessoas e dos recursos naturais, é a qualidade das suas instituições e da governança em geral.

A governança pode ser definida como o processo mediante o qual as decisões sobre a administração dos recursos públicos são formuladas, implementadas e avaliadas, com a finalidade de prover o desenvolvimento da sociedade. Já qualidade das instituições remete para entidades que asseguram o cumprimento da legalidade e a garantia dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos.

Em termos muito simples, desenvolvem-se os países cujas instituições permitem e encorajam as pessoas a dedicarem-se a atividades geradoras de bem-estar individual e social. Por seu turno, não se desenvolvem os países onde o poder está concentrado nas mãos de uma elite em detrimento do resto da sociedade.

A história das reformas nas instituições públicas pode ser vista como uma busca contínua de uma forma de governo ideal, na qual os bens e os serviços públicos possam ser providenciados em termos de equidade, qualidade e eficiência.

Com efeito, é cada vez mais evidente que a democracia não pode ser reduzida à realização de eleições livres e periódicas para as instituições políticas.

Segundo uma determinada conceção de democracia, tendencialmente minimalista, os diversos agentes políticos, nomeadamente os partidos políticos, oferecem os seus propósitos, que são apreciados pelos eleitores. A oferta mais procurada obtém o contrato para representar temporariamente a maioria dos eleitores. Tende-se a limitar a essência da democracia a uma relação vertical entre os cidadãos e os decisores políticos.

Contudo, uma abordagem minimalista da democracia é superficial. Uma democracia madura e avançada requer, para além da realização de eleições livres, universais e periódicas, o primado do Estado de Direito, a garantia dos direitos fundamentais de cidadania e um conjunto de freios e contrapesos entre os diversos poderes públicos.

Há quem vá mais longe e inclua a dimensão dos resultados na noção de democracia. Enfatiza-se a necessidade de promover o acesso equitativo aos bens e serviços públicos e de evitar desigualdades extremas na repartição de rendimentos.

Atualmente, as instituições públicas têm grandes desafios a serem enfrentadas em todas as esferas territoriais: local, regional, nacional e internacional.

Vivemos numa época caraterizada por transformações profundas, como a globalização, os avanços científicos e tecnológicos, o aumento da diversidade social e a acuidade crescente das questões ecológicas.

Atualmente, as formas tradicionais da governança pública estão a tornar-se menos adequadas às dinâmicas das sociedades contemporâneas. A confiança nas instituições públicas está em declínio, na medida que mostram dificuldades na promoção da eficácia e a legitimidade necessárias ao progresso da sociedade. Este fenómeno manifesta-se em diversas sociedades, inclusive nas sociedades na qual os valores da democracia pluralista estão mais enraizados.

Esta situação sustentou as ideias reformistas no sentido da reforma das instituições públicas, centradas nas vertentes organizacional e gestionária.

Neste contexto, a reforma da governança pública tem implicado duas alterações estruturais da maior relevância.

A segunda grande mudança estrutural refere-se à substituição de esquemas organizacionais fortemente hierarquizados e controlados de cima de baixo por modelos mais descentralizados e flexíveis. Esta mudança tem-se manifestado através de duas formas: a nível organizacional, através da constituição de diversas entidades exteriores à administração pública tradicional (institutos, empresas públicas, fundações, sociedades anónimas, entidades reguladoras independentes, agências executivas, parcerias público-privadas, etc.); e a nível territorial, através dos processos de regionalização e de descentralização. Por conseguinte, tem existido um crescente policentrismo da organização da administração pública.

A segunda grande mudança estrutural é a valorização de boas práticas de responsabilização, da transparência e de accountability nas instituições públicas.

O sistema de city manager

Um aspeto transversal às experiências bem sucedidas de reforma da governança pública é a promoção de uma autonomia autêntica entre a administração pública e o poder político, nomeadamente o poder executivo.

Esta promoção da autonomia tem contribuído para a transparência, a responsabilização e a meritocracia nas instituições públicas, bem como para garantir a continuidade estrutural de políticas públicas para além dos ciclos político-eleitorais.

Neste âmbito, é da maior relevância fazer uma referência ao sistema do city manager nos municípios, considerando o seu papel fundamental enquanto instituições públicas de proximidade que asseguram um conjunto diversificado de bens e serviços públicos aos cidadãos.

O sistema do city manager surgiu nos Estados Unidos da América, um país que historicamente valoriza os princípios da descentralização e da autonomia local na governança pública. Por conseguinte, tornaram-se uma espécie de laboratório para o mundo no que se refere à governança municipal.

Contudo, nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a governança municipal norte-americana era frequentemente hegemonizada por estruturas político-partidárias, nas quais notáveis influentes tinham um papel preponderante.

Esta situação gerou défice de transparência nos processos políticos e administrativos, desde as eleições à contratação pública, muita ineficiência e despesa pública excessiva.

Para superar esta situação, surgiram reformadores que procuraram promover a reforma da governança municipal, inclusivamente através da aplicação dos princípios da administração científica.

Foi neste contexto que Richard Childs propôs em 1908 o sistema do city manager para os municípios e os demais governos locais norte-americanos, procurando fazer um equilíbrio entre os princípios de democracia e da eficiência.

Childs propunha que a gestão municipal fosse confiada a uma pessoa politicamente neutra e dotada de competências especializadas. O gerente municipal seria escolhido pelo conselho municipal e deveria implementar as diretrizes políticas do órgão democraticamente eleito, utilizando as boas práticas organizacionais, de modo a alcançar elevados níveis de eficiência, eficácia e qualidade nos serviços públicos municipais.

Desde a sua fundação, o sistema do city manager tornou-se progressivamente a forma de governo municipal mais popular nos Estados Unidos da América.

De acordo com o sistema do city manager, um órgão governativo democraticamente eleito por sufrágio universal e direto, geralmente designado como conselho municipal, é responsável pela definição das políticas públicas municipais, pela aprovação das leis e dos demais normativos municipais com eficácia jurídica externa e pela aprovação de outras medidas relevantes da governação municipal, como os planos municipais, os orçamentos e os documentos de prestação de contas.

O mayor, o presidente do município, é eleito pelo conselho municipal ou por sufrágio universal e direto. O mayor preside ao conselho municipal e às suas reuniões, representa o município nas relações intergovernamentais a nível estadual, nacional e internacional, nomeia membros de órgãos consultivos municipais (com a consulta e o consentimento do conselho municipal), facilita a comunicação entre os eleitos e a administração municipal e tem um papel de liderança na definição das políticas públicas. O mayor desempenha o papel de presidente tendencialmente não executivo do município e enquanto gerente municipal é o chefe executivo da administração municipal.

Incumbe ao conselho nomear o gerente municipal, o qual tem como missão supervisionar e coordenar a atuação da administração municipal, implementar as políticas municipais e aconselhar os eleitos municipais no desempenho das suas funções. O conselho tem igualmente a competência de destituir o gerente.

De acordo com o sistema do city manager, o gerente municipal deve ser nomeado independentemente de critérios político-partidários. A ênfase é colocado nas competências profissionais do gerente, nomeadamente na vertente da gestão organizacional. O mesmo acontece com os demais dirigentes da administração municipal, que são escolhidos pelo gerente, com base num sistema meritocrático.

No âmbito do sistema do city manager, prevê-se que o conselho municipal é competente para designar alguns responsáveis municipais, como o auditor municipal, o responsável pela transparência, auditoria e controlo interno do governo e administração municipal, o procurador municipal, a quem compete a representação forense do município, e o juiz ou os juízes do tribunal municipal. O tribunal municipal é o órgão jurisdicional do governo municipal, com autoridade sobre questões como ilícitos decorrentes do incumprimento da legislação municipal ou outros ilícitos previstos na legislação estadual.

Nascido e desenvolvido nos Estados Unidos da América, o sistema de city manager tem tido uma adesão crescente a nível internacional, tendo inspirado as organizações autárquicas em países tão diversos como o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, a Grã Bretanha, a Irlanda, os Países Baixos e na Alemanha, com resultados bastante positivos.

O sistema do city manager e Portugal 

O sistema norte-americano do city manager teve eco em Portugal. O Código Administrativo de 1936, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 27.424, de 31 de dezembro de 1936, foi o pilar estruturante do sistema autárquico da Segunda República, comumente designada como Estado Novo, caraterizado pela forte centralização e um controlo apertado dos municípios pelo poder central.

O Código instituiu a figura dos chefes de secretaria em todos os municípios, com exceção de Lisboa e do Porto, que tinham um regime organizativo especial. O chefe de secretaria era o alto funcionário de topo a quem competia coordenar o conjunto da estrutura da administração municipal e promover a execução das deliberações e dos demais atos dos órgãos políticos do município (conselho municipal, câmara municipal e presidente da câmara municipal). O chefe de secretaria municipal pertencia ao quadro geral administrativo, que estava sob jurisdição do ministério do Interior, o que lhe dava uma autonomia significativa em relação aos órgãos políticos municipais.

Marcello Caetano, o principal autor do Código Administrativo, elogiou explicitamente o sistema do city manager, considerando que se tratava de uma solução organizacional que permitia conciliar o que ele designava como sendo os princípios da democracia e da eficiência. O princípio da democracia tende a confiar a governação municipal a indivíduos eleitos representativos da comunidade, enquanto o princípio da eficiência constata a insuficiência de qualificações dos eleitos para resolver assuntos que não são políticos, mas de pura administração, levando à instituição de dirigentes ou gestores que dirijam os assuntos municipais segundo as diretrizes políticas dos órgãos representativos. Marcello Caetano tinha uma admiração relevante pelas democracias anglo-saxónicas, embora tivesse fortes reservas à aplicabilidade da democracia liberal e pluralista a Portugal. Além disso, Caetano tinha uma grande preocupação com o rigor e a legalidade na governança pública, embora o caráter autocrático do Estado Novo tenha colocado em causa os fundamentos de um verdadeiro Estado de Direito.

A Constituição de 1976, que marcou a constitucionalização do regime democrático da Terceira República nascido da revolução de 25 de abril de 1974, institucionalizou três níveis territoriais de poder político, juridicamente distintos e autónomos: o Estado, as regiões autónomas dos Açores e da Madeira e o Poder Local. Além disso, consagrou inequivocamente os princípios da descentralização e da autonomia local.

Em termos de organização política municipal, a Constituição estabeleceu como órgãos políticos representativos do município a assembleia municipal, a câmara municipal e o conselho municipal, este último extinto na revisão constitucional de 1989.

A afirmação do Poder Local democrático gerou uma situação nova de interação entre o novo poder político democraticamente legitimado e o poder administrativo herdado do Estado Novo.

Em 1974, Portugal era um país com défices muitos expressivos em termos de infraestruturas e equipamentos coletivos, apesar das significativas mudanças económicas e sociais nas últimas décadas do Estado Novo.

Perante as solicitações prementes das populações, as novas autoridades municipais eleitas deram prioridade à promoção de obras públicas de infraestruturação básica, como a rede viária, o abastecimento de água, o saneamento de águas residuais e a habitação. Pretendia-se recuperar o défice em infraestruturas, equipamentos e outras necessidades locais de uma forma acelerada, se possível num mandato.

Por seu turno, os chefes de secretaria pretendiam que a atuação municipal fosse feita segundo os princípios da legalidade definidos pelo Código Administrativo de 1936-1940, que ainda estava largamente em vigor, o que condicionava o sentido de urgência dos eleitos.

O resultado foi a ocorrência de conflitos entre os eleitos municipais e os chefes de secretaria em muitos municípios. Esta conflitualidade ditou o fim do cargo do chefe de secretaria.

Em nome do reforço da autonomia local, o Decreto-Lei n.º 116/84, de 6 de abril, estabeleceu o regime de organização e funcionamento dos serviços das autarquias locais e criou uma nova tipologia de cargos dirigentes dos serviços municipais, tendo sido suprimido o cargo de chefe de secretaria. Além disso, foi extinto o quadro geral administrativo. sem previamente ter criado um sistema nacional de formação e avaliação de dirigentes dos serviços municipais, sobretudo numa época em que a tendência era no sentido do reforço das atribuições e competências dos municípios.

Com efeito, em meados da década de 1980, surgiu uma nova fase de atuação dos municípios, marcada em grande parte pela adesão de Portugal à Comunidade Europeia, atual União Europeia, em 1986.

Essa fase foi caraterizada pela promoção de políticas municipais que permitam não somente a satisfação das necessidades das populações no domínio das infraestruturas básicas, mas também o desenvolvimento económico e a atratividade dos territórios, através da fixação de pessoas, iniciativas e capitais. Nesta fase, também começou a ser dada uma atenção acrescida ao planeamento territorial, designadamente aos planos diretores municipais.

Nos meados da década de 1990, foram desenvolvidas iniciativas legislativas no sentido da criação do secretário-geral municipal.

Neste sentido, mereceram destaque o projeto de legislação elaborado pelo XII Governo Constitucional (1991-1995) e o Projeto de Lei n.º 239/VII, apresentado na sétima legislatura da Terceira República (1991-1995).

As iniciativas legislativas atrás mencionadas previam que o secretário-geral municipal teria funções de apoio aos órgãos representativos dos municípios, de coordenação dos serviços municipais e de ligação entre estes e os órgãos políticos municipais. Além disso, teria competências próprias nas áreas da gestão de recursos humanos, da gestão orçamental e da gestão de instalações e equipamentos.

Contudo, as iniciativas legislativas não tiveram sequência, permanecendo a situação de concentração das funções executivas de caráter político e das funções executivas de caráter gestionário e inclusive administrativo na câmara municipal e sobretudo no presidente da câmara municipal.

Entretanto, o campo de atuação dos municípios não deixou de ser ampliado, abrangendo domínios anteriormente atribuídos ao Estado nacional, como a educação, a solidariedade social, a saúde e a cooperação externa. Além disso, desenvolveu-se uma terceira fase da atuação dos municípios, iniciada na segunda metade da década de 1990 e consolidada no presente século, na qual as questões imateriais passam a ter uma atenção crescente, como por exemplo a qualidade de gestão dos serviços públicos, a proteção do meio ambiente, o desenvolvimento económico, a inclusão social, a educação e a cultura.

Neste sentido, é da maior relevância consolidar organizações administrativas municipais que promovam a corresponsabilização dos aparelhos técnicos e administrativos na gestão municipal e prestem apoio de elevada qualidade aos respetivos eleitos municipais, criando condições acrescidas para o exercício das suas funções decisórias na prossecução das políticas públicas municipais.


Imagem: Daniel Faria


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Acerca do Autor

Daniel Faria

Nasceu em 1975, em Vila Nova de Famalicão. Licenciado em Sociologia das Organizações pela Universidade do Minho e pós-graduado em Sociologia da Cultura e dos Estilos de Vida pela mesma Instituição. É diplomado pelo Curso Teológico-Pastoral da Universidade Católica Portuguesa. Em 1998 e 1999, trabalhou no Centro Regional da Segurança Social do Norte. Desde 2000, é Técnico Superior no Município de Vila Nova de Famalicão. Valoriza as ciências sociais e humanas e a espiritualidade como meios de aprofundar o (auto)conhecimento, em sintonia com a Natureza e o Universo. Dedica-se a causas de voluntariado. É autor do blogue pracadasideias.blogspot.com e da página Espiritualidade e Liberdade.

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