‘Ameacei a pessoa errada’ – o Estado de Direito em Portugal

‘Ameacei a pessoa errada’ – o Estado de Direito em Portugal

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Quem me lê sabe que sempre fui contra a exposição pública de um alegado acusado, por exemplo, de violência doméstica. Ainda que considere a violência contra as mulheres abjecta. Acho o Me Too dos movimentos mais reaccionários a que o mundo assistiu porque implica uma medievalização da justiça, em que as mulheres, alegadamente por não terem justiça feita nos tribunais, decidem fazê-la nas televisões, redes sociais, etc. Ontem [24072020], depois de uma professora ter sido brutalmente ameaçada por animalistas muitos pediram desculpa porque, cito “tinham ameaçado a pessoa errada”. Outros explicam que tiveram que “fazer justiça pelas próprias mãos porque a justiça não protege os animais”. Um tal IRA – a que estava ligada a deputada de extrema direita do PAN, cujos vídeos de assalto a casas de pessoas e ataques verbais e intimidatórios a mulheres foram tornados públicos pela TVI – avisava, em tom de ameaça, que ia estar a “vigiar canis e donos de canis”, “estaremos atentos” na sua página pública, onde uns quantos destes fanáticos tagaram a minha página. Fiquei estupefacta com o que lá li, em público. Tem um nome – são comportamentos análogos a milícias terroristas, que actuam à margem do Estado de Direito.

Para quem não compreende o que é a democracia e o Estado de Direito eu explico: nós não podemos ameaçar a integridade de ninguém, seja a “pessoa certa ou a pessoa errada”. Quando achamos que algo está mal fazemos uma denúncia às autoridades, e essa pessoa tem direito a defender-se, com critérios judiciais. Eu acho que há muita coisa mal no país e que a justiça é lenta mas não ameaço ninguém, nem faço justiça com as minhas mãos. Se eu sei de uma mulher mal tratada ligo à polícia, não publico uma foto do marido nem o ameaço, nem vou a casa dele com a TV ou um câmara em directo para o Facebook, porque isso é crime. E é crime porque é indecente – todos têm direito à presunção de inocência e a um julgamento justo, bem como direito ao bom nome.

Também não podemos filmar a casa dos outros, publicar o filme, como está nessas páginas, vigiar ou ameaçar vigiar, ou invadir porque vimos cães mal tratados. Se achamos que algo está contra a lei no tratamento de animais contactamos as autoridades. O que têm em comum as mulheres que fazem denúncias públicas de homens e animalistas? Não é o valor da vida, infinitamente mais importante nas mulheres. O que têm em comum é o total desrespeito pelos princípios democráticos da justiça e do Estado de Direito. Os segundos naturalmente são situações muito mais graves, porque implicam não só denúncia publica de alguém (como fizeram das donas de canis, ou professora, com a abertura de um julgamento popular que pode um dia acabar numa tragédia), como se comportam como uma uma milícia que usa da violência, coação, ameaça, e actuam à margem da lei. Onde param os tribunais e o Ministério Público neste casos em que organizações de suposta defesa de animais se tornam em matilhas medievais de ataques a seres humanos?

Uma nota importante: não deixa de ser impressionante ver estes tipos, homens enormes a intimidar mulheres e algumas delas idosas, porque estão, dizem eles, a defender animais. E outras jovens mulheres a espumar ódio e violência para cima de outras mulheres, aliás estas páginas não têm em termos de incitamento à violência nada que se compare. Como se compreende não se trata de uma questão de género, mas de substância – está a ser usada a violência privada contra cidadãos deste país. E é por isso que este assunto perdeu há muito o controlo, e já não é um fait divers a ignorar. Não são associações de defesa seja de animais, ou de que for. São associações de ataque a seres humanos, que ameaçam a integridade de cidadãos e bens.

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Obs: Texto previamente publicado em Raquel Varela – Historiadora em 25072020.

Imagem: CMJornal

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Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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