ChatGPT e o futuro do trabalho criativo

ChatGPT e o futuro do trabalho criativo

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Primeiro o horror e o pavor. O ChatGPT é a divisão sócio-técnica do trabalho que caracteriza o capitalismo (parcelar em tarefas simples o trabalho, para aumentar a quantidade produzida) a chegar às letras e à criação artística, que deixará de ser letras e arte, deixará o trabalho criativo e passará a ser standartizada. Em vez de mais gente a saber escrever vamos ter menos gente a saber escrever e a maioria dos textos e desenhos vão ser todos iguais. Professores, jornalistas, escritores, guionistas, tradutores, designers, arquitectos, todos a serem substituídos por máquinas. Mas estou tranquila com o ChatGPT. Já explicarei porquê, no fim deste texto.

ChatGPT – escrever e desenhar ao estilo dos móveis Ikea e da roupa Made in China

No Século XIX um sapateiro tinha uma oficina com centenas  – sim, podia ser mais de uma centena – de instrumentos para fazer sapatos. Um sapateiro era um artista. Cada sapato era uma obra, de alta qualidade, feita para aquele pé. O sapateiro foi, entretanto, substituído por um designer que faz sapatos e milhões de operários que operam: colocam solas, cosem, colam, cortam, cada um faz a sua tarefa, estupidificante, de forma repetitiva. São de má qualidade e duram pouco mas são triliões de sapatos. Porque as máquinas que os fazem nunca conseguiram fazer melhor do que uma obra de um artista, neste caso de um sapateiro. A maioria dos operários de sapatos hoje não faz a mais pequena ideia de como se faz um sapato. Em breve assim será com os designers, não saberão desenhar. Porque agora este rumo chegou aos textos.

Mas não foi de agora: escrever e ler, que são a mesma actividade, requer uma educação intelectual exigente, que desenvolve o nosso cérebro e uma autodisciplina muito difícil de adquirir – tem sido substituída nas ultimas 3 décadas pelo empobrecimento dos currículos na escola, substituição da leitura pelo ecrã, substituição do ensino lento e complexo da leitura pelo ensino repetitivo de pequenos textos; substituição do jornalismo porque corta e cola; temos hoje teses de mestrado que antigamente eram trabalhos de disciplina; quilos de livros vazios; séries cujos guiões se repetem ad nauseum; professores que se limitam a repetir o que está no manual, cada vez mais fácil e repetitivo; agora com os telemóveis basta enviar um emoticon. É, por isso, que quando lemos os textos do ChatGPT aquilo nem parece mau – aquilo repete o mau que estava a ser feito há décadas. O ChatGPT vai fazer milhões de textos iguais, como os móveis da Ikea, e a roupa Made in China.

Sociedade precisa de uma rotundo Não

Porque não tenho grande angústia? Digamos que tenho com o capitalismo uma relação pacífica – é um sistema paranóico, irracional, de criar infelizes, que gera o seu antagonista, a classe trabalhadora, nós, gente com uma capacidade única de mudar o rumo da história. Ciclicamente os operários mais estupidificados, padronizados, ignorantes, rebelam-se com uma grandeza tal, e a sua força, concentrada é tal, que mudam o mundo e param a marcha da desordem. Cada um destes operários – das fábricas, professores, designers – individualmente pode ser tão desinteressante como o trabalho alienado e vazio que faz, mas em conjunto a lutar fazem o que o mais brilhante dos intelectuais não é capaz de fazer. As melhores artes, direitos, vanguardas científicas nasceram das revoluções. Por isso não percebo o medo de greves e os apelos à estabilidade, quando o que a sociedade precisa é de uma rotundo Não, um divórcio urgente, uma ruptura completa com um modus operandi sociopata.

E caótico. Sim – a estabilidade é o caos. É um casamento de violência que se mantém porque se acha que o divórcio é uma desordem. Ora o divórcio é a libertação do caos.

Caminho para cada vez menos numa escala cada vez maior

O ChatGTP é o caminho para a completa proletarização dos sectores médios, mas também os coloca na situação objectiva de serem obrigados a fazerem parte da luta contra essa proletarização. Compreenderão finalmente que a única coisa boa em fazer parte da classe trabalhadora é a capacidade de lutar para sair da classe trabalhadora.

As revoluções nunca foram defendidas pelos revolucionários para gerar o caos e levar a classe trabalhadora ao poder, mas para acabar com as classes sociais, e com o poder, e começar a criar uma sociedade de trabalho livre, criativo, humanizado, sem classes. Marx, aliás, tinha esta bela ideia – a emancipação da classe trabalhadora vai emancipar a classe burguesa, que vive enredada em desejo paranóico de poder, lutas de heranças, raiva e medo, a competição torna-os cínicos, e desumanos. Libertava o oprimido e o opressor.

O trabalho criativo, implícito na ideia socialista, nunca foi tão actual

Embora use a Inteligência Articial, o ChatGPT não é nem inteligente, nem artificial, é concentração de trabalho vivo em trabalho morto num mundo de zombies. Ou seja, ele é o que os seres humanos lá põem. Se os seres humanos que lá põem alguma coisa são cada vez menos, o ChatGPT vai-nos oferecer o que já temos hoje mas numa escala maior: todos os canais de TV são iguais, os jornais têm textos idênticos, os prédios são iguais, a roupa é igual, as casas são decoradas da mesma forma, a música é igual.

Por isso a grande questão revolucionária é e sempre foi a mesma – como construir uma sociedade onde o trabalho é emancipado e não padronizado? Essa é a ideia socialista (nada a ver com o PS ou com a URSS). A ideia socialista é a projecção de futuro de que o bem comum (comunismo é o comum) assegurado, em cooperação, nos liberta para o trabalho criativo. E o trabalho criativo é o único reino da liberdade e do desenvolvimento pleno do indivíduo. Nunca como hoje foi uma questão tão importante e actual.

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Categorias: Crónica, Sociedade, Tecnologia

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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