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No cenário político contemporâneo não há gente como a tropa liberal. Muito diversa na forma e na farda, revela a disciplina e a eficácia própria dos grandes exércitos. Tem a verve e os meios necessários para fazer de duas ou três ideias simples e simplistas uma narrativa aparentemente sofisticada. Domina a retórica propagandística com a proficiência necessária para transformar derrotas em estrondosas vitórias (O melhor é entrar pelas traseiras ou procurar uma janela é um bom exemplo). Muito embora as ideias liberais, aqui entendidas enquanto programa político assumidamente liberal, não tenham expressão eleitoral, dominam o cenário político desde há décadas, aplicando uma cartilha que se tornou em manual obrigatório – programas de privatização; desregulação económica; liberalização do mercado de trabalho; substituição do Estado Social por mecanismos de solidariedade social voluntária expressa em bancos alimentares e similares; criação de instrumentos de crédito e de dívida que regulam toda a atividade económica, incluindo o acesso a bens essenciais como a água potável ou a habitação.
Uma parte do sucesso do liberalismo está sua capacidade de arregimentar bons soldados. Ao que parece o alistamento começou cedo, logo no pós-guerra, com a constituição da Société du Mont-Pèlerin (1947), o primeiro dos muitos «think tanks» que iriam mudar o rumo da economia e das finanças planetárias três décadas depois. A história é conhecida. Foi escrita por mestres inspiradores mais ou menos divinizados, como Hayek ou Popper, economistas consagrados, como Friedman, e políticos poderosos, como Reagan e Thatcher. A estes se juntaram sargentos e alferes, o que também sucedeu entre nós, desde intelectuais desavindos com «amanhãs que cantam», como João Carlos Espada, a pragmáticos pouco recomendáveis, como Durão Barroso, passando por gananciosos sôfregos, como José Sócrates, para acabar na soldadesca que hoje ocupa e se ocupa de uma boa parte dos palcos que gerem a informação.
Na Chicago de Friedman criou-se uma receita simples (sempre a mesma) que se fez chegar a lugares que crises sucessivas tinham preparado para aceitar qualquer terapia de choque. Em todos esses países usados para experimentação, desde o Chile de Pinochet ao Portugal de Passos Coelho, a receita revelou-se eficaz, mas não exatamente para obter o que prometia. As políticas de desregulação e de privatizações, que já referi, não conduziram a sociedades prósperas, mas sem dúvida que garantiram uma infinita prosperidade às elites que puderam comprar para si o que fora de todos e que tiraram proveito da falta de regulação financeira que elas próprios impuseram. Apesar de todos os fracassos, o liberalismo continuou a ser a luz que iluminava o presente e sinalizava o futuro. Uma luz que mostrou como o mundo se ia tornando cada vez mais desigual, na verdade, insuportavelmente desigual. Em outubro passado era notícia que nos últimos 25 anos a fortuna dos mais ricos (cerca de duas mil pessoas) aumentara dez vezes, passando de 850 mil milhões de dólares para de 8,5 triliões. Não haja dúvida que as tropas liberais fizeram o seu trabalho: limparam o terreno, semearam e agora colhem o que a outros faz falta.
Uma parte da explicação do sucesso deste modelo (que não é apenas económico, claro, é sobretudo cultural, na medida em que desenha o sentido do mundo) deve-se à sua capacidade de dispensar a democracia. Sob a sua luz, às escolhas eleitorais não correspondem opções políticas alternativas. Ao contrário, qualquer alternativa é sempre secundarizada face àquilo a que chamam a «Realidade». Esta opõe-se ao que designam por «Ideologia» (sempre a dos outros, nunca a deles), e a ideologia nada pode contra a pesada. Realidade com que constantemente nos acenam – e que não é senão o cenário que as suas políticas construíram. Face a esta espécie de «pescadinha de rabo na boca», a participação democrática torna-se na «festa da democracia», ato ritual exercido a cada quatro ou cinco anos e do qual não decorre qualquer consequência efetiva. De algum modo, o liberalismo entrou e fechou a porta, tornando-se na única solução pensável como realista, um pouco à semelhança do que aconteceu com o «socialismo real» do antigo bloco soviético.
Face à porta fechada, as soluções não têm sido muitas. A esquerda não encontra caminho. Ora bate na porta agitando velhos slogans, do género «os trabalhadores e o povo», ora se orienta para outras causas, como se a mãe de todas as causas estivesse resolvida. À direita, a solução encontrada passa pelo reforço do poder do Estado, o que vem sendo procurado de muitas formas, nas «democracias iliberais» do Orbán ou de Putin, ou no «centralismo capitalista» da China, por exemplo. Fugindo desta e sem que a outra me convença, dou por mim pensando que quando a porta está fechada e bem trancada de nada adianta chocar contra ela. O melhor é entrar pelas traseiras ou procurar uma janela. Onde ficam as traseiras e como encontrar uma janela aberta é já outra conversa.
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