‘Salvação’, de Ana Cristina Silva, um escrito da memória e da redenção

‘Salvação’, de Ana Cristina Silva, um escrito da memória e da redenção

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Salvação foi o quinto livro de Ana Cristina Silva que li. Nesta obra, mais uma vez, a autora revela a sua mestria em analisar e transmitir estados de alma das personagens que cria. Desta feita, Ana Cristina Silva dá-nos a conhecer um escritor e o seu sofrimento pela perda da mulher, vítima de doença. A incapacidade de evitar-lhe a morte e de prever que a doença seria irreversível geram nele remorso e um profundo abatimento. Agarrando-se ao último pedido formulado pela mulher – que escrevesse um novo romance – somos levados ao longo de quinze meses, tempo que o narrador leva a escrever o livro, a acompanhar o seu luto.

Pré-iluminismo e atualidade, tempos de fanatismo e intolerância

Criando uma personagem – David Negro – e recriando uma época – séculos XVI e XVII em Portugal e na Europa –, o escritor narrador de Salvação – vai transpor para a escrita os seus sentimentos de impotência e de perda definitiva da mulher através da personagem criada, ao mesmo tempo em que traça um paralelo entre duas épocas da história da humanidade em que a intolerância e o fanatismo, em nome de um deus – Cristo, Moisés ou Maomé – e das religiões, persistem de forma feroz. Embora inicialmente seja para ele vaga e incerta a forma como o livro irá evoluir, no entanto, a ideia do tema é clara desde o início: Deus e os seus crimes.

David Negro, uma vida em forma de drama

David Negro, com mais de 90 anos, a viver em Amesterdão e sentindo que a sua vida está a chegar ao fim, escreve uma longa carta à filha que deixou quando ela tinha nove anos, forçado a fugir de Portugal por ocasião da perseguição aos cristãos-novos pelo Santo Ofício. Não tendo conseguido salvar a mulher, expressa nessa carta os sentimentos de culpa, remorso e cobardia e pede à filha que o perdoe, embora duvide que a carta que lhe está a escrever alguma vez lhe chegue às mãos e mesmo que a consiga escrever até ao fim, dado o seu precário estado de saúde. Tendo passado por Paris num momento em que as ideias luteranas e calvinistas geravam acesos debates teológicos entre cristãos e em que acabava de ocorrer o terrível massacre de S. Bartolomeu, em que protestantes foram massacrados pelos soldados do rei francês Carlos IX, parte para Hamburgo onde está instalada uma importante comunidade de cristãos-novos fugidos de Portugal. Aí, juntamente com Rodrigo de Castro, outro médico que havia estado ao serviço do rei Filipe II de Espanha, mas que também fora obrigado a fugir para Hamburgo, tentam, com os parcos conhecimentos de medicina à época, responder à terrível calamidade de peste que dizimou milhares de pessoas. Segue-se Amesterdão, onde toma conhecimento de Uriel da Costa, um homem de pensamento livre, crítico das religiões, proscrito pela comunidade e pelos fanáticos liderados pelo rabino. Perseguido pelos judeus sefarditas, açoitado e humilhado publicamente, acaba por encontrar no suicídio a única saída para o seu sofrimento moral.

O trabalho do tempo

Ao mesmo tempo em que o narrador vai avançando no seu livro, o tempo vai fazendo o seu trabalho, não apagando o desgosto, mas dando-lhe novos contornos. “O sofrimento do luto é assim: um longo corredor que não é possível passar a correr.” Da fase inicial de corte e alheamento com o mundo circundante, de desinteresse pela vida, até ao dia em que, ao abrir a televisão, se depara com o atentado de Paris. Atenta no discurso dos fanáticos do Daesh, em tudo igual ao dos frades dominicanos dos autos-de-fé do tempo de David Negro. Mas agora, quatro séculos depois, a intolerância e o medo abrem as notícias dos telejornais e fazem manchetes nos jornais: Paris, Nice, Istambul… em nome de um deus.

A salvação de escritor e personagem

Enquanto vai escrevendo o seu livro, o narrador apercebe-se de que o peso da ausência da mulher deixa de ser tão presente e obsessivo e culpabiliza-se, como se o seu luto estivesse a esmorecer e tal fosse sinal de menos amor pela mulher, de traição à sua memória. Sofia, a mulher morta, tinha tido a clarividência de que só através de um novo livro, o marido conseguiria sair da depressão do luto. Tal como a longa carta de David Negro à sua filha Inês da Paz é um “livro de memórias” e funciona como uma possível forma de quebrar uma ausência não desejada e uma expiação por um laço que se quebrou, este livro é afinal uma salvação para ambos: escritor e personagem.

A escrita como salvação. O trabalho como salvação. Um livro excelente, cuja leitura aconselho vivamente.

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Os enredos da eternidade

Obs: artigo previamente publicado no blogue da autora Lendo e Escrevendo, tendo sofrido ligeiras adequações eidtoriais na presente edição.

Imagem: DR

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Categorias: Cultura, Literatura

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