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1.
«Casa belíssima, jardim soberbo, companhia da melhor, mulheres gentis. Mas de repente a praça das execuções passou a ser mesmo por baixo da nossa janela e o centro do nosso jardim, tão belo, tornou-se o cemitério dos guilhotinados.» (Numa carta do Marquês de Sade endereçada a Gaufridy, 19 de Novembro de 1794.)
«Que destino, meu amigo? O nada. […] homem hoje, amanhã verme, depois de amanhã mosca, não significará isto existir para sempre? Ah!» (Marquês de Sade, Dois diálogos entre um padre e um moribundo, 2010, p. 20.)
«a escrita: breve como um início. Abandona como um meio. Torna quem escreve uma ficção. Expulsa-o da sua intimidade. A grande mentira» (Rui Nunes, Baixo Contínuo, 2017, p. 49.)
2.
O ponto de partida é um filme do ano 2000 chamado Quills, realizado por Philip Kaufman. Filtrando tudo o que mostra como se conferisse às imagens uma textura aveludada, uma atmosfera de sonho, o filme especula infrenemente sobre os últimos anos da vida de Donatien Alphonse François, Marquês de Sade (1740-1814), e das suas taras, enfiado num hospício a orquestrar outros párias tão ou mais loucos do que ele. Por lá, o libertino conheceu a jovial criada Madeleine, personagem interpretada pela actriz Kate Winslet, e com ela o Marquês criou um despudorado pacto de amizade, despudorado no abuso ínsito a certas trocas de favores, mas despudorado, justamente, como o excesso de confiança numa amizade livre de cauções e biocos, que ama o prazer, incluindo o prazer da provocação.
Não é, porém, a narrativa de Quills que me interessa relevar com minúcia crítica, nem sequer a prosa do divino Marquês constituirá, aqui, o busílis destas inquirições. Em todo o caso, algumas notas preliminares sobre a sua prosa ajudarão a compor o cenário, o qual, por sua vez, não tardará a ficar sobejamente povoado. Quanto a Sade: a imaginação do famoso ímpio já fora há muito consagrada, entre outros vultos de renome, por Georges Bataille em A Literatura e o Mal, tomando as obras do Marquês como exemplares do desejo supremo da «destruição» de tudo – «não apenas dos objectos e das vítimas que são postos em cena […], mas do autor e da própria obra» (p. 106) –, essa «determinação exasperada» sadiana para desejar «o impossível e o avesso da vida» (p. 119). Utopia maligna, segundo Pierre Klossowski, o autor idealiza uma sensualidade que aspira ao estado inorgânico das coisas, a um deserto totalmente consumado enquanto êxtase da entropia, aniquilando quaisquer fronteiras entre sujeito e objecto, superando todos os pólos contrários até à realização de uma absoluta, porquanto inconcebível, coincidência. No fundo, nada menos que o Mal como um fundamento inextrincável da humanidade do ser, que é, por sua vez, um subproduto da imensa máquina letal da natureza, pródiga em tempestades mortíferas e flagelos víricos: «Podemos nós», à luz euforizante deste materialismo, «ser culpados da direcção para a qual ela própria [a natureza] nos conduz?
Não mais do que a vespa quando enfia o seu ferrão na nossa carne» (Marquês de Sade, in Dois diálogos…, p. 21). Não mais do que acidentes, calamidades e demais razias que nos emudecem. Numa palavra: o Mal é o sublime – «um conceito», assinala Pedro Eiras, «explorado por Kant e, logo depois, pelo romantismo de Iena. Nem sempre lembramos que Sade é contemporâneo de ambos» (Tentações, Deriva Editores, 2009, p. 25).
Posto isto, eis uma passagem de Bataille que atesta, de um modo generosamente revelador, o «desvario da sensualidade» na escrita de Sade: «Ninguém, a menos que permaneça surdo, acaba de ler Os Cento e Vinte Dias [de Sodoma] sem ficar doente: e o mais doente é sem dúvida aquele que essa leitura enerva sensualmente. Aqueles dedos cortados, aqueles olhos, aquelas unhas arrancadas, aqueles suplícios em que o horror moral aguça a dor, aquela mãe que a astúcia e o terror conduzem ao assassínio do filho, aqueles gritos, aquele sangue fetidamente vertido, tudo por fim nos leva à náusea. Aquilo assusta, asfixia, traz-nos em vez de uma dor aguda uma emoção que decompõe – e que mata. Como ousou ele? E, sobretudo, como o pôde fazer? Aquele que escreveu essas páginas aberrantes sabia bem que estava a ir o mais longe que nos é possível imaginar; nada existe de respeitável que ele não injurie, nada de puro que ele não macule, nada de jovial que ele não cumule de terror. Cada um de nós é pessoalmente visado: por pouco que ainda tenha de humano, este livro atinge como uma blasfémia, e como uma doença do rosto, o que existe de mais importante, de mais santo. E se fosse mais além? Na verdade, este livro é o único em que o espírito do homem está à altura daquilo que existe. A linguagem de Os Cento e Vinte Dias é a do universo lento, que degrada de modo seguro, que suplicia e destrói – a totalidade dos seres que trouxe à luz do dia.» (A Literatura e o Mal, Letra Livre, 2016, pp. 120-1).
Ter por missão fazer da escrita uma sonda enviada a um não-tempo e a um não-lugar que projecte o fim da consciência face a um acto transgressivo. Até que não reste sequer a própria escrita, apenas um nada reverberante, reverberando o nada (note-se como Sade deixara instruções para que, depois de morto, não restassem quaisquer vestígios da sua existência física para memória futura: «Uma vez tapada a cova, espalhar-se-ão em cima dela bolotas, para que o terreno da dita cova fique guarnecido e a mata forrada tal como estava antes…», cita Bataille a partir de Apollinaire, p. 106). Apologia do crime, deboche total, corrupção sem fim. Com estas formas de violência Sade acaba por reinventar a razão de ser dos corpos: por mais ignóbeis e indigestas que sejam as descrições, um corpo é arrancado à torpeza comedida ou à sua banalidade para devir qualquer coisa tenebrosamente empolgante, mesmo que pague o preço com a vida. Mas não nos iludamos, se acaso, por automatismo, estamos dispostos a pôr o dedo em riste e a isolar Sade (ou outros epígonos, conscientes ou não de o serem) daquilo que presumimos ser a inocência da nossa conduta, código de valores ou filosofia de vida – pois as obras de Sade matizam a desfaçatez da mais inocente das crianças que nos acusam de andarmos nus na parada dos dias. Voltando a Pedro Eiras, nem o Húmus de Raúl Brandão pode ser acusado de atentar contra a existência Deus, nem a Justine de Sade descobrira a pólvora no tocante às taras e manias deixadas ao deus-dará sem um programa pedagógico: «Nenhuma entrada no delírio, só um regresso ao instinto, filosoficamente explicado. Odisseia do mal» (Tentações, p. 22).
Neste sentido, nada de novo sob o Sol – apenas a sombra mínima, esse breve toldo lunar sob o qual nos abrigamos para espreitar a incandescência do astro. A escrita, portanto: olhar o Sol de frente, matar e morrer no papel, ser e não ser a desoras no mesmo instante.
3.
De Quills, como motivo de fundo para esta deriva, interessa-me uma proferição dada a certa altura pela personagem de Winslet. Quando o abade Coulmier (Joaquin Phoenix), que nutre afectos reprimidos por Madeleine, põe em causa a integridade moral da amiga, incapaz de compreender como pode alguém apreciar semelhantes compêndios de depravações sexuais, sem pingo de subtileza ou refinamento literário, Madeleine, com uma simplicidade escorreita, perfaz este discreto mas poderoso libelo em nome da literatura, ou do que a literatura ainda pode: «If I wasn’t such a bad woman on the page, I couldn’t be such a good woman in life.»
A situação é mesmo assim: diante dos livros, começando qualquer leitura que considere digna do meu aprazado tempo de vida, regresso quase sempre a essa frase de Quills, lembro-me amiúde dela sem outro porquê senão o da sua vingativa inocência; ou – o que é mais lídimo e rigoroso admitir – paira sobre cada nova leitura, qual assombração benigna que vem mais do futuro que do passado, a força irradiante daquele cometimento: «If I wasn’t such a bad woman on the page…».
(Num paralelismo que tem tanto de rebuscado como de imbecil, esta deixa do filme está para mim como estão as fitas de Leonard Bernstein para a Lydia Tár/Cate Blanchett no extraordinário Tár de Todd Field (2022): uma forma de «regresso ao real», com a maestrina de volta à casa onde passou a infância, aninhada em frente a uma televisão antiga e um leitor de VHS, com o estertor da sua ruína a recolher os ecos de lugares-comuns que a vida da personagem, ao longo do filme, tanto fez por denegar: ali, no escuro do sótão, de lágrimas nos olhos, escuta Bernstein, a preto e branco, tocando sem ornatos no poder da música para dizer o que nos vai na alma, o inefável dos sentimentos, um punhado de obviedades que só por excesso de caução académica ou de cinismo enquanto habitus somos impelidos a colocar à distância sob a etiqueta do kitsch ou recorrendo a um par de aspas.)
De novo: «If I wasn’t such a bad woman on the page, I couldn’t be such a good woman in life.» Madeleine profere esta afirmação na intimidade de um murmúrio – mas um murmúrio convicto da extraordinária alegria que sente quando transcreve à luz das velas os enredos moralmente incorrigíveis do Marquês, toda aquela imaginação depravada em torno do sexo e da violência, enxovalhando o beatério do paraíso cristão para refundar o jardim das delícias no tempo precário que nos assiste, corpos mortalmente falíveis, aos quais a volúpia merece ser concedida como um convite a explorar uma outra gama de intensidades por fruir, sem que à morte, ou à efabulada vida que se lhe sucede, sejam delegadas tarefas expiadoras ou périplos infernais. Madeleine, tão dócil como espevitada, vai assim ao encontro do traço distintivo que Virginia Woolf, num texto de 1916, considera fundamental no «verdadeiro leitor»: ser «essencialmente jovem». Complete-se o retrato: «Um jovem possuidor de uma intensa curiosidade; cheio de ideias; de mente arejada e comunicativo; alguém para quem a leitura é mais como um enérgico exercício ao ar livre do que horas de estudo entre quatro paredes; avança pela estrada principal e escala montanhas até a atmosfera ser quase rarefeita demais para conseguir respirar; para ele, esta não é de modo algum uma busca solitária» (do ensaio «Horas numa Biblioteca», 48 Ensaios, 2022, pp. 51-2).
Na flor da mocidade, tão cheia de vida num contexto tenebroso como o daquele antro, onde reparte a gangrena dos dias a lavar lençóis, a varrer celas e a despejar penicos, ler a mirabolante sordidez do prisioneiro Sade é nada menos do que o intervalo que permite a Madeleine viver uma experiência rara. Uma experiência, quiçá, de libertação e escapismo – essa porta dos fundos da literatura através da qual se reentra no real (e) irreal da vida, aprendendo a cada investida que nem tudo fica exactamente na mesma depois de lido o que se leu. Quer dizer: que se capta sem grandes engulhos teoréticos a diferença mínima entre as coisas, entre a ficção e o real, entre o risível da intuição de se saber por dentro como estas coisas coalescem, se tensionam. Mas a diferença mínima essencial para que viver e sobreviver não se equivalham no mesmo inane torpor.
Condenar-se à miséria simbólica dessa equivalência, eis portanto a única e verdadeira infâmia, e não as diabólicas páginas com a assinatura do Marquês. É por essas páginas fulgirem por aquilo que são e pelo que fazem acontecer aos olhos de Madeleine que, seguindo Jacques Rancière, o poder da ficção não é redutível à minudência doméstica de um «tesouro que os simples se transmitem de geração em geração, juntamente com os móveis da família e as tradições da terra ancestral»; pelo contrário, a ficção «é a capacidade de, a cada vez, retomar o salto no não-começado, de transpor de novo o bordo para entrar nos espaços onde todo um sentido do real se perde, juntamente com as suas identidades e referências» (As Margens da Ficção, 2019).
4.
(Um salto para outro filme com a mesma atriz: desta vez, Little Children, 2006, a partir do livro homónimo de Tom Perrotta, com realização de Todd Field, o mesmo autor do já mencionado Tár. Dos cadafalsos e corredores insalubres no asilo de Charenton, a pobre criada no corpo de Kate Winslet devém a mulher doutorada em literatura tentando mitigar a insatisfação existencial de viver nos subúrbios, como mãe com pouco instinto maternal e como esposa sem amor pelo marido. Nisto, numa tertúlia com as amigas em torno do livro do mês, a Madame Bovary emerge, ao nível da substância narrativa do filme, como a mise-en-abîme ou o metatexto mais óbvio para que a personagem de Winslet acabe falando de si por interposta persona. Mas a grande força desse momento é o seu monólogo, enquanto hermenêutica desabrida do romance escrito por Flaubert: nada menos que a renúncia a uma vida de miséria quando se pode, pelo desejo, renascer para a vida, potenciar na existência um sentido vital. Cito: «When I read it in grad school, Madam Bovary just seemed like a fool. She marries the wrong man; makes one foolish mistake after another; but when I read it this time, I just fell in love with her. She’s trapped! She has a choice: she can either accept a life of misery or she can struggle against it. And she chooses to struggle. […] She fails in the end, but there’s something beautiful and even heroic in her rebellion. […] It’s the hunger. The hunger for an alternative, and the refusal to accept a life of unhappiness.»
Dir-se-ia, na esteira de Peter Sloterdijk, ou retomando a jovialidade do leitor proposta por Woolf, que a leitura constitui sobretudo um exercício autogéneo de transcendência nos limites da imanência liminarmente humana: espécie de atletismo do espírito, para o qual o rasgar da fita no desfecho da meta intensifica a luta de quem corre consigo mesmo para ultrapassar, mais do que os adversários na pista, a morosidade do adversário interior – ou, indo à génese dos Jogos Olímpicos, para superar as forças insuperáveis dos deuses, tornando-se deus na terra, ou fazendo da terra um Olimpo de homens que rivalizam entre si como deuses. Nesta óptica, a leitura é nada menos do que o conflito de uma Bovary/Winslet que, contra a infelicidade mesquinha do seu casamento, escolhe a insensatez do sentido que é a pregnância própria da vida. Ler, aqui, é apenas a senha de acesso a um exercício de auto-superação; como se pairasse sobre cada leitura o famoso verso de Rilke, no soneto dedicado ao torso arcaico de Apolo, que caberia a cada leitor tornar o mais literal possível: «tens de mudar de vida».)
5.
Naquele inferno gradeado, a salvação é justamente aquilo, aquela é a sua forma de vida: o pequeno luxo de segurar um livro e por ele imaginar o inimaginável, intervalando o que se é, ou quem se é ou se julga ser, com a irrupção insuspeita de tudo o que se desconhece ser, ou até mesmo do que se rejeita vir um dia a tornar-se. O espaço literário predispõe-se, neste gesto, como o mais solidário, ou o mais inclusivo, de todos os abrigos: a literatura seria menos um espelho para o fastidioso narcisismo de cada um por si, e muito mais uma porta, uma janela ou uma fissura mínima que abrisse para lugar nenhum e, por isso mesmo, para todos os lugares. «Fechem as vossas bibliotecas se quiserem», escreveu Virginia Woolf no seminal A Room of One’s Own, em 1929; «mas não haverá portão, fechadura ou tranca que nos possam impor à liberdade de espírito». Reivindicava Woolf o direito ao seu próprio corpo como mulher escritora num contexto incomparavelmente menos opaco no tocante ao patriarcado – e fazê-lo era instigar a língua literária a dizer o avesso do mundo, a fazer desse avesso uma língua de festa, a quebrar molduras, a partir todos os espelhos viciados, criando reflexos para novas imagens. Reconquistando o rosto para poder, enfim, ousar perdê-lo, ousar devir sem fim tudo o que pode um corpo na transgressão de si, no escândalo de existir enquanto prodígio imanentemente mortal. «Nunca ser nós mesmos e sê-lo no entanto sempre – eis o problema», sublinha Woolf noutro lugar.
Neste espaço, abre-se a possibilidade tão incrivelmente irresponsável de imaginar a coexistência, pacífica ou não, entre anjos e demónios, uma comunidade de virtuosos canalhas, de vândalos soberbos, de criaturas simultaneamente capazes das mais altas aspirações e dos lances mais desprezíveis. Sem a promessa dessa possibilidade, a prosa do Marquês deixaria de ser aquilo que era intensamente para a personagem de Kate Winslet: o êxtase maligno que, para voltar a Woolf e às suas palavras, constitui «uma espécie de humilhação misturada com alegria». Adulterar passagens, emendar vícios, corrigir defeitos com eufemismos, sancionar orgias – deste jeito, Madeleine receberia nas suas mãos nada menos do que folhas mortas. Nada menos do que variações inconsequentes da impostura da vida, com borrões de tinta pelo meio. Sem charme, sem dissenso, sem a mínima fagulha de atrito que dignifique a matéria e a materialidade dos corpos, a sua angulosa reunião de defeitos, dores, cicatrizes, excessos. Mais a humidade suja da terra, o hálito na contiguidade das caras, a insídia endémica do mal e das suas proliferantes subtilezas. Tudo isto caotiza e desestabiliza a asséptica disposição do mundo vitrificada em frases impecavelmente polidas, filtradas segundo preconceitos, inspecções morais ou poetastros de domingo, habilidosos no engonhanço do açúcar, na modorra da burrice e do gárrulo cliché, arrotando slogans para consumo fácil e tráfico de ideias feitas – uma espécie, em suma, de instagramização da vida que só nos expulsa a todos do que quer que valha a pena ser vivido, sequer imaginado.
Um excesso hipocondríaco de cuidados e vigilâncias sobre o que pode a literatura – trocando os «gordos» por «enormes», ou os «cegos» por «invisuais», fora outros esdrúxulos paliativos – concorre sobretudo para infantilizar consciências, abdicando da oportunidade única, dádiva da arte da linguagem, de nos tornarmos «mais adultos», segundo Milan Kundera, se acaso formos sensíveis ao «saber existencial» contido nas páginas de gente moralmente vil. «Porque é aí», prossegue Kundera, «que reside o poder da cultura: resgata o horror transubstanciando-o em sabedoria existencial» (Os Testamentos Traídos, 2018, p. 219). A pretensão de analgizar a literatura, ou qualquer outra realização artística, labora pois no equívoco de se passar pela vida sem o impacto da dor, a sensação abrupta do medo, a ansiedade do sexo, o baque de uma ofensa, de um juízo ambivalente. Não existe nada, nem sequer literatura que preste, sem o real da contingência, «a tremura desordenada das mãos a corroer todas as coisas» (Rui Nunes, Baixo Contínuo, p. 53). Uma inversão absoluta deste real, onde não restasse ambiguidade e tudo fosse transparente, seria o equivalente a tornar realidade os sonhos de Sade, ou a despertarmos no pior dos piores totalitarismos. Longe disso, fiquemos meramente pela rama do risível – algo muito afim do que escreveu Byung-Chul Han (2020) numa das suas observações críticas, ao parodiar um conhecido conto infantil: o artifício de postular uma comunidade de sobreviventes que se deita por cima de toneladas e toneladas de colchões só para esmagar a remota suspeita de haver sob o último deles uma inefável ervilha que lhes perturbe o sono.
6.
Pontas soltas, redemoinhos, evidências turvas. Num versículo do evangelho apócrifo de Pedro, que Frederico Lourenço verteu para português, lê-se que, aquando da crucificação de Jesus, «Muitos andavam às voltas com lamparinas, pensando que era noite; e tropeçavam.» Uma bela imagem para a literatura e o pensamento que a ladeia: andamos às voltas pelo texto, iluminado, a sondar o seu mistério, e nunca há claridade suficiente nem olhos bem abertos que nos protejam de ir ao chão. Nada de novo, pois, quando se quer apagar uma luz acesa ou, pelo contrário, iluminar onde está escuro. Mas que dizer da loucura de quem se atreve a acender a claridade para ampliar o dia? Que dizer da leitura, se é de poesia que falamos, senão que é «esse jogo de cabra-cega jogado hipoteticamente sem venda nos olhos», como o fazia Eduardo Lourenço? Pontas soltas, redemoinhos, evidências turvas.
«Leio o que lá não está, ou o que talvez lá não esteja. E que texto é este? Que deformidade? Leio a minha própria deformidade. Não sou eu quem lê, são os meus olhos: eu sou tudo o que sobra deles. Lêem a sua anomalia, cegam uma ou outra palavra, transformam uma ou outra letra, desviam: e o texto fica grotesco. É uma doença que o escreve. Porque há os olhos e o mal que há neles. Há portanto uma guerra: a do sentido contra a insensatez. Mas a insensatez, por vezes, é a fracção mínima de um desvendamento.» (Rui Nunes, Baixo Contínuo, pp. 27-8.)
«O homem é aquele que avança no nevoeiro. Mas quando olha para trás para julgar os homens do passado não vê nevoeiro algum no caminho deles. No seu próprio presente, que foi o futuro distante dos homens do passado, o caminho destes parece-lhe inteiramente claro, visível em toda a sua extensão. Ao olhar para trás, o homem vê o caminho, vê a gente que avança, vê os seus erros, mas o nevoeiro já lá não está. E, no entanto, todos, Heidegger, Maiakovski, Aragon, Ezra Pound, Gorki, Gottfried Benn, Saint-John Perse, Giono, todos eles marchavam no nevoeiro, e podemos perguntar-nos: quem é mais cego? Maiakovski que ao escrever o seu poema sobre Lenine não sabia onde levaria o leninismo? Ou nós que o julgamos com o recuo de décadas e não vemos o nevoeiro que o envolvia?» (Milan Kundera, Os Testamentos Traídos, p. 224.)
7.
Enquanto «direito a dizer tudo» (Derrida), a literatura consuma em si o máximo imponderável de inclusividade. Mas não será menos lícito pensar no termo às avessas, ou pensá-lo de maneira oblíqua, e, mesmo assim, continuar a granjear para os estudos literários esse condão infalível de conter todos os mundos no mundo: a literatura inclui-nos a todos na justa medida em que nos expulsa e nos exclui. Somos sempre o outro do outro, convém lembrá-lo (pese embora sobre esta tónica da alteridade, ao fim de largas décadas de filosofia da diferença, um certo desgaste, algum ranço crítico). A cada singularidade – a sua irredutível diferença, a sua exclusividade de direito próprio: o direito a cada um devir o seu próprio enigma, a manter intocável a proximidade que se funda na distância que, em simultâneo, nos leva aos outros e deles nos afasta, tanto quanto nos leva a nós mesmos e nos lava, enfim, desse nada que é tudo, memória da memória, se tanto.
(Rui Nunes: «Um corpo nu a meu lado era só um corpo nu. E eu era o exterior de um corpo nu, como um som é o exterior de outro som. Incomunicáveis», Baixo Contínuo, p. 30.)
A par disto, que esperar dos inumeráveis mundos literários senão uma outra dobra nessa distância próxima, ou nessa proximidade irremediavelmente distante, como uma porta que ousámos desenhar a giz numa parede de chumbo? Começa aí o gesto da literatura, numa porta generosamente esquissada que logo nos exclui e nos expulsa. (E deixo aqui a ponta eriçada de um novelo que poderá servir para enredamentos futuros: por um lado, um bocado textual de Rui Nunes, no livro O Anjo Camponês, onde se lê «a intimidade de uma porta» que fica «a separar o vento do vento, a estepe da estepe, o bosque do bosque», uma porta que não abre passagem para lugar algum, mas que interpõe entre nós e os outros, ou entre nós e as coisas, a pura facticidade do que é simultâneo no mundo; por outro lado, daquele que constitui o livro matricial de Rui Nunes, o monumental Guerra e Paz de Lev Tolstoi, uma passagem que descreve o sonho derradeiro do Príncipe Andrei Bolkónski, momentos antes de morrer: um sonho em que «tudo fica reduzido à única questão da porta fechada».)
Não somos o insecto medonho em que Gregor Samsa se transforma, não somos o Príncipe Andrei a embastecer a loucura do mundo num par de ameixas furtadas que não chegará a provar, etc., etc. E, não obstante, é desta negatividade que se fazem os ligamentos, tanto físicos como imateriais, dos mundos no mundo. Isto é – e reformulo aqui a leitura que George Steiner faz do fascínio à volta de Tolstói e Dostoievski, quando assegura que estes autores russos «não são apenas lidos, acredita-se neles» –, crê-se na literatura e na poesia, no sentido em que somos todos, enquanto comunidade de falantes e escreventes, para o mal e para o bem, a promessa recursiva desse pronome plural aflorando um comum sanguineamente partilhado: um comum onde, amiúde, a solidão exaspera como acontece ao homem-insecto de Kafka; um comum onde, amiúde, a faca e o queijo que possamos deter numa mão de nada nos valem para cortar às fatias o oneroso vazio que da outra mão se lança a roer-nos a consistência existencial de tudo, a começar pela ilusão do nosso próprio poder. Um comum, em suma, que experienciamos pelo facto inalienável de sermos, cada um de nós, um corpo, numa morfologia anatómica genericamente previsível, com braços e pernas, com olhos e ouvidos, mais prótese menos prótese, um corpo que come, caga, fode, pesa, mirrando de dia para dia. E porque temos o desejo de amar e de sermos amados, «e de não morrermos depois dos nossos filhos», como diz Amalia Bautista num poema. E porque temos uma consciência que coabita com o inconhecível da morte a partir dos mortos que conhecemos e do rastro de estilhas a que as coisas se vão reduzindo à nossa volta. E porque, no fundo, como diz Sloterdijk, cabe-nos fazer alguma coisa com a circunstância nua de termos nascido – como inventar para o facto de aqui estarmos um sentido de existência, uma existência com sentido. (Existir é ex-sistir, fazer jus à excentricidade, galgar o centro imaginário de nós mesmos e avançar pelo desconhecido.)
A hegeliana «noite do mundo» que apreendemos ao olhar alguém olhos nos olhos será, porventura, a manifestação física que põe em evidência a eventual estranheza abstractizante da referida negatividade: nós não somos os outros, nem os outros são o que somos. Nisto, o que a literatura pode é corresponder ao exterior deste negativo, ser a afirmação inesgotável dessa negatividade. Contra as tempestades de aço hermenêutico, selando de tal maneira a existência concreta e imediata das coisas sob a altivez desrealizante de um qualquer pós- ou de um insípido -ismo, a essa afirmação inesgotável da diferença na e pela literatura basta, por vezes, o reconhecimento franco desta «consentida fragilidade» humana, segundo o poeta António Osório: ser-se capaz de «dar, num verso, a outra face». O que supõe, de antemão, que se reconheça existir uma «outra face» à espera de ser recebida — como uma dádiva livre, sem o aguilhão da culpa ou da dívida, um convite à mais elementar coexistência no mundo.
Sem cair no cinismo das generalizações para proveito enfático das palavras, independentemente das colorações culturais ou etnográficas que nos moldem o olhar, vir ao mundo, segundo Sloterdijk, significa também, e muito simplesmente, que há esse mundo a que se chega por humilde condição biológica. Mundo em comum que, o mais das vezes, naquilo que é essencial ou sentimos como verdadeiro, nos dói vir um dia a perder – não pela rara pedra preciosa apenas ao alcance do mais bravo entre nós, mas sobretudo pelo godo baço que apanhamos na praia, o mar calmo à vista de todos, um Verão lembrado porque vivido com alguém. Um mundo em comum que nos toca por estes nadas banais, e não tanto pelo clamor original disto ou daquilo, ou por alguma vontade drástica de rompimento a cada instante: «Se escrevo», diz o poeta grego Styliános Kharkianákis, «não é porque tenha algo de novo a dizer», mas «porque me mato a procurar / A mais concisa representação gráfica das lágrimas» (tradução de Manuel Resende).
Creio essencialmente neste fundo em comum que vem nos livros despojado de qualquer intencionalidade dramática: quando nada se passa, quando o que acontece é esse nada encorpado onde tocamos amiúde no limite do que nos é animicamente suportável. Pode ser apenas isto: a mão que leva o talher à boca, um barco ao longe, um pouco de serradura, o cheiro a canela, alguém que leva um balde de água ao feijoal. Uma belíssima legenda para estes triunfos da imobilidade, encontro-a numa referência a Sartre feita por João Miguel Fernandes Jorge (não descobri ainda a passagem original): algures, Sartre descreve uma menina que «[saía], pé ante pé, do seu jardim e fechava atrás de si a cancela, para depois regressar, sem o menor ruído, só para ver como era o jardim na sua ausência» (O Próximo Outono, 2012, p. 108). De todas as personagens possíveis, a minha afeição vai para as matizações desta ausência, para o modo como a endereçamos uns aos outros.
8.
Aqui chegados, por onde é que se começou? Pela voz de Winslet fazendo de Madeleine no filme Quills: «If I wasn’t such a bad woman on the page, I couldn’t be such a good woman in life.» Um pouco a lógica da batata: oração subordinada condicional seguida de oração subordinante; o tropismo da salvação pela arte; o simplismo maniqueísta da oposição «bad»/«good», etc., etc. Mas também, ou sobretudo: a constatação, talvez involuntária – e por isso mais verdadeira, porque não depende de Madeleine, nem de nós –, de que não se escapa à condição da linguagem, à fala que nos fala, ao diálogo em que acontecemos. Ouvimos Madeleine proferir o discurso no filme, mas mesmo que não o fizesse e permanecesse em silêncio, mesmo que assistíssemos apenas ao seu mover de olhos diante dos textos, seria logo aí, nessa evidência, que irromperia a vontade dialogante da linguagem, a escuta que antecede, como momento inaugural, toda a palavra latente ou manifesta: a esse «tu» se responde, a esse «eu» desde sempre cindido se endereça uma resposta a uma pergunta que não se fez, uma pergunta que se pode levar a vida toda a fazer.
(Não mais perscrutar quem eu sou, antes escutar quem me chama – algures, não sei em que livro, Maria Gabriela Llansol escreveu isto, com palavras idênticas. Mas tenho aqui à mão O Texto-Catarina que nomeia «os diálogos» na escrita como «o tacto do texto» (p. 34); e o tacto não decifra o sentido, nem furta ao texto – ou ao corpo – o seu enigma. À luz de Lucrécio e de uma certa tradição fenomenológica, não é o tocar o sentido por excelência que afirma o que resta de heterogéneo na diferença, o que não é redutível a uma unidade? (Rui Nunes, de novo: «Um corpo nu a meu lado era só um corpo nu. E eu era o exterior de um corpo nu…».) Que seria, então, da leitura sem o afloramento desse toque, dessa compulsão dialogante, que convida Madeleine, lendo Sade, lendo-se a partir de Sade, a ser chamada a viver uma vida maior que a vida, que é a única vida possível? Mais um passo neste sentido, e a leitura de Sade age como mediação de uma experiência mística…)
«If I…» Descentramento, diferição, jogo de máscaras, repossibilitação de tudo, polivalência de todos os contrários, pausa de alegria seráfica. Em qualquer arte, no fundo, subsiste o dissídio mais prontamente reconhecível na arte dramática, segundo lapidou Shakespeare ao nomear-nos a todos como actores no teatro do mundo: ora somos o «eu» que devém a mais pérfida das mulheres lendo as páginas de Sade; ora somos o «eu» de uma bondade tocante por entre as agruras da cidadania. Mas talvez haja mais fundura no recurso às aspas na frase anterior do que na veemência do pronome que as aspas acolhem – e talvez isso revele pouca coisa, de facto, sobre o que somos, se cismamos em circunscrever isso que somos ao poço sem fundo da identidade; mas talvez revele muito mais sobre a possibilidade sucessiva, perseverante, de virmos sempre a ser, de estarmos continuamente prestes a, em processo de, em mutação para. Nascidos a cada momento para a eterna novidade do mundo, morrendo mais tarde ou mais cedo como os prematuros que sempre fomos. De resto, assina Rui Nunes em Baixo Contínuo: «Temos a morte no fim de cada palavra. E por isso somos livres» (p. 32).
Referências
Bataille, Georges, A Literatura e o Mal, tradução de Manuel de Freitas, Lisboa, Letra Livre, 2016 [1957].
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Queirós, Luís Miguel, «Editores portugueses ainda não recorrem a “leitores de sensibilidade”», Público, 8 de Março de 2023, disponível em https://www.publico.pt/2023/03/08/culturaipsilon/noticia/editores-portugueses-nao-recorrem-leitores-sensibilidade-2041495?fbclid=IwAR1_pA7D4iOn81YB9AvqKBiA9fupP03udaoRhk1Z02zxwG6PM_KMu3nGe3w [último acesso: 17/03/2013].
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Steiner, George, Tolstoi ou Dostoievski. Um Ensaio sobre Crítica Antiga, tradução de Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa, Relógio D’Água, 2015.
Woolf, Virginia, 48 Ensaios, tradução de Ana Maria Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, prólogo de Ana Gabriela Macedo, Lisboa, Relógio D’Água, 2022.
Imagens: fotogramas dos filmes Quills (Philip Kaufman, 2000) e Little Chidren (Todd Field, 2006).
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