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No segundo episódio da série de reportagens da SIC Notícias sobre o Chega! – A Grande Ilusão : cifrões e outros demónios -, apareceu o “ideólogo” do partido, tal como tem sido apresentado, Diogo Pacheco de Amorim. Como crédito para esse título, apenas uma entrada no CV: a de ter traduzido a “obra principal” de Alain de Benoist (aos 5’48” da reportagem). Que obra? Toda ou apenas um par de livros? E quais? Nada. O que deveria ser importante – estabelecer a genealogia ideológica de um partido neo-fascista, de cepa caceteira retintamente duriense – acaba por não merecer ao jornalista nem um título. Pois o título foi publicado pela editora Afrodite mesmo no final de 1980 (em rigor, impresso em Dezembro desse ano, e publicado no início do ano seguinte), ano de ouro da “nova direita” portuguesa, e era precisamente Nova direita, nova cultura (um original de 1977, Vu de droite: anthologie critique des idées contemporaines, que em 1978 recebera um prémio da Academia francesa).
E traduziu Pacheco de Amorim, ao menos, todo o livro? Acrescentou-lhe aparato crítico, notas, um prefácio, algo que um “ideólogo” faria com uma perna às costas? Não. Para além dele, traduziram o livro mais oito pessoas, entre as quais outros dois Pachecos de Amorim (incluindo Maria João, filha do ex-líder do MDLP, Fernando Pacheco de Amorim, tio de Diogo), e nomes de certo modo esperados como o de Goulart Nogueira e o do jornalista do “Diabo” Jorge de Morais (o aparato crítico é de outro nome ainda mais esperado por então, o de José Miguel Júdice).
Sabe-se que, em 1979-80, o editor conspirara, junto a Natália Correia no Botequim, para fortalecer o apoio da direita (no centro da qual o PSD) a uma candidatura de Pires Veloso contra Eanes nas presidenciais desse ano, contra, sobretudo, a escolha final de Sá Carneiro, o homónimo Soares Carneiro, e o seu salto para a mesa do júri de um concurso da RTP em 1980, quando dirigida por Proença de Carvalho, se deveu, certamente, a uma aproximação social a esses círculos da “nova direita”.
Voltando então ao ideólogo do Chega!, conclui-se que, para a SIC, ele é-o apenas porque cumpriu 1/9 da tradução de um livro em 1980. E, ouvindo-se o líder do partido e os seus apoiantes nesta peça da SIC (em particular o seu “gauleiter” do Porto), não é difícil perceber porque tudo soa colado a cuspo, a mais um “caso de bola” do que à formação de um partido que, no mínimo, pretende desafiar o funcionamento institucional (se não mesmo democrático) da III República.
Isso fez-me lembrar de um capítulo de um livro de Timothy Ryback sobre a biblioteca de Hitler (Civilização, 2011) e, mais importante, sobre como certos livros se cruzaram no seu percurso e o influenciaram. É aquele em que analisa a rivalidade que podia ter ditado o fim da incipiente carreira do futuro ditador no partido Nazi, aquela que o opôs a Otto Dickel, autor de um livro (“Die auferstehung des Abendlandes”, O ressurgimento do Ocidente) que, em 1921, atraiu sobre si as atenções desse partido em busca de um líder e – lá está – de um ideólogo. Dickel, para além de carisma e inteligência, provinha do meio académico (era professor de Filosofia na Universidade de Augsburg) e, em Munique, perante os cabecilhas nazis, Hitler incluído, conseguira rebater um a um os 25 pontos do manifesto que este propusera como programa do partido. Ou seja: antes da prisão que lhe daria a caução de “mártir” político e onde escreveria o “Mein Kampf”, o manual ideológico dos Nazis, já Hitler se vira confrontado por um verdadeiro ideólogo, para mais munido de um livro. Sem educação formal, agindo num autodidactismo que o levava a aglomerar confusamente bibliografia de origens variadas, superficialmente lida (ou apenas no que lhe interessava retirar para os seus discursos em cervejarias), Hitler teve de ler e anotar cuidadosamente o livro de Dickel e argumentar contra o seu adversário (para além de jogar contra ele com a fidelidade de algumas figuras cimeiras do partido, que concordaram com a expulsão daquele e com a concentração em Hitler de todos os poderes). Em suma: uma luta ideológica entre dois aspirantes a ideólogos de um partido autocrático e anti-democrático, muito semelhante ao coevo partido fascista italiano.
No Chega!, e baseando-nos no que se ouve nesta reportagem da SIC, nada disto se passa. O seu líder, como Dickel, provém do meio académico, mas o doutoramento em Cork serviu-lhe para se encaixar na Autoridade Tributária e, desta, saltar para a assessoria a empresas, ajudando-as a escapar à Autoridade Tributária, e na gestão de um partido financiado por um oleoso milionário-e-cônsul-honorário português em Miami, e posto a funcionar por amigos do “Macaco” da claque portista, não se ouve o restolhar de uma única folha de livro. Do “ideólogo”, o tal da longínqua tradução do Benoist, ouve-se apenas que só aceitou integrar a fundação do oleoso milionário porque lhe garantiram que não seria pago. Um descanso.
Quanto ao longínquo editor do livro que supostamente cimenta a “ideologia” deste saco de gatos gulosos, a “nova direita” serviu-lhe tanto como a esquerda revolucionária, e no final desse ano de 1981, com a AD ainda no poder, e depois do lançamento de um livro de Natália em que, no Teatro Nacional, junto ao ministro da cultura, a autora acusou o governo de censura, meteu o Estado em tribunal.
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