Dança de signos: escrever para teatro, lendo Rui Pina Coelho

Dança de signos: escrever para teatro, lendo Rui Pina Coelho

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1.

«Doem-me as pernas. / A maior parte dos dias sinto-me como se / estivesse numa peça de Beckett.» Começo por citar esta fala de uma das personagens, figuras ou vozes que pontuam um dos muitos textos de Rui Pina Coelho (Évora, n. 1975) – neste caso, o texto que se destinou ao espectáculo Onde é que eu já vi isto, perguntou ele, de 2014. Começo sensivelmente a meio de um volume antológico deste dramaturgista português, professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e colaborador regular com o Teatro Experimental do Porto, Teatro o Bando, Projecto Ruínas, entre outras estruturas ligadas às artes performativas. Um grosso volume que jocosamente se põe em causa com este gesto de nomeação: Este título não é que muito longo. Textos para teatro (2011-2018), editado pela Companhia das Ilhas, em 2020.

Repito: começo sensivelmente a meio – a meio de um texto, de uma atmosfera, a meio de uma hipótese do real que é aquela que o teatro, ou estes textos em concreto, propõe(m) agenciar. Um real que nos é historicamente próximo, imediatamente situável no espaço e no tempo, reconhecível na sua indigência e incúria, neste mal-estar ideologicamente sem saída e que condiz, em todos os seus matizes, à homogeneização forçada da vida, num país que pertence à União-Europeia-barra-Europa-Fortaleza, à moeda única, à globalização, ao temperamento dos mercados, à religião do trabalho e da rendibilidade, à desmaterialização do mundo, à tirania algorítmica, aos neofascismos, e por aí fora.

A citação pela qual comecei, aludindo a Beckett e à injunção simbólica de que o seu nome se reveste na instituição literária, arrasta-nos para um estado qualquer de suspensão ou intervalo que paira por entre as ruínas da pós-história. Por outras palavras, mas ressacadamente as mesmas: deu-se o fim do mundo, mas ninguém deu por ele. Um fim do mundo à margem da espectacularidade cinemática com que os estúdios norte-americanos moldaram a nossa sensibilidade pânica; um apocalipse sem clarões decisivos e fatais, sem invasões alienígenas nem morticínios instantâneos (malgrado os avisos deixados por Hiroxima, pelos aviões colidindo com as duas Torres, ou pelo acidente que arrasou Beirut num tranquilo dia verão, em 2020). «O fim do mundo cheira ao cigarro que ainda agora fumaste», escreve Rui Pina Coelho no texto Lavai os olhos – e nesta imagem é tão evidente o esgar sardónico num malabarismo verbal, como comummente se espera de um texto com aspirações literárias, quanto é claro que o real dos dias, a sua irredutível imanência, é feito destas mesmas substâncias sem brilho: ironia azeda, fumo, um mero cigarro. Ou a cinza da qual fazemos parte. Sobretudo, como o autor destes textos não se cansa de expor, num sistema como o actual em que (sobre)vivemos, que funciona e se expande com base num elenco industrial de fins do mundo, consolidando cada vez mais a equivalência entre a humanidade, essa engenhosa ficção dos cínicos, e o facto de se tornar uma circunstância obsolescente. Qual fumo e cinza de mil cigarros ardidos.

Diogo Martins - dar coisas aos nomes - escrita - teatro - dramaturgia - Rui Pina Coelho - Nuno Leão - serviço público

De novo: «Doem-me as pernas. / A maior parte dos dias sinto-me como se / estivesse numa peça de Beckett.» A frase é perfeitamente anódina, comummente razoável, mas contém em si, na sua imediaticidade, a própria matéria do teatro, iluminante e obscura: aquele como se, a extravagância interior à ficção, ou à ilusão que o teatro proporciona – desde que perpetuemos uma expectativa em relação ao teatro como prospecto naturalista, mimético, convencionalmente dramático.

No entanto, mais complexo, ou tão complexo quanto a vida, é o teatro que descura quaisquer demarcações funcionais entre o que acontece em palco e a vida de todos os dias. Mais complexa é a substância desse como se no coração da própria vida. Ou, se quisermos: que, no contexto do pós-segunda guerra mundial, o absurdo de um Beckett – liquidadas as ilusões humanistas da História, enquanto flecha triunfantemente vertiginosa do progresso, pelos corpos espezinhados de Auschwitz e Treblinka, pelas cidades de Paris e Berlim, outrora modelos civilizacionais, arrasadas a partir de dentro pela infâmia da razão, burocrática e letal – o absurdo de um Beckett, dizia, é inquietantemente contemporâneo do absurdo de coexistirmos, neste espaço-tempo, com o drama afegão recebido em directo e uma horda de multimilionários fazendo turismo espacial durante 4 minutos e meio. A miséria em tempos de abundância. Like.

Os textos de Rui Pina Coelho cavalgam absurdidades afins, na ressaca de um contínuo estado de crise, o ADN do capitalismo tardio: abalos financeiros, flagelo ecológico, crise das dívidas soberanas, somando-se-lhes a actual crise pandémica. Na sua escrita, vozes, múltiplas vozes, umas mais bizarras do que outras, umas mais agressivas, entram e saem de cena, citam textos clássicos, resgatam John Osborne dos anos 60 e atravessam-no com a esqualidez simbólica deste tempo, recompõem letras de Bob Dylan, versos de Charles Bukowski, toda essa comunidade fraternal atenta ao quotidiano sujo, às legendas dos telejornais e ao rodízio de discursos economicistas (por exemplo, durante a última intervenção da Troika em Portugal). Ecos, restos, rastos, figuras que repetem insultos, queixas, agonias, numa democracia sem democratas. E nesse jogo exangue de repetição, como crianças recitando a mesma palavra ininterruptamente, até dela restar um mero som sem semântica, os corpos que povoam estes textos acabam desprovidos de identidade, de dignidade, ou de uma presença substantiva, política, espiritualmente real.

Agem enquanto espectros de Beckett, contínuas actualizações, por outros meios e discursos, do fragor sem esperança dos corpos semivivos que Beckett pôs em cena no seu tempo. Sem esperança, portanto – somente à espera, absurdamente à espera. Uma espera, contudo, que embora se arrisque à comodidade paralisante face a um Godot que nunca vem, não deixa de ser, ou de poder ser, uma espera activa. Estar absurdamente à espera, sem saber do quê ou de quem, como uma reabilitação do sentido que o próprio absurdo contém em si, a sua potência desestabilizadora. Sem ceder à compulsão suicida, mas antes à vontade que subjaz ao agon da revolta, em linha com o que disse Camus sobre Sísifo e a sua pedra rolante. Ou «um derrotismo esperançoso», segundo Magda Bizarro sobre os textos de Rui Pina Coelho.

E por isso: «Desta vez não vamos queimar carros nem partir montras. Vamos só ficar à espera – porque sem nós não há nada. Não vamos a lado nenhum. Vamos comer sandes de manteiga e sumos de laranja e não vamos a lado nenhum. Não vamos aparecer nos escritórios. Não vamos aparecer nas fábricas. Não vamos aparecer nas escolas. […] Vamos ficar à espera que morram. Porque sem nós não há nada. Somos a ameaça preguiçosa. Não vamos esmagar-vos os crânios nem cortar-vos a cabeça. Vamos esperar. Que isto expluda. Vamos para o sol e vamos esperar que isto caia tudo de podre. Vamos fazer uma birra. Temos tempo.» (De Uma peça para os meus compatriotas, in Este título não…, p. 485).

 

2.

Considere-se a peça Happy Days, do dramaturgo irlandês, estreada em Nova Iorque em 1961, com a célebre Winnie enterrada até à cintura, movendo apenas os braços e a cabeça, desesperada por se resguardar do «clarão ardente de luz infernal» que o Sol abate impiedosamente sobre si. O único objecto ao seu alcance é uma carteira atulhada de coisas – entre as quais, uma arma. A austeridade desta imagem de Winnie tem a força prospectiva dos grandes mitos arcaicos: uma mulher engolida pela terra, incapaz de se mexer, abandonada num desterro, sem origem nem destino. O expoente de uma solidão e uma devastação brutais, espécie de sobrevivente de um pós-apocalipse que Winnie parece desconhecer, insensível aos escombros dos quais ela é apenas, na efemeridade constitutiva da peça, uma ruína que fala. «Achas que a terra terá perdido a atmosfera? (Pausa.) Achas, Willie? (Pausa.) Não tens opinião? (Pausa.) Já se sabe, foste sempre assim: sem opinião sobre coisa nenhuma.» (p. 73). O tempo kantiano, idealizado como uma recta linear, morre naquele perímetro de palco: é um tempo enterrado em si mesmo, um buraco negro que devora tudo, o pesadelo da eternidade.

Tudo o que é a nossa memória cultural do teatro naturalista, ou das convenções do teatro em geral, está exposto aos nossos olhos neste Happy Days: as paredes de uma casa, os adereços, um par de corpos na fronteira entre a vida e o inorgânico, homem e mulher, a luz, o som exterior, o cisco baço das coisas. Mas todos estes elementos se esgotam na aridez da sua presentificação, no limite de uma coisa que é reconduzida ao facto de estar em cena, exibida como tal. Sem sentidos figurados, nem enredos ocultos: a «retórica suicida do silêncio», como George Steiner descreveu a escrita beckettiana, converte a significância numa fraude. Pois tudo o que está no palco, no palco está – e o drama é pairar neste impasse tautológico, pressentir que, por muito que se desunhe, nunca mais sairemos dele. Como um envelope onde esperássemos encontrar a revelação de um segredo, mas só nos fosse dado a ver o rebordo côncavo do papeliço, um vazio lá dentro igual ao vazio de fora, e a sensação de termos sido enganados. «So you are the one who is going to reveal me for the charlatan that I am», disse Beckett à sua biógrafa, Deirdre Bair, quando os dois se encontraram pela primeira vez, no Inverno parisiense de 1971.

 

«No teatro pós-dramático», desenvolve Hans-Thies Lehmann, «o respirar, o ritmo, o agora da presença carnal do corpo têm precedência sobre o logos. Desenvolve-se uma abertura e uma dispersão do logos, de tal modo que uma significação de A (palco) já não é necessariamente comunicada a B (espectador); o que acontece, sim, é uma transmissão e conexão especificamente teatral, “mágica”, por meio da linguagem.» (in Teatro Pós-Dramático, ed. Orfeu Negro, 2017, p. 217).

A angústia de Beckett não secou numa exuberância onanista. Pelo contrário: comunicou com a perplexidade do seu tempo, deixou lastro na escrita de Edward Albee, Harold Pinter ou David Mamet. Esburacou a linguagem, encheu-nos a boca de cinzas. O teatro abriu-se, assim, à radicalização do seu lugar enquanto experiência, energia, ou convite. Convite a reformular as perguntas que fazemos. Convite a que nos pensemos de outro modo. Que repensemos os corpos que efectivamente somos: corpos que respiram, que caminham, ou que simplesmente estão. Pensar a própria ideia de corpo, do que pode um corpo, como visionariamente interrogou Spinoza na sua Ética, no século XVII. Do que pode a palavra, a sua ausência, o silêncio como matéria espessa, a imagem-tempo, todo este rol de materialidades de inesgotáveis reservas plásticas e possibilidades heurísticas, que não ficam mais sequestradas por considerações de tipo transcendental acerca de um naturalismo do sentido. Como espectadores, deixamos de estar condenados a tombar sob o peso imemorial, de cariz judaico-cristão, do que está por detrás de cada superfície manifesta: o seu conteúdo latente, a bela e boa verdade, a moral da história.

Esplende, pois, a dimensão acontecimentícia do teatro pós-dramático, a sua dimension événementielle, segundo Derrida: a presença reificada das coisas, a singularidade do corpo no seu enxame de gestos, uma luz quente morrendo na nudez do linóleo. Coisas assim, coisas da vida. Coisas – as coisas mesmas, na sua pobreza inane – que falam de política, ou da política, por meio da literatura, da filosofia ou da dança, e vice-versa. Ou que não falam sequer, e nem assim o político se ausenta do espaço cénico: porque, insista-se, é político tudo o que pretende dar forma a um determinado conjunto de elementos, sejam estes materiais ou imateriais, sejam humanos ou não-humanos. De tudo isto, afinal, o que menos importa é a edificação de um saber, ou o mapeamento de um trabalho performativo à luz deste ou daquele estilo, corrente ou movimento. Importa, sobretudo, o modo como o sentido obstinadamente se descola da semântica adesiva com que fixamos os nomes às coisas e as coisas aos nomes. Interessa o seu devir. Não interpretar, mas experimentar, como propôs Deleuze. Participar na interminável dança dos signos, abrir o real a cada momento ao jogo da indeterminação: «Dizemos tudo o que podemos. (Pausa) E nada é verdade, seja onde for. […] Enfim, não saber, não saber ao certo, grande bênção, é tudo o que eu peço.» (p. 73).

Jogar ao sério com o real e, na sua ausência de face, fazê-lo explodir de riso.

 

3.

Vais na estrada a conduzir. Nada de especial: tu, ao volante, o rádio ligado, o movimento habitual dos outros carros nas respectivas faixas. De repente, enquanto segues o teu caminho, reparas na berma da estrada, do teu lado direito: um carro completamente destruído. Abandonado ali, sem pneus, nem vidros, a chapa toda amolgada, a fuligem corroendo o metal, os estofos carbonizados. Segues viagem, vais na tua vida, e é apenas de esgueire, pelo espelho retrovisor, que recolhes a última imagem daquele despojo. E a questão é esta: mesmo sem pneus, rodas, faróis, volante ou capô, continuas a chamar carro àquele fóssil moderno.

Esta metáfora visual não me pertence, mas a Rui Pina Coelho. Usou-a no dia 11 de Setembro de 2021, na Fábrica da Criatividade, em Castelo Branco, durante uma edição do Serviço Público, um ciclo de conversas organizado pela associação Terceira Pessoa. Através da imagem de um carro queimado, o dramaturgo esboçou uma aproximação à morfologia flutuante do teatro pós-dramático. Isto é: mesmo sem guião, sem actores, sem um referencial exterior a título de verdade, na ausência de objectos cénicos ou de nexo entre as acções, aquilo que nos é dado a ver, a pensar e a sentir, num palco ou num lugar afim, é ainda teatro: o teatro enquanto possibilidade em aberto, a condição por excelência para se mostrar «que não há truques», segundo Peter Brook no estudo seminal O Espaço Vazio, de 1968, «que nada está escondido, abrindo as mãos e mostrando que não temos nada na manga. Nessa altura poderemos começar» (ed. Orfeu Negro, 2016, p. 138).

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Dito de outra forma: tudo é um nada novo. Aproprio-me de uma expressão do autor, título de um pequeno livro seu, editado em Abril deste ano, com o selo da Douda Correria: Tudo é um nada novo. Textos para espectáculos na era da economia da atenção. A politização empenhada nos seus trabalhos anteriores, com explosões de fúria e interpelações directas à realidade do nosso tempo, abranda notoriamente neste pequeno livro. Não obstante, continuam a ser políticos estes textos – o subtítulo age, desde logo, como um sismógrafo da contemporaneidade –, porquanto apelam à vida de corpos em presença, a gente de carne e osso, consciente de merecer ter vindo ao mundo para algo substancialmente maior do que sobreviver ao lixo limpo da «quarta revolução industrial», à sua «acídia» endovenosa, a este facto atroz: «Cavamos uma trincheira».

Se há nesta escrita uma militância de esquerda, uma veemência de guerrilha, acontece que os percalços estético-ideológicos que, noutras décadas, geraram formidáveis equívocos acerca da «arte empenhada», da «estética neo-realista» ou do «realismo socialista», estão a milhas dos pés que cirandam, saltam e se arrastam pelos palcos que Rui Pina Coelho poderá, ou não, imaginar para as palavras que escreve. Quando se lê algo assim – «O artista tem de deixar de ser o brando e impassível observador. Tem de converter-se no activo realizador da tarefa de restabelecer uma consciência metafísica na nossa época. Este seria o primeiro passo para a cura – bebe um shot de vodka – da decadência da nossa época» (de Uma peça para os meus compatriotas, in Este título não…, p. 487) – sabemos, pelo menos, que o autor destas linhas não é parvo, nem é romanticamente idealista (no que aí pudesse soar a uma ingenuidade inócua, ou até mesmo nociva, desfeita em moralismos fáceis), nem acredita que, sendo ele o autor destes textos, irá despertar consciências, abalar o status quo, revolucionar. A «consciência metafísica» que se espera surgir em cena, lendo Brecht ou Rodrigo García, não tem grandes hipóteses de vencer contra rivais tão metafisicamente poderosos como a Google, o Facebook, o Goucha ou as cadeias de noticiários.

Daí aquele shot de vodka no texto, como um gole em seco. É a consciência, como Shakespeare já o sabia, de que as palavras são só palavras, palavras, palavras – e mais o são se saírem da boca de bolseiros, precários, desempregados com o canudo debaixo do braço, para nomear algumas das personagens recorrentes neste autor. Corpos que já não têm qualquer valor de exploração e, por isso, são «expulsos» pelo capitalismo tardio, como diria Anselm Jappe. Corpos, pois, não só obsidiados pelo estigma da sua inutilidade social – daí advindo os enredamentos depressivos, o burnout, o desgosto geral pela vida, a violência doméstica, os ódios virais –, mas igualmente assediados pela actual constelação neurótica de crises – crise ecológica, crise pandémica, crise financeira, crise geopolítica, … – que aniquilam, na consciência individual, a propensão elementar para o próprio da individuação, sem a qual o direito à vida e à alegria de existir acabarão sonegados. «O homem é o ser que não pode sair de si, que só em si conhece os outros e que quando diz o contrário mente», lê-se no sexto volume do monumental Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust – e essa impossibilidade de «sair de si», essencial para que um «eu» se reconheça como tal, sofre um sucessivo desbaste, no decurso de uma perda progressiva de mundo, cada vez mais desmaterializado, dinamitado pela referida simultaneidade de crises, pelos apocalipses encravados num loop, que é usado, por sua vez, pelo marketing e pela máquina mediática para nos entreter nas malhas do medo.

Por outras palavras: «Por que caralho é que acha que os pássaros andam a aparecer mortos por todo o mundo? E que me importa a mim se me dá um emprego ou não se o mundo vai acabar? Que importância tem isto? O que é que eu estou aqui a fazer?». Cito o excurso indignado de Jaime no texto Já passaram quantos anos desde a última vez que falámos, perguntou ele (2011, pp. 32-3). Afinal, quando a humanidade se torna cada vez mais excedentária perante os múltiplos engenhos da bioengenharia, não está a questão do trabalho a aproximar-se atrozmente do seu sentido etimológico, isto é, do tripalium, o instrumento de tortura usado na Antiguidade para punir os escravos que se furtavam ao trabalho? Perante o fim do mundo, como pode aquele Jaime aceitar que o obriguem a ser masoquista?

(A propósito, o filósofo francês Bernard Stiegler, falecido em Agosto de 2020, chama a atenção para a importância de um «narcisismo primordial», que entendia ser, não um revés patológico, mas, pelo contrário, a condição essencial para a formação do desejo e da psique individual, esse primeiro cintilar de uma forma irredutivelmente solitária que actua como resistência contra a pulsão gregária e homogeneizante das massas, o seu exercício perverso de sincronização de diferentes «eus» na farsa universalizante de um «nós». Porém, lamentava Stiegler, tal acto de resistência pouco parece conseguir para travar «o espectáculo repugnante desta carnificina da consciência», in Da Miséria Simbólica (2018). E é ainda este filósofo, no mesmo livro, que antevê um futuro sinistro, do estilo Blade Runner, no qual as empresas, em vez de nos venderem produtos destinados a saciar-nos a dose diária de frivolidades, começarão a transaccionar recordações. Eis, assim, o último reduto do humano desprovido de si, no derradeiro estádio da sociedade de consumo, ex-libris do Antropoceno, numa zona indiscernível entre biosfera e tecnosfera: uma carne sem alma na fila do supermercado para comprar memórias de uma vida que não viveu. Uma imagem que corporiza a categoria política do brutalismo, no campo dos estudos pós-coloniais: para Achille Mbembe, por via de processos altamente invasivos a nível geológico, molecular e neurológico – «fractura e fissura, exaustão e esgotamento» –, aplicados sobre todos os materiais do planeta, incluindo os recursos humanos, a prática e a experiência do poder tendem a universalizar «o devir-negro de grande parte de uma humanidade actualmente confrontada com perdas excessivas e com uma profunda síndrome de exaustão das suas capacidades orgânicas», in Brutalismo, 2021, p. 11. Em suma: «O derradeiro projecto do brutalismo é transformar a humanidade em matéria e energia», p. 15.)

Entrevistado por Gonçalo Frota, no suplemento Ípsilon, Rui Pina Coelho afirma que o «tom lamentoso» da sua escrita «quer motivar uma reacção a esse lamento, quer motivar uma energia – não no teatro, mas no mundo, no dia-a-dia.» (em linha). Tal desejo parecerá, porventura, anacrónico, enviesadamente refém da «melancolia de esquerda», segundo o historiador italiano Enzo Traverso num livro de 2016, Mélancolie de gauche: uma melancolia dos vencidos, pós-queda do Muro de Berlim, na ressaca das utopias socialistas que o foguetório neoliberal se terá encarregado de sombrear, arrumando-as num esconso do sótão. Mas o anacronismo destes textos para teatro, assim como o anacronismo da patética Winnie no texto de Beckett, por muito que o culto da instantaneidade e da transparência ubíquas se esforce por limar àquele as suas arestas, aplacando-lhe os ângulos agudos e a consequência do atrito, é a emanação inapelavelmente singular de cada um dos homens e mulheres que respiram no mundo. Homens e mulheres com o corpo que têm, os seus desinteresses e paixões, os seus medos e audácias, a sua inabordável solidão ontológica. Corpos que estão no mundo – e que, estando nele, ocupam espaço, exigem tempo, requerem pão, água potável, um tecto, serviços públicos, escuta, prazer, justiça. São, por tudo isto, corpos anacrónicos, de fraca carne humana, os animais mais obsoletos, ainda não totalmente assimiláveis pela voragem do capital autofágico que já só procura reproduzir-se a si próprio, ao serviço da acumulação de valor, libertando-se, para esse efeito, de todos os empecilhos, de todas as excrescências, de todos os anacronismos.

Talvez em nome dessa facticidade irredutível do humano tenham sido criados os textos breves de Tudo é um nada novo (2021), que, à politização desbocada das criações anteriores, preferem um olhar mais lento sobre a respiração das coisas: «As despedidas são momentos de percepção condicionada aguda. O mundo pára por momentos e mais nada parece ter sentido. Como naquele momento antes do primeiro beijo. Ou quando te nasce um filho à frente dos olhos. Aí, toda a utopia é adiada. Nas despedidas, nos nascimentos e no amor, o teu corpo está ali.»

Diogo Martins - Dar Coisas aos Nomes - escrita - teatro - dramaturgia - Rui Pina Coelho - Nuno Leão - serviço público

Enquanto esta consciência resistir, mesmo não sabendo a quê; enquanto cada um dos eus individuais (fora a dança de cadeiras entre os eus de cada eu…) não soçobrar na pior das devastações e razias – precisamente, as que visam extirpar o corpo humano desse eu-último-reduto, disso que o abre ao indeterminável de si como horizonte e futuro (Spinoza e o conatus, Nietzsche e a vontade de potência) –; enquanto nos for possível crer que, pelo lado de dentro, trazemos «uma nuvem fechada», confiando nos olhos mágicos das Blimundas deste mundo (e elas existem, porque pelo menos a uma foi dada a existência nas páginas de um livro), então uma espécie de vento anacrónico, um vento bárbaro e indisciplinado, que sopra não se sabe bem de onde, continuará a trocar-nos as voltas, a relativizar os falsos absolutos, a desarranjar as armadilhas onde canhestramente metemos o pé. «As coisas não são, vão sendo», anotou Maria Velho da Costa. Ícaro continuará tanto mais magnânimo nos seus voos e fulminantes quedas, quanto mais difícil for para nós «entender por que se deseja arder com o sol, mais que tudo, mais que tudo» (in Tudo é um nada novo, op. cit.). Um soldado num campo de guerra, «com uma mão agarrada ao estômago», cairá de barriga para baixo, mas não morrerá sem satisfazer o seu desejo de ver as nuvens: «Olha, aquela parece um chapéu. Ou uma jibóia com um elefante lá dentro» (Constantin Gavrilovitch acaba de se matar, in Este título não…, p. 159).

Se o essencial é invisível aos olhos, qual astro no céu nocturno onde uma rosa pedindo amor num gesto de água sustém o universo por cima de nós, não é menos essencial, nem menos secreta ou ambivalente, a evidência nua do visível, o estar de cada coisa na sua rede de acasos. (Eduardo Lourenço escreveu páginas luminosas sobre isto.) De olhos abertos, quem nos garante que o que tomamos por real é sem mácula, esplendorosamente solar, e diferente de um sonho sonhado no périplo da lucidez, à la Pessoa ou estilo Inception? Pois não é também isso – um sonho sonhado – o real que se abre diante de nós quando o pano vermelho se afasta, ou quando nem há pano vermelho sequer, na sala de espectáculos? Não é o teatro, afinal, a arte do nada por excelência, que não deixa vestígios, dissolvendo-se nos átomos do lugar, quando a cortina descerra, se batem as palmas e nos vamos embora? O nada que o tempo expõe na claridade oblíqua de tudo o que há, no simultâneo do nosso corpo a envelhecer, de aos dias se seguirem as noites, de toda a miséria por entre toda a abundância.

«Talvez a existência do homem consista simplesmente / em aperfeiçoar o não existir», pondera Roberto Juarroz, poeta argentino cuja arte poética pode ser definida como uma arte do nada, um programa para desaparecer sob o véu da transparência. Nada menos do que o «como se» taumatúrgico, porque libertador, naquele excerto de Rui Pina Coelho acerca de estarmos aqui metidos «como se [estivéssemos] numa peça de Beckett». Mas este aqui é sempre outro lugar, ou está continuamente – e é preciso acreditar que sim – na iminência de o ser. Como se, mesmo enterrados até ao pescoço, não abdicássemos do direito a existir, de assaltar o céu. Nem prescindíssemos dos intervalos onde um excesso de vida, às vezes feliz, por vezes se dá.

 

Referências

Bair, Deirdre, «On the Difficulty of Convincing Samuel Beckett of Just About Anything», Literary Hub, 11/09/2019, disponível em https://lithub.com/on-the-difficulty-of-convincing-samuel-beckett-of-just-about-anything/ [último acesso: 15/09/2021].

Beckett, Samuel, Dias Felizes, tradução de Jaime Salazar Sampaio, Lisboa, Planeta DeAgostini, 2001.

Brook, Peter, O Espaço Vazio, 3.ª edição, tradução de Rui Lopes, Lisboa, Orfeu Negro, 2016 [1968].

Coelho, Rui Pina, Este título não é que muito longo. Textos para teatro (2011-2018), prefácio de Magda Bizarro, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas/TEP – Teatro Experimental do Porto, 2020

____________, Tudo é um nada novo. Textos para espectáculos na era da economia da atenção, Lisboa, Douda Correria, 2021.

Frota, Gonçalo, «Da vertigem ao desencanto, o teatro escrito à boca de cena», Ípsilon, 19/02/2021, disponível em https://www.publico.pt/2021/02/19/culturaipsilon/noticia/vertigem-desencanto-teatro-escrito-boca-cena-1949127 [último acesso: 14/09/2021].

Jappe, Anselm, Conferências de Lisboa, revisão de Conceição Candeias e Maria Afonso, Lisboa, Antígona, 2013.

Juarroz, Roberto, A árvore derrubada pelos frutos, selecção e tradução de Rui Caeiro, Duarte Pereira e Diogo Vaz Pinto, Língua Morta, 2018.

Lehmann, Hans-Thies, Teatro Pós-Dramático, tradução de Manuela Gomes e Sara Seruya, posfácio de Tiago Bartolomeu Costa, Lisboa, Orfeu Negro, 2017.

Proust, Marcel, Em busca do tempo perdido, vol. VI: A fugitiva, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Relógio d’Água, 2016.

Mbembe, Achille, Brutalismo, tradução de Marta Lança, Lisboa, Antígona, 2021.

Stiegler, Bernard, Da Miséria Simbólica – I. A Era Industrial, tradução de Luís Lima, Lisboa, Orfeu Negro, 2018.

Imagens: Nuno Leão | Terceira Pessoa Associação, 2021.

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Categorias: Cultura, Ensaio, Literatura, Teatro

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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