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Desde o século XVIII que se sabe que o que mais conta na saúde de alguém é a classe social, e dentro desta o que mais conta é a alimentação, que corresponde, vou explicar assim de forma um pouco simplista, a cerca de 70% dos determinantes sociais da saúde. Em suma, o berço em que nascemos e a alimentação são a primeira causa de saúde e de doença. Por exemplo, aquilo que mais conta na saúde de uma criança é o nível de escolaridade da mãe. Estes foram os grandes temas na cimeira da OMS em Alma Ata. São coisas elementares que se estudam há anos, que se conhecem há 2 séculos, com fundamento, e sem as quais não é possível estudar saúde pública.
Apesar disso, penso que um ano e meio depois do início da pandemia de COVID-19 ainda muitos não sabem que a epidemiologia não é uma ciência médica, muito menos matemática, certamente nunca uma ciência computacional. Tanto que a Associação Portuguesa de Epidemiologia tem como seu primeiro objectivo “estimular a abordagem multissectorial e interdisciplinar dos assuntos de âmbito epidemiológico”, ou seja, vários dos seus membros são das ciências sociais. Só o deslumbramento com a automação poderia achar que existe epidemiologia sem sociologia, história e filosofia.
Uma das notas básicas da estatística é naturalmente a sua comparação com a esperança média de vida (o que conta em saúde pública são mortes evitáveis, abaixo dos 80 anos), e, por exemplo, em trabalho e saúde estudamos a esperança média de vida com saúde (que em Portugal, devido às condições de trabalho – que condicionam a habitação e a alimentação, é 15 anos abaixo da Dinamarca, isto é, vivemos os mesmo anos, mas com doenças que incapacitam logo depois da reforma). Dei estes exemplos, podia dar outros. Só para chamar a atenção para o facto de que Portugal pode estar com menos mortos em média do que noutros anos, tendo-se dado com a pandemia um fenómeno comum quando não há investimento em saúde e condições de trabalho – os mais frágeis foram mortos com a pandemia, isso é, terá sido feita uma selecção natural, que as medidas de confinamento não evitaram, porque a única forma de contrariar a selecação natural era com uma inversão da selecção social.
Actuar ao nível dos determinantes sociais da saúde
Evitar a morte dos mais frágeis seria actuar ao nível dos determinantes sociais da saúde (aquecer e alimentar bem essas populações, em lares mas não só – daí a tragédia de Janeiro), e ter uma resposta rápida dos serviços de saúde, evitando o salto rápido da doença leve para a aguda – isso não pode ser feito por telefone, implicava uma monotorização dos doentes com recursos humanos, nomeadamente ao nível da medição do oxigénio – quem teve em casa um oxímetro, por exemplo, como foi o caso de Daniel Sampaio, que o contou publicamente, sabe que essa pequena máquina e saber ler os seus resultados fizeram a diferença na decisão atempada do internamento. A maioria da população teve apenas um telefone, o que funcionou na maioria dos casos, felizmente, porque a doença é leve, mas não podia jamais verificar os casos graves, silenciosos.
Mas esses recursos humanos, que estiveram grande parte imobilizados (profissionais de saúde sem trabalho ou com ele muito reduzido, aos milhares durante a pandemia!) só poderiam ter retornado ao sistema público com uma requisição civil do sector privado. Ou – com abertura de concursos com carreiras e salários atractivos no público – que sempre defendi, ao mesmo tempo que era e sou contra restrição de direitos e confinamentos. Não o sou por questão de opinião, mas de análise dos factos, a que o tempo cada vez mais dá razão – o confinamento não é matéria de opinião, é mesmo do confronto com a realidade empírica que podemos tirar conclusões. Essa, contratar gente em massas para o público, devia ter sido a primeira e mais importante medida, e a que, junto com aquecimento de casas, e cuidada alimentação, teria impacto na vida, evitando grande parte das mortes evitáveis.
Não, não se vêem doentes pelo telefone
Isso iria esvaziar o sector privado de força de trabalho, e foi por isso que o Governo nunca tomou essa medida. Preferiram manter o lucro do sector privado mesmo que à custa de imobilização de capacidade produtiva que iria produzir riqueza (tratar pessoas) mas não lucro (manter intactos os valores das acções dos investidores dos grupos privados e financeiros). Quando me perguntam: “E na Europa, tirando a Suécia?” Bom, na Europa neoliberal, com a Alemanha à cabeça, a resposta, leio hoje artigos dos meus colegas, foi exactamente a mesma – confinar, restringir e manter o sector privado com ambulância de recursos, sem ser requisitado. Idem para os lares, na sua maioria privados ou do sector social, o lugar de onde vinha a pressão real sobre o número de camas em enfermaria. Os das UCI só se evitariam com tratamento atempado, o que implicava moiotorização com recursos humanos a tempo – não, não se vêem doentes pelo telefone.
Recursos humanos indispensáveis
A este propósito veja-se o caso de Cuba (não, não sou fanática pelo regime, o meu socialismo é romântico, mas sei reconhecer o que funciona e o que não funciona). Cuba tem publicado um boletim diário impressionante onde dá conta – em anonimato – do estado de saúde completo, com todas as comorbilidades, de todos os doentes internados em UCI (nós nem as mortes em lares temos até hoje). E tem, comparativamente a quase todos os países do mundo, um ratio de mortos muito mais baixo, além de já estar a vacinar a população com a sua vacina. O que é diferente em Cuba onde há escassez de quase tudo? Recursos humanos, na minha opinião. A diferença foi a existência de um comando único de saúde.
SNS fragilizado
Aqui não se fez isso, pelo contrário, o SNS e os seus profissionais sairam pior da pandemia, logo nós todos. Não houve mudança nas carreiras, nos salários, e acresceu pressão, o que levou a mais saídas do SNS para o privado; as contratações anunciadas pelo Governo não são de médicos, são de auxiliares, técnicos, e enfermeiros, mas sem nenhuma melhoria das condições de trabalho, o que estimula a migração – que está em fluxo contínuo, mesmo na pandemia; incentivou-se a telemedicina, com custos óbvios na qualidade dos cuidados; deixou de se atender doentes, o que junto com a telemedicina estimulou a procura do sector privado.
Profissionais precisam inverter decadência do sector público de Saúde
É evidente que sindicatos e ordens dos profissionais de saúde devem reflectir sobre isto porque a pandemia podia ter sido uma oportunidade para exigir um SNS forte, e todas as energias foram canalizadas para dar apoiar e dar resposta a uma estratégia (do Governo) que se revelou errada, quer do ponto de vista de salvar vidas, quer do ponto de vista das carreiras no SNS. Tenho e sou defensora dos profissionais de saúde, mas o que aconteceu não pode deixar de ter um balanço crítico. O país confinou, os idosos frágeis morreram sem protecção, todas as medidas foram ad hoc e tocaram em tudo, menos no sacrossanto sector privado que, nunca é demais lembrar, como os próprios gostam de afirmar, estão na saúde para fazer negócios. Temo que a parca resposta dos profissionais de saúde, salvo raras excepções, se deva ao facto de que já deram por adquiridos a decadência do sector público e a dupla jornada no sector privado. É aqui que está o busílis, que é preciso inverter. É que a rigor o sector público condiciona o privado e não o contrário. Quanto pior for o SNS piores serão as condições de trabalho no sector privado.
Deixo aqui a média do número de mortos em Portugal, no dia 6 de junho, de 2021 a 2015, via Maria Spínola:
2021: 267 (265 NÃO Covid-19 e 2 Covid-19) 2020: 2712019: 2502018: 2812017: 2562016: 2752015: 280.
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Obs: publicação original no blogue Raquel Varela | Historiadora, tendo sofrido ligeiras adequações editoriais na presente edição.
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