‘As longas noites de Caxias’ não deixa esquecer a polícia política de Salazar

‘As longas noites de Caxias’ não deixa esquecer a polícia política de Salazar

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A cada novo livro de Ana Cristina Silva que leio, reforço a ideia que já anteriormente expressei de que “a autora revela a sua mestria em analisar e transmitir-nos estados de alma das personagens que cria”. Desta vez, partindo de factos verídicos, o foco é o que o medo faz às pessoas e até que ponto pode chegar a perversidade de uma pessoa para com outras. Para tal, evoca o instrumento que o Estado Novo utilizou para subjugar um povo – a PIDE – analisando o uso do poder e do medo por parte dos torturadores e a capacidade de resistência por parte dos que eram presos pela PIDE.

A autora começa As Longas Noites de Caxias dedicando-o “A todos os resistentes antifascistas” e é clara a vontade, com este livro, de não deixar esquecer o que foi a polícia política de Salazar, num país e num mundo onde a democracia mostra sempre quão frágil e vulnerável é a todos os populismos e inimigos da liberdade e da democracia.

Antes, referi torturadores e torturados. Mas neste livro, as personagens são femininas, ou seja, torturadora e torturada. Laura Branco, a jovem natural de Mértola que, pelo seu excelente percurso escolar, consegue chegar à universidade graças à obtenção de bolsas de estudo e que acaba por ser presa. No Alentejo tinha convivido com crianças descalças, com crianças que iam para a escola com fome, com crianças que eram tratadas diferentemente consoante o seu estatuto social, mas em Lisboa, na faculdade, a compreensão dessa realidade ganhou outra dimensão no contacto com outros estudantes que falavam de discriminações, da sociedade de classes, da guerra colonial que abominavam, sempre com o risco da prisão ou de serem ouvidos por informadores, um pouco por todo o lado.

Maria Helena, tristemente conhecida por Leninha, é também apresentada, não apenas como a feroz chefe de brigada que se empenhava em torturar as presas nas longas noites de Caxias em que estava de turno durante a tortura do sono, mas que exibe um traço maléfico persistente de ódio à mãe vítima da brutalidade do maridoque considerava uma mulher fraca, de maldade para com as colegas da escola e de arrogância e total falta de humanidade ou remorso quando, após o 25 de Abril, foi julgada e confrontada com as presas que tinha torturado. São inesquecíveis as páginas que relatam os métodos usados para com as detidas em Caxias, ou a descrição da forma bárbara como matou um gatinho que se lhe enrolou às pernas e afez cair, num dia em que ainda menina ia para a escola. Esta mulher nunca mostrou o mais leve assomo de sensibilidade ou humanidade, excepto no seu amor à figura de Salazar e no conceito que tinha de amor à pátria. Tal como o beijo que Salazar lhe deu na testa quando criança a marcou para toda a vida, a morte do ditador foi como que o desabar do mundo e a convicção de que os métodos na tortura deviam ser intensificados, sobretudo nos estudantes que ela considerava inimigos da pátria.

O livro tem muito interesse do ponto vista histórico e de testemunho do que era a polícia política, dos seus métodos, do medo que paralisava e tolhia um povo, mas também dos que resistiam e que acreditavam que a ditadura iria acabar. Maria Helena/Leninha foi uma figura sinistra e outros nomes de PIDEs temíveis são lembrados como Barbieri Cardoso, Tinoco ou outros. Os presos eram todos os que ousavam lutar contra a injustiça, a pobreza, a guerra, a ditadura, sendo neste caso focado o papel que o movimento estudantil teve no processo do derrube do regime fascista, com uma referência concreta ao assassinato do estudante Ribeiro dos Santos. Os informadores eram uma teia enorme e difusa e os torcionários eram maioritariamente homens, mas também houve mulheres, embora Leninha tenha sido a única mulher que conseguiu ascender a chefe de brigada, exactamente pela sua ambição de subir na hierarquia e pela ferocidade e brutalidade dos seus métodos. No fim do livro, doente, debilitada e sozinha, mas acompanhada pelo busto de Salazar na sala, ela confessa a uma colega da PIDE que a visita que aquele tempo em que torturou em Caxias tinha sido o período mais feliz da sua vida.

As Longas Noites de Caxias é um excelente livro com enorme actualidade. Para constar da bibliografia a ser usada na disciplina de História, Culturas e Democracia, ou em Cidadania e Desenvolvimento e, com toda a pertinência, fazer parte do Plano Nacional de Leitura.

‘O Último Cabalista de Lisboa’ de Richard Zimler, retrato histórico e rigoroso de uma época

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Imagem: DR/ed VN

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Categorias: Estado Novo, História, Livros

Acerca do Autor

Almerinda Bento

Natural de Abrantese residente em Amora, no Seixal. Professora aposentada, exercendo como professora de Inglês na UNISSEIXAL. Membro da Mesa da Assembleia Geral do SPGL, colabora regularmente no Escola Informação e no site do SPGL.

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