Plataformização do trabalho docente

Plataformização do trabalho docente

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Esta semana contei a uns colegas ingleses a história do professor morto que estava a dar aulas por vídeo e eles retorquiram que receberam um email de um aluno da Malásia, onde nunca tinham dados aulas – a Universidade tinha vendido as aulas.

A paixão tecnológica, como sabem, domina o mundo capitalista hoje. Produzir mais, e mais. E mais. Até regurgitarmos algoritmos, ipdas, ecrãs, plataformas, não descansarão. O princípio é – tecnologia é bom, quem é contra é luddista, antiprogresso, vive no século passado.

Bitolas de civilização: das aulas online ao tratamento das casas de banho públicas

Esta semana numa grande e maravilhosa conferência em Londres alertei os meus colegas que estudam a plataformização do trabalho na Amazon, que “o inimigo está cá dentro” – o trabalho plataformizado dos trabalhadores da educação, nós mesmos, que vemos a autonomia pedagógica ser substituída por uns aborrecidos power point feitos por editoras, a maquinaria a produzir certificações para o mercado de trabalho (a escola não é isso?), com aulas “online”, em vez de relações educativas face a face, desafiadoras, instigantes, a produzir conhecimento. Os mais distraídos estão até convencidos que o que falta aos putos são mais iPads, que a “escola não se adaptou ao século XXI” e outras banalidades do senso comum.

Não me recordo de nunca ter tido alunos aborrecidos, e nunca usei sequer power point, talvez uma vez ou outra para mostrar um mapa. As aulas são aborrecidas quanto mais power point têm. As aulas disciplinadas são as que despertam a curiosidade e isso só se faz com excelentes aulas presenciais, baseadas no saber qualificado científico e pedagógico do docente. Um bom professor, em suma. As aulas indisciplinadas e com alunos desinteressados são as que se baseiam não no conhecimento – que é apaixonante –, mas em competências, tarefas, skills para o mercado de trabalho.

No início dos anos 80 a minha mãe regressou da Dinamarca, onde esteve um período do Mestrado. Trazia um vento fresco do norte com muitas novidades: não havia empregadas domésticas, os colegas e directores tratavam-se por tu, o Presidente do Instituto ia para a Faculdade de bicicleta com molas da roupa nas calças, a comida era horrível, e a sopa dela, banal, fez um sucesso estrondoso, mas o pequeno-almoço nórdico – ovos, tomate, salmão, presunto, pão escuro, sumo, chá e café – ficou em todos nós para sempre. Trazia também uma novidade – as “casas de banho públicas eram limpas”. Essa passou a ser na nossa casa a bitola de civilização – como tratamos a casa de banho pública é a linha divisória.

Mulheres de países empobrecidos “pelo Mercado” limpam quartos de banho públicos

Porque viajo, felizmente, muito, sou obrigada a usar casas de banho públicas com frequência. Vejo a indiferença com que entramos e saímos das casas de banho sem cumprimentar quem as limpa – mulheres, migrantes, invisíveis, a limpar casas de banho, muitas vezes imundas. E penso: como vão ao espaço e não inventam uma máquina de autolimpeza disto?

Essas mulheres são para o mundo do Mercado baratinhas, substituíveis, a qualquer hora. Em economês, têm um baixo custo do trabalho. Um professor “custa” muito a Estados que estão desde os anos 80 a tentar salvar bancos e indústrias da crise, e por isso ao serviço de remunerar investimentos em dívidas públicas, seja nos EUA, seja aqui. A tecnologia entra para dar, como uma droga, um Ipad a um aluno; para, como vi esta semana, num aeroporto, ter um iPad com a hora da limpeza na porta do wc, porco, e limpo – à mão – por uma mulher de um país empobrecido “pelo Mercado”, a identidade mágica dos investidores em dívida pública.

Educar não é adaptar a escola à formação do mercado de trabalho para a automação

E perguntam agora, se acabássemos com o trabalho delas usando tecnologia que sozinha limpasse os wc, o que seria delas? Iam para o desemprego? Não – iam ser professoras. É o meu mundo, o único que vale a pena construir. Lutar para que todas as empregadas de limpeza possam ser professoras e médicas. Imagino uma manifestação das empregadas de limpeza de WC do mundo “Queremos ser professoras!”. Podíamos ter aulas com menos alunos, e muitos mais professores no mundo. Médicas com tempo para nós.

Podíamos ter aulas com menos alunos, e muitos mais professores no mundo. Médicos com tempo para nós. É impossível, dizem-me. É quixotesco. Utópico, insistem.

E, pergunto eu, como pode alguém achar que vai haver educação realizada por máquinas (o que vai haver é certificação para execução de tarefas simples, isso não é educação, é adaptar a escola à formação do mercado de trabalho para a automação). Dizia eu, como alguém pode achar utópico fazer das empregadas de limpeza professoras e normal enfiar em 30 alunos um iPad e um vídeo do professor?

Lucro é custo social, o trabalho é investimento

Marx considerava que no capitalismo o trabalho morto (máquinas, construídas por pessoas) substituiria o trabalho vivo (pessoas), o que veio a acontecer. Onde para o Mercado “compensa”, mantêm-se trabalhos indignos onde é barato, e substituem-se trabalhos humanos pelas máquinas onde é “um custo”. Um desastre social e científico, porque se eliminam trabalhos humanos essenciais. Chegámos ao ponto em que na educação se elogia o trabalho morto como progresso. Ao ponto de termos professores mortos, filmes de professores, hologramas de docentes.

Os filhos dos dirigentes do Estado, e dos investidores do Mercado continuarão a estudar em colégios onde há professores, Ipad são proibidos, e a filosofia considerada essencial. Onde há “conhecimento” e não “competências”. Uns trabalham, executando tarefas simples e repetitivas, outros aprendem a mandar. Poucos pensam, na opinião publicada, que isto – o lucro – tem um custo brutal para a sociedade, e o trabalho sim, é um investimento. Irreal, digo-vos, é viver neste mundo, não falar à pessoa que limpa o nosso wc, fingir que não a vemos, e enfiar um puto de 14 anos num qualquer iPad para ver se não nos chateia e isso aumentar o PIB.

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Categorias: Crónica, Ensino, Trabalho

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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