À custa do doente… come-se uma cabidela

À custa do doente… come-se uma cabidela

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Um dos pratos mais icónicos da nossa gastronomia é o arroz de cabidela, que os minhotos teimam em chamar de pica-no-chão defendendo, assim, a qualidade do frango, de criação caseira ou biológica, como sendo um atributo fundamental na confecção desta iguaria.

Mas a história deste prato remete-nos para a importância da carne de aves no tratamento dos doentes e para a alimentação dos mais pobres que tudo aproveitava, inclusive o próprio sangue.

No nosso país é muito difícil saber-se desde quando se enraizou este hábito mas, se recuarmos aos receituários mais antigos, dos séculos XVI e XVII, localizamos o sangue numa receita de lampreia, na elaboração das morcelas, nos mondongos, no sarapatel e na confecção do “verde, um prato regional do norte, feito à base das vísceras de diferentes animais, sangue, pão, ervas aromáticas e especiarias.

Em 1780, Lucas Rigaud, cozinheiro real ao tempo de D. Maria I (1734-1816), publica a obra “O Cozinheiro Moderno ou a Nova arte de Cozinhadando também relevo ao sangue nas receitas de coelho, frango e pombos.

No que diz respeito apenas à cabidela, começamos pelas nossas referências literárias, com   inúmeras citações entre os escritores portugueses.  Refira-se o exemplo de Luís Vaz de Camões (1524-1580) que, na sua comédia do “Filodemo”, se lhe refere com palavras do personagem Vilardo – “Das lágrimas caldo faço,/ do coração escudela:/ esses olhos são panelas/ que coze bofes e baço/ Com toda a mais cabidela”; e de Eça de Queiroz que, no romance “O Crime do Padre Amaro”, descreve os dotes culinários do Abade da Cortegaça dizendo – “Era um velho jovial, muito caridoso, que vivia há trinta anos naquela freguesia e passava por ser o melhor cozinheiro da diocese. Todo o clero das vizinhanças conhecia a sua famosa cabidela”

Mas como seria constituída esta cabidela?

Ao olharmos o “vocabulário português e latino de Raphael Bluteau, publicado em 1712, verificamos que cabidela significa o conjunto dos fígados, muelas, pescoços e pontas das azas dos patos e dos perus e de outras aves. Mais tarde, em 1789, Morais e Silva acrescenta a esta definição, que tudo devia ser cozido em molho pardo o que poderá querer significar, ou não, a mistura do sangue.

Seguindo esta definição localizamos, num receituário português do século XVII, a receita de “cabedela de morciana”, onde se utilizam os fígados, tripas e muelas de um pato, que se afogam em manteiga de porco e cheiros, juntamente com couve morciana, um género de couve portuguesa.

Nos finais dos século XVIII, num regimento sobre alimentação dos monges cistercienses, de 1789, determina-se que na refeição da noite se dê a cada monge “meia galinha com caldo da mesma, e arroz com as moelas e fígados, que chamão cabedela”.

Ficamos assim esclarecidos que, nos tempos mais recuados da história portuguesa, a cabidela que podia, ou não, levar o sangue, era constituída por um estufado das vísceras das aves (galinha, frango, pato, peru, entre outras), sendo as da galinha as mais utilizadas. O acompanhamento era naturalmente o pão. A adição de arroz, na segunda metade do século XVIII, prende-se com o aumento de consumo deste cereal, que desce às classes populares na segunda metade do século XIX com o incremento da produção de arroz em Portugal.

Iniciamos, por isso, o século XX com Carlos Bento da Maia a apresentar-nos uma receita de arroz de cabidela, feito com “as asas, pescoço, moela e coração” de uma ave que não identifica. O sangue era naturalmente adicionado no final com um pouco de vinagre.

De facto, o frango ou a galinha nem sempre eram acessíveis às bolsas dos mais pobres, que os guardavam, preferencialmente, para por ovos ou para vender na feira, quando surgia uma necessidade urgente de dinheiro. Mas quando havia um nascimento na família ou alguma maleita espreitava à porta, lá se matava a galinha, para sustento e recuperação da jovem mãe ou do doente, que se comia cozida, em caldo ou em canja. O resto da família deliciava-se com um arroz feito somente com o sangue e as vísceras.

E era por isso que o povo dizia que “à custa do doente come toda a gente”. E assim nasceu a cabidela! Mas hoje, em tempos de abundância, refastelamo-nos com a galinha inteira!

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Imagem: Mãe cheiras a canela

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Categorias: Crónica, Cultura, História

Acerca do Autor

Anabela Ramos

Historiadora.

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