O Mundo já estava acabadinho

O Mundo já estava acabadinho

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Este foi um ano excepcional. Milhões de pessoas foram forçadas a olhar-se ao espelho. E não gostaram do que viram.

Há alguns anos fui à Austrália participar de uma conferência sobre lutas dos estivadores. Havia vários delegados sindicais ali, de todo o mundo. Tinha regressado de Brasília, aterrado dois dias em Lisboa e seguido para a Austrália. Quando lá cheguei levitava, colocava o pé no chão e o chão fugia. Levantava-me e um peso, como barras de ferro, obrigava-se de novo a sentar. Foi o jetlag mais duro da minha vida, só os bravíssimos estivadores mereciam tal sacrifício, pensava eu. Dou sempre uma caminhada de 6 km por dia e lá não conseguia fazê-lo sozinha. Um dos delegados sindicais, de uma grande multinacional automóvel de uma das cidades principais dos EUA – cujo nome e lugar, pelo que perceberão a seguir, não posso referir – acompanhou-me sempre gentilmente pelo passeio.

Tivemos assim, vários dias, uma sessão de conversa de 2 horas, que rapidamente virou uma espécie de psicoterapia laboral. No primeiro dia perguntei-lhe como era a vida na fábrica e ele respondeu-me sem hesitar “Maravilhosa!”. Insisti nas perguntas. Agora mais detalhadas: horários de trabalho (12 por dia 4 dias, mais horas extraordinárias); relação com os colegas; métrica e quadros de produtividade; assédio moral; consumo de bebidas energéticas; pessoas que se reformam incapazes depois dos 50 anos; consumo de drogas como autodoping para aguentar ritmos de trabalho. No fim confessou-me que até havia crack – “frequente” -, mortos e feridos – quando há disputas nos EUA as pessoas estão armadas. Ele foi-me perguntando o que eram aquelas coisas que eu tinha falado na conferência (falei no primeiro dia): burnout; presenteismo; alienação; sentido do trabalho; linha de montagem e despersonalização; repetição de movimentos e efeitos no corpo (que é sempre mente); impacto na vida familiar, afectiva e sexual destes horários; burocratização sindical.

No fim dos 4 dias de passeio ele olhou para mim – jamais o esqueço -, “ainda bem que sou delegado sindical a tempo inteiro, hoje era incapaz de voltar à linha de montagem…”. Tinha menos de 35 anos e era um homem bonito. Ainda saudável, sem as maleitas visíveis na pele, no olhar sem vida, do trabalho nos tempos modernos. “Melhor do que optar por ser delegado a tempo inteiro” – respondi-lhe, sem ironia -, era lutar de facto para mudar as condições de trabalho todas na fábrica porque burnout também acontece a quem desiste ou a quem usa o sindicalismo, mesmo que com a melhor da intenções, para fugir de um lugar que lhe faz mal (o que dará sofrimento ético). Na verdade, só quem resiste não tem a sua auto-estima posta em causa, era a minha opinião. Só quem resiste permanece com a pele brilhante e os olhos encantadores. Voltei a vê-lo pelas redes sociais, em fotografias oficiais, na grande multinacional automóvel em acções de caridade – convencido certamente que podia fugir de si próprio.

Famílias confinadas

Este ano milhares de pessoas que odeiam o seu trabalho aceitaram fingir que trabalhavam em tele-trabalho e que até tinha as suas vantagens. Não tem, nenhumas. A questão é que já estavam confinadas no trabalho, onde a avaliação de desempenho impunha a solidão, com a destruição de equipas. Já não gostavam do trabalho que faziam, metrificado, sem qualidade – a métrica é inimiga da qualidade do trabalho. Milhares, milhões, viviam sozinhos e sozinhos ficaram, no confinamento. Milhares tinham os filhos confinados a jogar telemóvel e computador, até – em média – 8 horas diárias de ecrã. Nem se aperceberam que os filhos já estavam muito antes de Março, assim, “confinados” em casa com uma tela, sós. Também não podiam correr riscos antes, brincar na rua, correr e cair, sair com os amigos, porque antes de Março já havia a ilusão do risco zero – os pais já não os deixam sujar-se, mexer-se, ser livres e sociáveis; a escola já era um lugar onde eram despejados 8 horas por dia, fechados também, aborrecidos em geral, dessocializados – ficaram pior, claro, confinados, mas já não estavam bem.

Idosos confinados

Milhares de idosos já estavam abandonados em casa ou em lares, pelo SNS, pelo Estado e pelas famílias, entaladas em horários de trabalho insuportáveis e salários que não dão para ver o fim do mês. Milhares de professores, mais de 80%, queriam reformar-se antes do tempo, e os médicos, grande parte, tinham sido colocados como operadores de uma linha de montagem sem relação médico-doente – já estavam alienados do seu trabalho com consultas cronometradas – a tele-medicina foi apenas a sequência disto. Os enfermeiros já eram mal tratados, desconsiderados e mandados emigrar, muito antes de Março. O burnout atingia já metade ou mais destas populações.

Trabalhadores confinados

No mundo operário, mais de 1 milhão de trabalhadores já viva o “recolher obrigatório” – saíam de casa para trabalhar em laboração contínua, até 70 horas por semana, e chegavam a casa sem dinheiro ou forças para sair. Recolhiam-se. Na verdade a vida em confinamento e o autoritarismo foi aceite não só por causa do medo, mas porque grande parte das pessoas não sabia bem o que era a liberdade. Não percebeu bem o que tinha perdido, porque a perdeu há tanto tempo, que a memória já a transformou em “natureza humana”.

Um Mundo acabadinho

O autoritarismo chegou a um mundo já embrulhado no início de uma crise económica que começou em Outubro de 2019, na Alemanha e nos EUA, em concorrência com a China, ameaçado de guerras e desigualdade social estrutural, a que se juntou a uma crise pandémica e social em Março de 2020. A informação já era um palco de desinformação ao fim de anos de precariedade dos jornalistas e perda das redacções colectivas e do jornalismo de homens cultos e intelectuais. Os bairros e as aldeias já não tinham vida e não havia esfera pública. As oposições políticas construtivas e de transformação para a melhoria social já tinham desaparecido há anos com a TINA, pelo que o unanimismo politico no desastre que foi a condição da pandemia, não é também surpresa. A política já tinha sido profissionalizada e o hiato entre governantes e governados agigantado. Daí que muita gente aceite amanhã ver direitos fundamentais postos em causa em democracia. As expectativas já eram baixíssimas e os sonhos almofadados do “vai-se andando”. Já não se sonhava no mundo em 2019. Ou, como diz, com muita graça o cantor brasileiro Karnak “Todo mundo tem medo / que o mundo acabe / Mais o mundo / já tá [a]cabadin[ho]”.

O novo Ano Novo

Que o confinamento tenha servido pelo menos para olhar assim para o espelho, e escolher outro caminho, são os meus votos para 2021. Não sei o que será – sei que será o que fizermos, colectivamente, dele. E isso começa por explicarmos a nós próprios que o que vivíamos não era “maravilhoso”. Ou, nas palavras do poeta Carlos Drummond de Andrade: “As nossas alucinações são alegorias de nossa realidade”. Que uma nova realidade veja luz em 2021, são os meus desejos sinceros. Acredito na esperança como paixão alegre. Acredito num mundo diferente, melhor, desmercantilizado, de afectos, arte e proximidade social, um mundo livre. Não acredito que ele possa erguer-se com mentiras sinceras que contamos a nós próprios. Faz sentido esperar um ano novo se for o novo.

Obs: publicação prévia no blogue Raquel Varela – Historiadora Labour Historian, em 30122020.

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Categorias: Crónica, Pandemia, Sociedade

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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