Entusiasmo pela vida percorre as páginas de ‘Misericórdia’

Entusiasmo pela vida percorre as páginas de ‘Misericórdia’

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Misericórdia é um livro de Lídia Jorge que emociona, que comove profundamente, que nos expõe como humanidade, um daqueles livros sobre que tenho dificuldade e até pudor em escrever, talvez usando pinças para não estragar nada. Comovente, por vezes irónico, crítico, nada piegas. Um hino à dignidade, à resistência, à força de vontade para continuar a viver. Misericórdia é um livro maravilhoso e impossível de esquecer.

Vida de Dona Alberti no Hotel Paraíso

Maria Alberta Nunes Amado é uma dos setenta residentes no Hotel Paraíso, onde é conhecida por Dona Alberti. Os seus problemas de mobilidade são ultrapassados por diferentes cuidadoras que a transportam no interior da residência, a lavam e vestem, a enfeitam com o colar e os brincos, a acordam, lhe dão os bons dias, a deitam, a esquecem, lhe fazem a higiene sem a ouvir, sem a ver ou lhe responder, lhe fazem as confidências mais íntimas, lhe cantam, lhe afagam as mãos. Tem um gravador Olympus Note Corder DP-20 para onde dita impressões dos dias, das noites, das visitas, do que gosta e não gosta naquela que não é a sua casa, lugar de exílio, e desenha palavras com um pequeno lápis Viarco, usando a mão esquerda e a sua capacidade de extrair dos dias o que sobressai da rotina da instituição que transforma os utentes em peças iguais e sem identidade. Sente saudades das flores que amava no jardim da que foi a sua casa e guarda na bolsa que traz ao peito aquilo que ainda lhe confere algum poder, pertença e intimidade. A personagem principal de Misericórdia pode ser atormentada durante a noite pelo esquecimento do nome de uma capital de um atlas que conhece tão bem, mas resiste a essa entidade que tem vida própria – a noite – que não lhe dá descanso, trazendo-lhe memórias.

Um mundo habitado por muitos mundos

O Hotel Paraíso é feito de muitos mundos. Desde a Doutora Noronha que havia sido a estagiária Anita, o senhor Paiva sempre a querer fugir, a Dona Joaninha eternamente apaixonada e que não queria morrer sem saber ler, Lilimunde do Pará com quem Dona Alberti tanto se identifica, a cheirar a bergamota, sobrevivente das máfias da imigração e a viver o seu primeiro amor, o sargento João Almeida que trouxe do exterior um sopro de vida, o senhor Tó, alguém que nunca se quis render, Salomé, a “sólida máquina Bosch”, Ali, o marroquino “strong” e “jolie” que acreditou que aqui em Portugal seria respeitado, as senhoras que se sentiam superiores e os homens que persistiam nos seus tiques marialvas. As cuidadoras, os cuidadores chegam e partem. Partem em levas e chegam em levas. Trabalho imigrante, mal pago, precário, indispensável.

Hotel Paraíso, viver a vida num lugar para morrer

A morte era banal no Hotel Paraíso. Os que partem definitivamente, rapidamente são esquecidos e substituídos por novos utentes. Mesmo quando a vontade é desistir e ir, o final de 2019, antes do espectáculo de fogo-de-artifício a partir do terraço do Hotel Paraíso, dá a Dona Alberti uma força para continuar a viver e os telefonemas que faz são o renovar de votos que o Ano do Carro seja um ano de vida e esperança no futuro“Sinto um entusiasmo pela vida como não sentia há muitos anos” (pág. 408). Os telefonemas foram aos que lhe eram mais caros: ao senhor Frank, vizinho da casa antes do Hotel Paraíso, a Lilimunde, a menina a quem Edu Horvat não soube que deixou uma semente, à Associação da Boa Vontade que tem um voluntário que a visitou e lhe leu dois textos muito importantes e à filha a quem deseja que realize todos os seus sonhos, mesmo que ela Maria Alberta discorde das escolhas da filha.

Um cruzar de vidas nas páginas de Misericórdia: Dona Alberta, Luis Sepúlveda e Maria dos Remédios

Infelizmente, o Ano do Carro foi trágico e mortal para muitos dos utentes do Hotel Paraíso, incluindo Dona Alberti tão segura de que a noite não a iria sufocar. E também para Luis Sepúlveda, o autor das duas histórias de As Rosas de Atacama que o voluntário da Associação da Boa Vontade lhe lera: a do professor Galvez, “pedagogo da dignidade” e “Cavatori”, que homenageia os cavatori e os e as marmoristas nunca nomeados nas belas estátuas de Carrara.

Transcrevo o epílogo de “Misericórdia”:

A Maria dos Remédios, minha mãe muito amada, que me pediu que escrevesse esta história.

E a Luís Sepúlveda, meu bom amigo de longa data.

Eles nunca se conheceram, mas estão unidos no tempo das estrelas e cruzam-se no interior destas páginas”

Lídia Jorge

Boliqueime, 15 de Junho de 2022

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Categorias: Cultura, Literatura, Livros

Acerca do Autor

Almerinda Bento

Natural de Abrantese residente em Amora, no Seixal. Professora aposentada, exercendo como professora de Inglês na UNISSEIXAL. Membro da Mesa da Assembleia Geral do SPGL, colabora regularmente no Escola Informação e no site do SPGL.

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