Esquerda e Direita unem-se na Pandemia de Covid-19

Esquerda e Direita unem-se na Pandemia de Covid-19

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Além da questão dos dados pessoais e da liberdade de circulação, o que não seria pouco, a ideia que subjaze a um “passe sanitário” para acesso a um supermercado ou restaurante configura de facto que a partir de agora certos Estados, onde tal é aprovado, podem restringir o direito dos seus cidadãos ao acesso a bens vitais à reprodução da sua existência, para os obrigar a seguir ou impedir determinado comportamento individual. Como a vacinação obrigatória não é legal, ou ninguém é obrigado a mostrar documentos pessoais de saúde fora de determinadas instituições, retira-se a possibilidade às pessoas de  terem acesso a bens essenciais – isto é, ataca-se o direito à vida, à reprodução da existência.

Podia discutir os fundamentos ilegais de tal medida, os científicos (quem tem passe transmite a doença), os fundamentais (deve vacinar-se porque se está convencido de eficácia e segurança, não porque se tem uma espada na cabeça), mas o que me interessa são os fundamentos filosóficos – hoje com vacinas, amanhã com outros assuntos considerados “emergentes”, do “interesse nacional” onde virtualmente poderá caber tudo, até uma crise económica. Assistimos a uma deriva cujos contornos não faz qualquer sentido serem equiparados ao nazismo (é ridícula a comparação), mas que é uma deriva totalitária cujo desenho apenas vislumbramos e, evidentemente, implica uma expansão do poder dos Estados sobre as vidas, que assenta na expansão do controlo tecnológico da liberdade de movimentos dos cidadãos e do fim da fronteira entre dados pessoais e Estatais, privado e público. Não é um chip no braço colocado por uma vacina, como podia pensar um pentecostal trumpista, é a servidão voluntária de que falava La Boétie.

A Esquerda e o passe sanitário

Para quem é de esquerda e vê no passe sanitário uma medida de defesa do colectivo recordo que o marxismo, nos seus princípios (incluindo em Marx), sempre defendeu o liberalismo como um avanço para a humanidade, que pecava pela pouca liberdade que trazia aos trabalhadores e não por excesso de liberdade. Na verdade, o que as revoluções sociais anunciavam é que a liberdade de que apenas usufruía quem tinha propriedade devia ser ampliada a todos – restringir direitos em nome do colectivo e “superior” interesse da nação ou do Partido foi obra de ditaduras como a estalinista e todos os países que em nome do comunismo fizeram férreas ditaduras contra os trabalhadores. Nunca foi uma bandeira da esquerda atacar as liberdades individuais, mas expandi-las.

Para o marxismo, explico de forma simples, o direito burguês e o princípio da liberdade individual era insuficiente. Não era excessivo, nem excessivamente garantista. A revolução não era a restrição do indivíduo em nome do coletivo, mas a expansão do indivíduo libertado dos constrangimentos materiais que atingiam grande parte das classes populares e trabalhadoras. Ver hoje gente de esquerda defender estes passes sanitários ou estar em silêncio com eles não os coloca na defesa do bem comum, mas na defesa do poder do Estado e da restrição impensável de direitos e garantias individuais.

Trocar liberdade por segurança?

Nesta pandemia criou-se a ideia mítica de que só existem dois campos, Bolsonaro e Trump e a posição da UE e da China – ou desprezamos a vida humana, ou defendemos uma ditadura mais ou menos musculada para fazer face à pandemia. A Suécia mostrou que há outro caminho, liderada pela social-democracia. É a pedra no sapato de uma realidade óbvia – pode-se combater uma pandemia, e deve-se, sem pôr em causa a liberdade e com educação. A Esquerda, ao aceitar com o papão Bolsonaro o “passe sanitário”, coloca milhões de pessoas que olham o óbvio – as suas vidas destruídas por estas medidas e a sua liberdade sufocada – a seguir a Extrema-direita, que tem cavalgado esta pandemia, não por o mundo estar cheio de negacionistas e terraplanistas (que não existem a não ser na cabeça de quem quis ridicularizar todas as críticas), mas por o mundo ter muita gente para quem a questão da morte por COVID-19 não era a questão central da vida deles, e não é – porque a liberdade, o emprego, a saúde mental, a estabilidade das relações sociais eram mais importantes. Há muita gente no mundo que, ou porque não pode, porque a sua economia a isso obriga, ou porque tem conhecimentos científicos e filosóficos e princípios (sim, ainda há gente com valores ligados a estruturas de carácter pessoal e história), não aceita trocar liberdade por segurança.

Direita e Esquerda unem-se na defesa do Estado

No fundo a política de COVID-19 fez-me lembrar desde cedo o “Viva a morte!”, grito franquista – um autêntico elogio da morte contra o sentido da vida é o que temos assistido em nome “da saúde pública”. Fala-se de morte e doença, todas as conversas públicas e privadas transformaram-se numa antecâmara da lista de espera numa urgência, a vida foi transformada na morte. É uma pena que milhares de pessoas não compreendam que muitos partidos de esquerda liberal, como é o caso de Portugal, apoiaram esta política mas que ela é uma política de Direita, é um “viva a morte”, gritado em nome da vida -como sempre foi na história das lutas pelo Poder, a barbárie é oferecida como civilização. Se a esquerda, com excepções claro, colapsou moralmente nesta pandemia, aceitando a chantagem “ou Trump ou modelo chinês”, a direita nada tem a oferecer, a Direita liberal morreu com o capitalismo concorrencial no século XIX, o que sobra hoje são seres solitários, que aceitam nesse liberalismo cujo desenho monopolista do capitalismo impede – nunca as empresas foram tão dependentes dos Estados (e não, como se pensa, o contrário) – virtualmente todas estão hoje na mão de bancos que está na mãos dos Estados. A Direita que sobra real é entusiasta de “passes sanitários” porque a sua essência é a defesa de uma sociedade desigual, imutável, alicerçada sobre o trabalho dos outros. O moralismo, puritanismo e conservadorismo que cresce neste caldo é evidente, e tem o outro lado, o identitarismo na esquerda, acompanhado sempre de pedidos de mais Estado a regular comportamentos. Direita e Esquerda unem-se na defesa do Estado, quando sabemos todos, e Marx sabia-o como ninguém que qualquer sociedade saudável é marcada pela diminuição do Poder do Estado e não pelo seu aumento.

Crise de direção

O que fazer neste cenário? A conclusão é que, em suma, muitos, eu diria a maioria, têm um sentimento de orfandade – é verdade, é assim que estão. Com um “passe” na mão ou sem ele, e todos sem direcção política e rumo. Vive-se uma crise de direção. Cada vez maior.

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Categorias: Crónica, Pandemia, Sociedade

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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