E se Marcello Caetano tivesse conseguido realizar a transição para a democracia em Portugal?

E se Marcello Caetano tivesse conseguido realizar a transição para a democracia em Portugal?

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A 26 de outubro, assinala-se o 40.º aniversário do falecimento de Marcello Caetano, uma das individualidades mais marcantes do século XX português. A sua ascensão à liderança do Governo criou enormes expetativas a nível nacional e internacional. Eis a história contrafactual de uma transição bem sucedida liderada por Marcello Caetano.

Caetano entre a primavera e o inverno

Em setembro de 1968, António de Oliveira Salazar, o homem que tinha fundado e liderado o regime autocrático do Estado Novo, foi internado com urgência num hospital de Lisboa. Tornou-se evidente a sua invalidez definitiva. O presidente da República, Américo Tomás, após consultar o Conselho de Estado e diversas personalidades do regime, anunciou a exoneração de Salazar e a sua substituição por Marcello Caetano na presidência do Conselho de Ministros. O lema anunciado no seu discurso de tomada de posse foi o de evolução na continuidade. A continuidade visou tranquilizar a ala mais conservadora, que enfatizava o imobilismo como a única defesa possível do regime. A evolução dirigiu-se ao crescente número daqueles que consideravam que a 2.ª República só poderia manter-se através de reformas ousadas e inovadoras, de cariz liberalizador e inclusive democratizador.

Marcello Caetano promoveu um conjunto de reformas, tímidas umas, nomeadamente a substituição dos nomes da censura e da polícia política, outras audaciosas, nos domínios do ensino, da previdência social, da saúde e do desenvolvimento económico.

Uma das primeiras medidas reformistas do Marcello Caetano foi a revisão da legislação eleitoral, com vista à preparação das eleições para a Assembleia Nacional, tendo sido alargado o direito de voto. Como a constituição de partidos políticos não foi permitida, começaram a formar-se comissões eleitorais para organizar as candidaturas da oposição. Entretanto, as divergências internas no âmbito da oposição tornaram-se cada vez mais visíveis, o que levou à apresentação de candidaturas separadas. Por um lado, a Comissão Democrática Eleitoral (CDE), na qual a influência comunista era grande, mas que englobou igualmente católicos progressistas e outros democratas. Por outro lado, a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), formada por socialistas e outros oposicionistas não comunistas. E por fim, a Comissão Eleitoral Monárquica (CEM), constituída por monárquicos democratas.

Contudo, apesar das expetativas reformistas criadas, a campanha eleitoral decorreu com diversas irregularidades e num clima restritivo e as eleições processaram-se com base em cadernos eleitorais muito incompletos, sem condições de igualdade para as candidaturas em presença e com dificuldades de fiscalização em muitos locais.

As eleições de outubro de 1969 para a Assembleia Nacional traduziram-se num triunfo para a União Nacional e foram uma desilusão para as diversas correntes da oposição.

A partir de 1970, começaram a arrefecer as expetativas quanto à liberalização do regime. A Ala Liberal, um grupo de jovens deputados reformistas na Assembleia Nacional, propunha reformas no sentido da instauração de uma democracia de modelo europeu ocidental, mas viu-se progressivamente isolada. Em 1970, a União Nacional passou a ser denominada como Ação Nacional Popular, mas essa tentativa de revitalização não teve o êxito esperado. Acima de tudo, a ausência de pluralismo político e os mecanismos repressivos, nomeadamente a censura e a polícia política, permaneceram.

A revisão da Constituição de 1933, realizada em 1971, foi uma oportunidade perdida no que diz respeito às aspirações de liberalização política, apesar do empenho dos deputados da Ala Liberal. Contudo, introduziu alterações importantes, embora tardias, no sistema de governo ultramarino. Os territórios passaram a ser considerados regiões autónomas, tendo sido atribuída a Angola e Moçambique a designação honorífica de Estados.

O aumento da contestação interna e externa à política de guerra ultramarina e a consolidação do poder dos setores mais conservadores determinaram a reativação dos mecanismos repressivos e o aumento das restrições à atuação das diversas correntes da oposição.

O desenvolvimento da contestação nas Forças Armadas agudizou a agonia do regime. A maioria dos oficiais intermédios tinha uma visão política completamente diferente da generalidade dos comandos superiores. Em agosto de 1973, formou-se o denominado movimento dos capitães, o embrião do Movimento das Forças Armadas, formado por oficiais intermédios e subalternos. Constituído inicialmente por reivindicações de cariz profissional, transformou-se rapidamente num movimento de clara contestação política que culminou com o derrube do regime do Estado Novo em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos. Este artigo descreve uma história alternativa do marcelismo.

O momento de viragem

No dia 1 de dezembro de 1971, Marcello Caetano tinha chamado para uma reunião Pedro Feytor Pinto, o jovem diretor dos Serviços de Informação. A reunião, que decorreu na sua residência particular, na Rua Duarte Lobo, em Alvalade, durou toda a tarde daquela quarta-feira, feriado nacional que assinala a restauração da independência portuguesa. Foi uma conversa longa e detalhada, na qual Feytor Pinto transmitiu a Caetano os resultados da sua missão a Angola e Moçambique. Após terem abordado a situação política ultramarina, quase no final da conversa, Caetano perguntou a Feytor Pinto: “O que acha se eu pronunciar a palavra a autodeterminação?” Feytor Pinto respondeu a Caetano: “Deixaria de ser Presidente do Conselho a curto prezo, mas voltaria mais tarde, e ainda com mais força.”

Apos a reunião com o seu jovem colaborador, Caetano ficou muito reflexivo. A resposta de Feytor Pinto não lhe saiam da sua mente. Enquanto estava a meditar, fechou os olhos e manifestou-se na sua mente um poema de Fernando Pessoa. Um poema cujos últimos versos eram os seguintes: “E outra vez conquistaremos a distância, Do mar ou outra, mas que seja nossa.”

Caetano sentiu uma presença fortemente inspiradora, renovadora e transformadora. Ligou ao seu chefe de gabinete, Quesada Pastor, para que este convocasse uma reunião para a manhã do dia 3 de dezembro no Palácio de Queluz. Uma reunião com caráter restrito e secreto, para a qual foram convocadas alguns ministros do Governo, o presidente da Assembleia Nacional, Carlos Neto, e outras pessoas como o presidente da Comissão Executiva da Ação Nacional Popular, José Guilherme Melo e Castro e os secretários de Estado César Moreira Baptista, João Salgueiro e Joaquim da Silva Pinto e o diretor dos Serviços de Informação, Pedro Feytor Pinto.

Na reunião do Palácio de Queluz, Marcello Caetano abordou a situação nacional e internacional, considerando que Portugal enfrenta a situação mais complexa da sua história multissecular. Enunciou a sua visão estratégica para o país: caminhar na liberalização política e na autonomia progressiva do ultramar e, simultaneamente promover o mais rapidamente possível o desenvolvimento económico e social. Com mais prosperidade económica e justiça social, a restauração das liberdades cívicas e políticas e a resolução da questão ultramarina, num quadro de uma autodeterminação autêntica e sem interferências externas, seriam mais fáceis de alcançar.

Em seguida, abordou a essência da Constituição de 1933, que na sua perspetiva consagrava para a organização do poder político uma abordagem republicana, democrática e presidencialista, visto basear-se no equilíbrio os valores da autoridade e da liberdade, da soberania popular e do corporativismo, bem como no reconhecimento do papel do presidente da República como primeiro poder no âmbito dos órgãos de soberania.

Considerando que o poder político é um instrumento providencial ao serviço das pátrias e da humanidade, mesmo que isso represente o sacrifício dos indivíduos, Caetano anunciou a sua decisão de manifestar a sua disponibilidade para se candidatar a presidente da República. A audiência ficou ao mesmo tempo surpreendida e entusiasmada.

De uma forma sigilosa, foram organizados grupos de pessoas, colocados em diversos pontos estratégicos de decisão, com o objetivo de preparar a candidatura presidencial de Caetano.

Conseguiu-se o apoio de alguns dos principais empresários do país, como José Manuel de Mello, António Champalimaud e Arthur Cupertino de Miranda.

Foram feitos contactos com as Forças Armadas, através dos ministros militares e do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Venâncio Deslandes.

Perante a irredutibilidade de Thomaz em querer recandidatar-se, foi Deslandes que teve uma intervenção relevante, porventura decisiva. Deslandes expressou que a posição das Forças Armadas era desfavorável à recandidatura do velho almirante, alegando a questão da idade e a relevância de que a chefia do Estado deveria ser ocupada por uma pessoa mais nova e enérgica e com experiência internacional, sobretudo num contexto no qual Portugal se defrontava com um cenário externo cada vez mais desfavorável.

Além disso, a intervenção de Deslandes foi valiosa para superar as resistências de alguns setores das Forças Armadas, uns porque estavam habituadas a um regime que atribuía a chefia de Estado a um militar, outros porque estavam desconfiados das perspetivas reformadoras de Caetano. Contudo, nas Forças Armadas, houve setores que mostraram um franco apoio a Caetano, nomeadamente os comandantes-chefes de Angola e da Guiné, generais Costa Gomes e António de Spínola, para não falar das camadas mais jovens dos oficiais.

A nível internacional, os principais países aliados de Portugal manifestaram de forma discreta, mas assertiva, a sua simpatia pela ascensão de Caetano à presidência da República.

Fortemente pressionado, o almirante Américo Thomaz aproveitou as comemorações da revolução de 28 de maio de 1926 para anunciar publicamente que não iria recandidatar-se.

A eleição presidencial de 1972

No dia 25 de julho de 1972, reuniu-se o colégio eleitoral para a eleição do presidente da República, formado pelos deputados da Assembleia Nacional, pelos procuradores da Câmara Corporativa e pelos representantes municipais de cada distrito ou de cada província ultramarina não dividida em distritos e ainda pelos representantes dos órgãos eletivos com competência legislativa dos territórios ultramarinas.

Em 645 votos entrados nas umas, houve 605 votos em Caetano, e 40 boletins nulos: No dia 9 de agosto, teve lugar a tomada de posse de Marcello Caetano como presidente da República.

O discurso de tomada de posse de Caetano não foi, como era de praxe, uma mensagem protocolar, mas uma verdadeira proclamação de um projeto político inovador e ousado em diversos aspetos.

Caetano anunciou reformas profundas na organização política e administrativa como a garantia do exercício das liberdades dos cidadãos em regime de ordem e responsabilidade, a igualdade de direitos entre homens e mulheres; a revisão da legislação eleitoral, a pluralidade de associações cívicas que respeitassem os princípios fundamentais da ordem constitucional, a reforma do sistema judicial, a reestruturação das forças e serviços de segurança, a revisão do Estatuto do Trabalho Nacional; a revisão das relações políticas, administrativas e económicas entre o Portugal europeu e o ultramar; a descentralização administrativa e o fortalecimento das autarquias locais, com vista à participação dos cidadãos na esfera política dos respetivos órgãos.

No que se refere à política social, uma preocupação central de Caetano ao longo da sua vida pública, era preconizada uma política social que tivesse como desígnio o aumento progressivo e efetivo do bem-estar de todos os portugueses, preconizando a criação de um salário mínimo nacional, a consolidação da reforma educativa, a criação de um sistema integrado de segurança social, o lançamento das bases para a criação de um serviço nacional de saúde de acesso universal e o desenvolvimento de uma política de acesso à habitação condigna.

Anunciava uma política de expansão e de aproveitamento das potencialidades nacionais, conducente à promoção do progresso económico, ao fomento do desenvolvimento territorial harmonioso e ao reforço da ligação da economia portuguesa com a economia internacional.

Em matéria de política externa, preconizava a adesão aos princípios da independência e igualdade entre os Estados e de não ingerência nos seus assuntos internos, a defesa da paz, o respeito dos compromissos resultantes derivados dos tratados em vigor e o alargamento e diversificação das relações internacionais.

Por fim, no que se refere á questão ultramarina, considerava que a sua solução estava no desenvolvimento rápida de sociedades multirraciais onde todos tivessem lugar sem distinção de etnia, cor, credo ou categoria pessoal e social, o que implicava uma política renovada que garantisse simultaneamente a valorização do legado histórico da presença lusa em África e na Ásia, a defesa contra as interferências externas, a salvaguarda da convivência pacífica entre os vários grupos étnicos, religiosos e culturais e a prossecução de medidas tendentes ao reforço das autonomia progressiva dos territórios ultramarinos, com efetiva e ampla participação das populações autóctones.

Prudentemente, Caetano optou por não anunciar publicamente o reconhecimento do princípio de autodeterminação, de forma a dar tempo ao novo Governo por si indigitado para a criação de condições para a concretização de autodeterminações autênticas.

A equipa governativa de Caetano

No dia seguinte à tomada de posse presidencial, tomou posse o novo Governo, presidido por Baltazar Rebelo de Sousa, incluindo um elenco ministerial que pretendia renovar a governação pública em diversos setores: Pedro Feytor Pinto (Ministro Adjunto da Presidência do Conselho); Rui Patrício (Negócios Estrangeiros); Manuel Cota Dias (Finanças); Joaquim da Silva Cunha (Defesa); André Gonçalves Pereira (Ultramar); César Moreira Batista (Interior); Diogo Freitas do Amaral (Justiça e Reforma Administrativa); Rogério Martins (Economia), João Mota de Campos (Planeamento e Ordenamento do Território); Rui Sanches (Obras Públicas e Comunicações); José Veiga Simão (Educação e Cultura). Joaquim Silva Pinto (Trabalho e Previdência Social), Clemente Rogeiro (Saúde).

A primeira medida política de Caetano foi demitir Fernando da Silva Pais do cargo de diretor-geral da Segurança, substituindo-o por Álvaro Pereira de Carvalho, que tinha a ambição de transformar a DGS num serviço de informações moderno ligado à promoção da segurança interna e externa, mas com poderes estritamente limitados pela lei, seguindo o exemplo dos países ocidentais. Silva Pais foi para uma espécie de exílio dourado como embaixador português na Colômbia.

A liberalização política interna

Caetano apelou publicamente à “pacificação da grande família portuguesa” e à “reconciliação genuinamente patriótica entre todos os portugueses de boa vontade”, tendo anunciado uma política de “liberalização progressiva e segura”.

Neste sentido, o novo Governo tomou um conjunto de medidas direcionadas para a liberalização gradativa da vida política nacional, nomeadamente a limitação drástica dos poderes da DGS, a redução do período de prisão preventiva, a reforma da legislação relativa aos crimes políticos e às medidas de segurança, a supressão da censura prévia aos meios de comunicação social e o reconhecimento do denominado pluralismo cívico.

Através do designado pluralismo cívico, promovia-se o reconhecimento legal da oposição não comunista e não radical. Neste contexto, os liberais, os sociais-democratas, os socialistas moderados e os católicos progressistas integrariam o sistema político renovado. Em contrapartida, Caetano considerava o comunismo e a extrema-esquerda revolucionária como intrinsecamente perigosos. Para estes setores políticos, que Caetano entendia que promoviam a subversão e a alteração violenta das instituições e da ordem social, continuavam a vigorar as medidas policiais de investigação, prevenção e repressão, embora com garantias renovadas de legalidade.

Caetano defendia a evolução política de Portugal deveria ser alcançada tendo em conta a identidade portuguesa, tendo preconizado uma “democracia no estilo português”, baseada no equilíbrio entre os valores da autoridade e da liberdade, da soberania popular e do corporativismo. Por isso, apelou à cooperação de grupos políticos, da extrema-direita aos socialistas. Alegou que era um liberal conservador clássico e que estava aberto à cooperação com todas as ideologias não comunistas.

Num gesto especialmente simbólico, Caetano decidiu reabilitar as comemorações oficiais do 5 de outubro, considerando a relevância de duas datas particularmente relevantes do percurso histórico do nosso país: a celebração do tratado de Zamora, em 1143, ano qual Afonso VII, rei de Leão e Castela e imperador da Hispânia cristã, reconheceu Afonso Henriques como rei de Portugal, e a revolução republicana de 1910. Através desta medida, Caetano caiu nas graças de republicanos de diversas tendências e satisfez igualmente muitos monárquicos de tendência mais liberal e reformadora.

A estratégia de liberalização política deu origem a um otimismo renovado na sociedade portuguesa e a expetativas renovadas a nível internacional.

Em novembro de 1972, foi aprovada uma revisão profunda do Código Administrativo, que assentava nas seguintes caraterísticas basilares: descentralização de competências com a definição clara dos diversos níveis territoriais de intervenção; criação e consolidação dos órgãos da administração local e regional com capacidade de atuação nos campos político, administrativo, técnico e financeiro; fomento da participação dos cidadãos e dos interesses organizados da sociedade civil na esfera política dos órgãos da administração local e regional.

Preconizando a valorização do municipalismo, a nova legislação previa uma reforma profunda da organização política e administrativa a nível municipal. A composição da Câmara Municipal passou a ser estruturada de acordo com um processo misto de sufrágio direto e orgânico. Metade dos vereadores passaram a ser eleitos por sufrágio direto, um quarto passaram a ser designados pelas Juntas de Freguesia e o restante quarto é designado pelos organismos corporativos locais. O presidente e o vice-presidente da Câmara Municipal passaram a ser eleitos, entre os residentes do concelho, pelos vereadores. O presidente da Câmara Municipal era simultaneamente o órgão executivo municipal e o representante do poder central na área do município, com poderes de superintendência sobre a administração municipal. Fazendo uma articulação entre os princípios da representatividade e da eficácia, tão cara a Caetano, o legislador instituía em cada município um secretário-geral municipal, uma espécie de chefe de secretaria municipal reforçado, a quem era confiada a coordenação da estrutura da administração municipal, a gestão dos assuntos correntes e a assessoria técnica direta aos órgãos municipais. O legislador reforçou ainda a autonomia financeira e de gestão de recursos humanos das autarquias municipais e limitou o poder de tutela.

Em 1973, foi definida nova legislação eleitoral. As grandes novidades foram as seguintes: um sufrágio genuinamente universal, incluindo todos os cidadãos portugueses com mais de 18 anos, independentemente dos critérios de sexo, habilitações literárias ou rendimentos que, em regimes anteriores, haviam servido para negar o direito de voto à maior parte da população; a obrigatoriedade do recenseamento eleitoral; o voto em cabines, com boletins entregues pela mesa eleitoral, em vez do voto com listas previamente distribuídas pelas candidaturas, e facilmente distinguíveis entre si pelo tipo de papel ou formato; a vigilância do escrutínio por representantes das candidaturas com acesso aos cadernos eleitorais; o acesso das candidaturas a tempos de antena, na televisão e na rádio.

Em outubro de 1973, as eleições parlamentares proporcionaram a vitória â Ação Nacional Popular, mas tiveram a presença de outras forças politicas, que conseguiram representação na Assembleia Nacional. A União Social Democrata, de centro-esquerda, baseada na Ala Liberal e liderada por Francisco Sá Carneiro, afirmou-se largamente como a segunda força política nacional. O terceiro lugar coube ao Movimento Democrático Português, uma ampla frente unitária de setores de esquerda, desde a Ação Socialista Portuguesa, liderada por Mário Soares, que foi legalizada, a elementos ligados ao Partido Comunista Português, que não foi objeto de reconhecimento legal. Os últimos lugares foram ocupados pela Convergência Monárquica e pela Liga Nacional 28 de maio, de extrema-direita.

A questão ultramarina

Com a exceção da Guiné, a situação militar em Moçambique e sobretudo em Angola era favorável aos portugueses.

Além disso, os territórios portugueses em África estavam a ter um percurso significativo de crescimento económico e social. Paralelamente ao esforço de guerra, Portugal estava a promover reformas nos seus territórios africanos, embora nem sempre com a abrangência necessária. No início da década de 1960, foi objeto de abolição o trabalho forçado, as culturas obrigatórias e o estatuto do indígena. Doravante, todos os habitantes passaram a ser cidadãos portugueses.

Marcello Caetano tinha como finalidade promover os grandes territórios de África à independência, salvaguardando a presença portuguesa nesses novos Estados e o caráter plurirracial dessas novas sociedades, e evitando as interferências externas.

Com a revisão constitucional de 1971, os territórios ultramarinos passaram a ser consideradas regiões autónomas. No âmbito do processo de revisão, ficou evidente que somente a revisão da Lei Orgânica do Ultramar poderia desvendar o impacto da autonomia regional na estrutura política do Estado português.

Caetano apercebeu-se de que com Tomás na chefia do Estado, não seriam exequíveis as reformas que considerava profundas no sistema de governo ultramarino. Por conseguinte, preferiu adiar a apresentação da nova Lei Orgânica do Ultramar.

Uma vez na presidência da República, a primeira grande iniciativa legislativa de Caetano foi a nova Lei Orgânica do Ultramar, que consubstanciava uma reforma abrangente da organização política dos territórios ultramarinos, visando concretizar o princípio da autonomia progressiva e participada.

Estabelecia-se uma distinção entre regiões autónomas de estatuto especial (Angola, Moçambique e Guiné) e regiões autónomas de estatuto comum (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Macau e Timor). As regiões autónomas de estatuto especial, para além da designação honorífica de Estados, teriam maior grau de autonomia do que as demais regiões.

A organização institucional regional baseava-se numa Assembleia Legislativa, eleita por sufrágio direto e um Conselho de Governo com funções executivas e administrativas e um Governador nomeado pelo Presidente da República. Um Tribunal Superior de Justiça, sem prejuízo da jurisdição que corresponde aos Supremos Tribunais, culminaria a organização judicial no âmbito territorial de cada região.

O Governador seria o representante dos órgãos de soberania do Estado e chefe dos órgãos executivos locais. O Governador nomearia e exonerar o Presidente do Conselho do Governo e outros titulares de altos cargos públicos, assinar ou vetar as leis regionais, dirigir a administração central do Estado, incluindo as forças armadas, no território de cada região e a coordenação com a administração autónoma da região e exercer poderes adicionais em caso de declaração dos estados de exceção.

A repartição das competências entre as regiões e o Estado central podiam ser divididas em três grandes grupos: exclusivas do Estado central, competências partilhadas e competências descentralizadas exclusivas para as regiões. O Estado central teria jurisdição exclusiva nos seguintes assuntos: relações externas, defesa, moeda, políticas macroeconômicas e controlo de matérias-primas estratégicas. Todas as regiões teria o poder de gerir autonomamente as suas finanças e seriam responsáveis pelos seguintes assuntos: educação, saúde, solidariedade social, transportes, infraestruturas, desenvolvimento económico regional, ordenamento do território, ambiente, segurança pública e proteção civil de âmbito regional.

A repartição de competências seria regulada de acordo com os estatutos de cada região. Aliás, Caetano preconizava a adoção de soluções políticas diferenciadas para os diversos territórios.

Mas a nova Lei Orgânica do Ultramar não foi a única inovação reformista de Caetano em matéria ultramarina.

Para garantir o apoio dos países ocidentais, Portugal reconheceu em 1972 em privado, junto das chancelarias dos países da Aliança Atlântica, do Brasil e da Espanha, o princípio da autodeterminação das populações e territórios ultramarinos.

Dos três territórios afetados pela guerra, a situação na Guine era a mais desafiadora, como resultado da maior capacidade organizativa do PAIGC; das bases de apoio exterior e da maior adesão das populações ao movimento de rebelião. Neste contexto, Caetano deu orientações para negociações secretas com o PAIGC, liderado por Amílcar Cabral. O objetivo era alcançar um acordo político na Guiné para concentrar recursos militares em Angola e Moçambique. Em janeiro de 1973, o acordo alcançado com o PAIGC fez da Guiné, doravante designada como Guiné-Bissau, uma região autónoma de estatuto especial, com o título honorífico de Estado, e dotada de uma ampla capacidade de autogoverno. O PAIGC foi reconhecido como interlocutor valido na definição do estatuto político do território. Ficou definido que o estatuto permanente da Guiné-Bissau seria definido no prazo de doze anos.

Na sua mensagem do Ano Novo, Caetano expôs que a finalidade estratégica da política ultramarina portuguesa era o rápido desenvolvimento global para que se pudesse consultar as populações sobre o seu futuro político, promovendo a autodeterminação autêntica e evitando interferências externas no processo.

Nos casos de Angola e de Moçambique, foi promovida a denominada “política do pau e da cenoura”. Por um lado, foi lançada a operação “Fronteira”, que conseguiu cortar as linhas de abastecimento da Frelimo a partir de Tanzânia e promoveu a segurança da fronteira norte de Moçambique através das infraestruturas de aldeamentos e guarnições. Em Angola, também foram encetadas operações militares ofensivas. Por outro lado, foram promovidas instituições representativas, em que as populações autóctones tinham lugar, no contexto do projeto de construção de sociedades multirraciais e da autonomia progressiva dos territórios ultramarinos. Neste contexto, foi promovida uma política de liberalização política englobando as diversas correntes de opinião, incluindo as que defendiam posições independentistas. Além disso, foram empreendidas políticas que apostavam fortemente no desenvolvimento e na modernização dos territórios nas mais diversas áreas.

Em setembro de 1973, Portugal e a Frelimo celebraram um acordo, que previa o cessar-fogo, a integração da Frelimo na vida moçambicana e um processo de autodeterminação de quinze anos. Em janeiro do ano seguinte, foram celebrados acordos similares com os movimentos independentistas angolanos (MPLA, FNLA e UNITA).

A nova política externa

Sob o impulso de Caetano, o posicionamento internacional de Portugal teve uma profunda mutação.

Caetano valorizou a identidade de Portugal como pais ao mesmo tempo europeu, atlântico e pluricontinental. Neste contexto, a adesão ao Conselho da Europa, a aproximação às Comunidades Europeias e a consolidação da participação na Aliança Atlântica foram vetores estruturantes da política externa portuguesa, que assumiu um cariz cada vez mais independente, proactivo e multifacetado.

Existiram dois exemplificativos da nova política externa portuguesa. Portugal fez um acordo diplomático de grande alcance com a República Popular da China. Em troca do restabelecimento de relações diplomáticas e da transformação de Macau no porto franco para as transações económicas da China com o exterior, os chineses mudaram a posição perante a política ultramarina portuguesa. Passaram a apoiar os processos de autodeterminação nos territórios portugueses, admitindo que as respetivas populações optassem por manter um vínculo constitucional a Portugal. A nova posição da China, então já com uma forte influência em África, foi decisiva para a mudança da posição da Organização de Unidade Africana, que passou a reconhecer a relevância do processo reformista português rumo à autodeterminação.

Foi feita também uma aproximação a Israel, permitindo a Portugal usufruir da cooperação militar, técnica e económica daquele pais e da sua influência relevante no continente africano.

Paulatinamente, foram estabelecidas relações diplomáticas com os países do Leste europeu e do denominado Terceiro Mundo.

As relações com a Índia foram normalizadas. A soberania indiana sobre os territórios de Goa, Damão e Diu foi reconhecida. Em contrapartida., foi criado o Estado de Goa no âmbito da federação indiana, dotado de ampla autonomia, o português foi reconhecido como língua oficial e foi estabelecido um quadro de cooperação bilateral em diversas áreas.

A nível da lusofonia, foi negociado com o Brasil um novo Tratado de Amizade e Cooperação, que formalizou a Comunidade Lusíada entre ambos os países, reforçou a cooperação bilateral em diversos domínios e reconheceu a denominada cidadania lusófona, enquanto instrumento jurídico de reconhecimento a todos os cidadãos de vários direitos no espaço lusófono.

A renovação da política externa colocou Portugal numa teia crescente de relações de intercâmbio e de cooperação sem precedentes no seu percurso histórico, criando condições para a afirmação da sua vocação universalista.

O desenvolvimento económico e social

O apaziguamento progressivo da situação política e militar nos territórios ultramarinos criou condições para consolidar uma política económica e social caraterizada pelo predomínio das prioridades relativas ao bem-estar das populações e ao desenvolvimento coeso do território.

No âmbito das políticas económicas, foi promovida a inserção proativa na economia internacional, a prossecução de uma política de fomento industrial, com a liberalização dos regimes do condicionamento industrial e das barreiras aduaneiras e o fomento da soberania energética, nomeadamente resultado da exploração do petróleo em Angola, São Tomé e Príncipe e Timor e do aproveitamento das energia elétrica e nuclear.

Foram concretizados projetos infraestruturais de largo alcance, tais como: o lançamento dos 350 quilómetros de autoestrada entre Setúbal e Braga; o complexo energético e portuário de Sines; um novo aeroporto na região de Lisboa, mais concretamente em Rio Frio; a ampliação do aeroporto de Pedras Rubras, no Porto; a renovação da rede ferroviária; o reforço da eletrificação; a ampliação das infraestruturas de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais.

Além disso, foi dado um forte impulso à implantação de um verdadeiro Estado-Providência. Com efeito, foi durante este período que se estruturaram, de forma consistente, sistemas públicos de saúde e de segurança social, para além da grande expansão do sistema educativo.

Deste modo, foram consolidadas novas vias para a promoção de um Portugal mais livre, próspero e justo.

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Categorias: Cultura, Ensaio, História

Acerca do Autor

Daniel Faria

Nasceu em 1975, em Vila Nova de Famalicão. Licenciado em Sociologia das Organizações pela Universidade do Minho e pós-graduado em Sociologia da Cultura e dos Estilos de Vida pela mesma Instituição. É diplomado pelo Curso Teológico-Pastoral da Universidade Católica Portuguesa. Em 1998 e 1999, trabalhou no Centro Regional da Segurança Social do Norte. Desde 2000, é Técnico Superior no Município de Vila Nova de Famalicão. Valoriza as ciências sociais e humanas e a espiritualidade como meios de aprofundar o (auto)conhecimento, em sintonia com a Natureza e o Universo. Dedica-se a causas de voluntariado. É autor do blogue pracadasideias.blogspot.com e da página Espiritualidade e Liberdade.

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