O silêncio dos inocentes – o papel da vítima no sistema judicial

O silêncio dos inocentes – o papel da vítima no sistema judicial

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Diariamente sou confrontada com conflitos internos de quem assiste, ouve, lê notícias sobre o quão injustas são as sentenças condenatórias, as medidas de proteção (não) aplicadas, a alegada inércia do sistema penal português, relativamente a todas aquelas vítimas de violência doméstica e/ou de crimes sexuais que, com todo o nosso sentido de moral, defendemos. Defendemos pela necessidade inequívoca de proteção destas vítimas de crime tão vulneráveis, que se veem obrigadas a alterar rotinas, mudar de residência, lidar com julgamentos alheios (daqueles que também as defendem), com opiniões de quem, porventura, não compreende a dificuldade em abandonar relacionamentos abusivos e, acima de tudo, se veem obrigadas a enfrentar um processo-crime com tudo o que isso implica: proteção pessoal até aplicação de medidas de proteção, inquirições, necessidades jurídicas, conhecer e dar-se a conhecer a diversas entidades, entre outras.

E assim, comummente, a vítima, num sentimento de desamparo, resigna-se ao silêncio, refere não querer procedimento criminal, teme pela sua vida e dos filhos, pela intervenção de entidades que sentem não estar com a melhor fé. E vamos pensar em conjunto: como seria se ao fim de anos de um relacionamento abusivo, de um desamparo constante, também outros quisessem agora “mandar” na nossa vida? Não iríamos tender a fugir de “mais problemas”?

Todavia, é com esse mesmo silêncio, das mulheres e homens vítimas de violência por parte dos companheiros ou companheiras ou análogos, das mulheres e homens vítimas por parte dos filhos ou filhas, das crianças que são expostas direta ou indiretamente à violência doméstica, das vítimas de violência sexual, que a outra parte, aquela que comete o crime, sacia o seu desvio comportamental.

Silêncio não é solução: uma vítima protegida é uma vítima empoderada

E se, por um lado, compreendo inteiramente este silêncio dos inocentes, por outro, compreendo que não é parte da solução.

Parte da solução é termos vítimas capazes de serem voz ativa do processo-crime, com todo o conhecimento dos seus direitos enquanto vítima de crime, capazes de se saberem defender, de contar com o apoio das associações de apoio à vítima, com o apoio do sistema de justiça que, sem o seu testemunho, perde prova maior do processo.

As vítimas precisam do sistema de justiça e o sistema de justiça precisa das vítimas. Precisa que estas estejam capazes de enfrentar um processo que, sem sombra de dúvidas, é um desafio constante. Mas esta capacidade não é inata. É contranatura e quanto a isso não existem dúvidas. E tal como aprendemos a andar, a falar, a gerir conflitos, temos que aprender sobre o processo-crime, o que é nosso por direito, quais os recursos para a vítima reconstruir o seu projeto de vida, sem necessidade de viver num silêncio surdo e mudo.

Nesse sentido, é urgente a compreensão de todas as vítimas, mas sobretudo de todas as entidades, sejam judiciais ou não, da importância da relação simbiótica entre sistema de justiça e organizações não governamentais de apoio à vítima.

O crime de violência doméstica e/ou sexual vai além da necessidade de condenação. A nós, Entidades/Associações de Apoio à Vítima e às vítimas, importa, sobretudo e primeiramente, a proteção da vítima; e uma vítima protegida é uma vítima empoderada.

Humanizar e eadaptar tribunais para a pessoa não ser vítima do seu próprio silêncio

É urgente a integração das várias entidades da sociedade civil no espaço privado da justiça, assim como é necessária a participação de todas as pessoas testemunhas de episódios violentos.

O/a agressor/a não é impedido apenas com intervenção judicial. É impedido pela sociedade em geral. É impedido quando o sistema judicial se alia às testemunhas e às vítimas. Quando o sistema judicial as protege para que estas possam ser parte ativa do processo, voz, empoderamento. É impedido quando protegemos o/a nosso/a vizinho/a, amigo/a, familiar. É impedido quando escolhemos apoiar ao invés de julgar. É impedido quando escolhemos procurar apoio para lidar com uma situação que não estamos a saber gerir. A violência doméstica é um fenómeno sistémico. Depende, por isso, da intervenção do sistema como um todo. Depende de mim, de si, do tribunal, da vítima. Depende do apoio imparcial a estas vítimas de crime.

E assim, celebro este mês, dois anos de existência de Gabinetes de Apoio às Vítimas em seis Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP), iniciativa do Governo que permitiu a instalação de Gabinetes que podem apoiar a vítima num momento tão crítico do processo, permitindo apoiar, avaliar e encaminhar para a Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, bem como acompanhar a vítima ao longo de todo o processo-crime informando-a constantemente dos seus direitos enquanto vítima, acompanhando em diligências e prestando uma assessoria técnica aos/às magistrados/as que tramitam os processos de violência doméstica.

Sinto esta iniciativa como um pequeno passo numa forte necessidade de humanizarmos e adaptarmos os tribunais àquelas que são as reais necessidades das vítimas de violência doméstica para que a pessoa nunca seja vítima do seu silêncio.

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Imagem: João Marques

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Categorias: Crónica, Justiça, Sociedade

Acerca do Autor

Cláudia Rocha

Cláudia Rocha, Psicóloga, mestre em psicologia Clínica e da Saúde pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, colabora com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) desde 2016. Iniciou o seu percurso no Gabinete de Apoio à Vítima de Braga da APAV estando agora a exercer funções de Técnica de Apoio à Vítima e Gestão do Gabinete de Apoio à Vítima do Departamento de Investigação e Ação Penal da Comarca de Braga. Efetua o atendimento de vítimas de crime. Possui formação no atendimento a vítimas de violência doméstica e crianças e jovens vítimas de violência sexual.

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