‘Só com trabalho, esforço, perseverança e, às vezes, sofrimento, se conseguem atingir objetivos essenciais’
Uma escola que não se pode esquecer

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Queria contar-vos uma história verdadeira que não deixará de vos impressionar.
Há mais de sessenta anos atrás, por volta de 1957, 1958 (antes de Abril de 1974), havia meninos e meninas que, em manhãs de chuva fria, saíam de casa descalços, com uma camurcina de flanela a cobrir-lhes a pele, umas calças de cutim muitas vezes herdadas do irmão mais velho e, na cabeça, um saco de linhagem para os proteger da chuva. E havia dias em que chovia muito!
Na sacola de pano, pendurada a tiracolo, estas crianças levavam os livros, a lousa, o lápis, o ponteiro de ardósia e um pedaço de broa dura de dias ou uma cebola salpicada de sal que iam ser o seu lanche, depois de ainda cedo terem comido um prato de sopa de farinha – umas ‘papas de farinha’ – que as mães lhes arranjavam antes de iniciarem a caminhada pelo caminho de terra, pedras e lama que os conduzia até à escola primária.
Na escola, cheios de frio, passavam longas manhãs a ouvir professores, às vezes meio tresloucados, que lhes metiam na cabeça as contas, a leitura, os rios, as serras, os oceanos, os mares e os planetas.
Primeiros anos de escola com D. Beatriz
Recordo-me de uma professora da quarta classe (o 4º ano de hoje), a D. Beatriz, uma beata solteira de puncho espetado na cabeça, que ficava aterrorizada e nos aterrorizava quando trovoava e o som dos trovões fazia um eco forte e profundo nas encostas do monte que, ao longe, se via da escola de Arnoso Santa Eulália, situada no lugar do Outeiro.
A espumar pelos cantos da boca, a ‘senhora professora’ mandava-nos ajoelhar junto das carteiras e, em altos berros, gritava connosco:
-Vós quereis ir para o Céu ou para o Inferno?
A tremer de medo e a tremer de frio, dizíamos, baixinho, para não atiçar e zangar ainda mais os trovões e, em coro, como se estivéssemos na missa:
-P’ró Céu, minha senhora!
Confortada com a resposta e ainda possessa pelos trovões, a espumar pelos cantos da boca, a ‘senhora’ professora continuava a gritar connosco:
-Então, fazei penitência!!!
E nós fazíamos penitência, ajoelhados no soalho duro da sala de aula, até que os trovões passassem e a ‘senhora’ acalmasse.
Prosseguir os estudos em Famalicão
Assim vivemos durante quatro anos, entre os horrores de professores que não sabiam o que era a palavra carinho, o pão duro do lanche muitas vezes borratado com tinta, descalços, as calças rotas, os pés roxos de frio, o saco de linhagem e a saca dos livros e da lousa, numa interminável ladainha de conhecimentos absurdos que nos enfiavam na cabeça com a ajuda da régua que nos feria as mãos geladas e da cana pesada que nos batia nas cabeças molhadas e mal dormidas…
Há muitos anos também, alguns destes meninos, depois de passarem pelos seminários de Viana do Castelo e de Braga, foram de seguida também para Braga e para Vila Nova de Famalicão, para continuarem a estudar, à custa do sacrifício dos pais e, muitas vezes, dos irmãos e das irmãs. Já não vestiam tão mal, mas a diferença era imensa entre eles e os meninos da cidade que os olhavam como bichos estranhos num território que não era o seu.
Levantavam-se cedo, continuavam a comer as ‘papas de farinha’ e, ainda muito cedo e com uma enorme escuridão no inverno, percorriam largos quilómetros nos carreiros e caminhos de terra batida, ladeados por pinheiros que ameaçavam cair com o vento, para apanharem o comboio em Couto de Cambeses, comboio que os levaria à cidade. Da Estação de Braga seguiam a pé para a escola que frequentavam… Não havia dinheiro para o autocarro…
Depois de uma manhã de aulas, faziam a viagem inversa, de regresso a casa, onde, pelas duas da tarde, comiam o almoço pobre que as mães lhes preparavam.
As tardes eram passadas a olhar pelos bois, pelas ovelhas e pelas cabras, de livro e caderno na mão, para relembrar o que se tinha aprendido de manhã na escola.
Ir mais longe estudando no Porto
Alguns destes meninos chegaram à universidade, no Porto. Continuavam a levantar-se ainda mais cedo, para continuarem a apanhar o comboio que agora ia para muito mais longe. Continuavam a ir às aulas, continuavam a ter manhãs de barriga meio vazia e o corpo frio e, ao início da tarde, regressavam de novo a casa onde almoçavam, não já às duas da tarde, mas às três ou quatro.
O resto era sempre igual, com um dia a seguir ao outro, mas com a esperança de que o esforço seria compensado. Assim foi para alguns. Nestas condições de grande dificuldade, conseguiram licenciar-se em diversas áreas, seguindo carreiras profissionais de sucesso.
Atingir objetivos essenciais
Ninguém quer para as crianças e para os jovens de hoje aquilo que estas crianças e outros jovens, num tempo que não é assim tão distante, tiveram que passar e que sofrer.
O essencial é não esquecer que só com trabalho, esforço, perseverança e, às vezes, sofrimento, se conseguem atingir objetivos essenciais.
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