A fundar distâncias (Caderno da Residência, n.º 1)

A  fundar distâncias (Caderno da Residência, n.º 1)

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27 de Julho, Montemor-o-Novo

(16:40)

As coisas acontecem. É uma frase banal, banalíssima, sem aparente motivação interior para demais desdobramentos e indagações. Dizemo-la sem agravo, sem pudor, sem qualquer formigueiro na cabeça. Acontece-se, acontecemos, sem fatalismos nem grandes dramas. As coisas acontecem, fazem por acontecer, por resistir e perseverar sem que o esforço se note, às vezes sem importância, o sim do porque sim.

A pandemia provocada pelo surto da Covid-19, a circunstância de estarmos ainda a viver segundo os seus efeitos, o fascismo miúdo com que reeducamos a vida em sociedade – tudo isto não passa incólume na forma como apreendemos essa evidência incrível de as coisas – apesar de tudo, sempre apesar de tudo, e contra tudo – acontecerem. O vírus atinge-nos, muda-nos os planos, troca-nos as voltas. Redobra-se a atenção aos gestos mínimos que fazemos, esvaziando o que é espontâneo da sua força vital: onde tocamos, a quem passamos um prato, se limpámos ou não os pés, se podemos, se devemos, se nos desculpam. O que se organiza vai ao charco, as grandes certezas encolhem ainda mais; e não deixa de ser reconfortante, até, que todos os livros e filmes que havíamos conhecido, com os seus desastres anunciados, o planeta a arder inteiro, a Morte lançando confettis a si mesma, festejando o seu triunfo, pareçam capitular e esmorecer, tremendo de vergonha com as grandiloquências com que nos foram brindando na pedagogia do pior. A literatura e a ficção recuam diante do real dos dias, ficando em desvantagem na escala do incrível. O real supera-se como mais extraordinário que todos os enredos criativos. Mas vestimos o escafandro do medo, pomo-nos a tossir às escondidas. Cada corpo é um crime em potência, onde o alien se aloja até rebentar pelo lado de dentro.

Incrível, no fundo, é que o dia depois de amanhã ainda venha a acontecer. Incrível é olhar para um calendário e anotar coisas sobre os dias como se ainda nos gabássemos secretamente de sermos senhores do nosso destino. Incrível, também, como esboçamos planos com uma naturalidade em desuso, agora que andamos feitos “máscaras mortuárias”, como “ruínas batendo-se / por um mísero farnel”, segundo o poeta Rui Baião (Paciente Zero, ed. Barco Bêbado, 2020).

De máscara posta, mãos desinfectadas, pedem-nos para agir segundo as regras do “novo normal”. Ok, tudo bem e tudo mal. Obedecemos às ordens tanto quanto a obediência não nos amesquinhar, enquanto o respeito e a civilidade se manifestarem no dia-a-dia sem com isso perderem uma raiva secreta contra o estado das coisas. A mesma raiva que embala a imaginação de dias definitivamente possíveis, o lado bom de existir: dias em que um abraço não seja um veneno, em que um desvio seja promessa de riscos maiores, de riscos que nos ampliem e surpreendam, e não o desvio de quem se afasta para que a margem de segurança não faça disparar o alarme. Sermos responsáveis não equivale, não pode equivaler, a sermos brutos, estátuas vivas, de uma limpeza extrema que nos torna apenas funcionais como máquinas, cada vez mais longe do animal errático que só vive em liberdade – e que só é livre vivendo, existindo com outros.

“Um dia os nossos olhos não serão capazes de desconhecer”, profecia Rui Nunes no livro O Anjo Camponês. De máscara, só temos esses olhos na relação com os outros que nos olham. E só o olhar não chega: o espelho da alma é uma treta com a superfície toda embaciada, em cacos, um equívoco muito pobre. Para nos vermos, precisamos de tudo, incluindo as máscaras que já usávamos antes das que pomos agora. Máscaras de pele, de rugas, de frémitos, de esgares. Notar o tempo que um rosto imprime, o tempo que se inscreve no rosto, as vidas que viveu dentro da vida, as suas mutações silenciosas. Precisamos dos equívocos da cara, da sua perturbação imanente, de desconhecer o que um sorriso vela. A máscara que hoje usámos, enquanto imperativo sanitário, produz apenas uma falsa neutralidade. Usá-la não é, não pode ser, um pacto solene que eterniza o presente enquanto novo capítulo da pós-história, consolidando este novo normal. É com raiva que tapamos a cara, ansiando furiosamente pelo momento do dia, ou pelo momento, em que a ternura será descuidada, trapalhona, suja de todos esses gestos com que a alegria se faz contagiante. Há que não esquecer essa raiva, há que mantê-la viva. O vírus de existir depende disso.

 

28 de Julho, Montemor-o-Novo

(14:30)

De novo, Rui Nunes: “Um dia os nossos olhos não serão capazes de desconhecer”. Ler é resistir àquilo que se lê, sem sucumbir à inércia de tornar o que se lê numa verdade esculpida em pedra. Como se a leitura nos acordasse no corpo uma vontade de fincar o pé, de dizer que não, que não será assim, que não pode ser assim para sempre. Não há cá falsos profetas, nem determinismos, nem misteriosos desígnios com os quais somos fatalmente convocados a coincidir. Isso seria o contrário de desconhecer. E desconhecer é o caminho, a linha de fuga que urge reivindicar, o dissenso como vontade imanente a uma partilha democrática da vida. Desconhecer: íntima conspiração do rosto sob o açaime da máscara, modo irresistível de a vida e as suas coisas irem sempre acontecendo, connosco e à revelia de nós.

Por isso, cá estamos.

A equipa do projecto Rastro, Margem, Clarão retoma os trabalhos iniciados em Janeiro e Fevereiro deste ano, até à interrupção imposta pela Covid-19. Chegados a Montemor-o-Novo, ao Espaço do Tempo, começa uma semana de residência artística. Rés-do-chão, sala tal, as cadeiras em círculo. A Terceira Pessoa na presença dos fotógrafos, ensaístas, performers, actores, produtores, em torno da escrita de Rui Nunes. Vacilando com a escrita, atravessando-a, questionando-a, elevando a leitura a qualquer coisa que excede o suporte dos livros, das imagens fotográficas, dos corpos em acção. Qualquer coisa que, às vezes, nem é da ordem do trabalho, mas que sem dúvida o afecta.

Primeiras impressões, primeiros atritos, primeiros excessos. Duas frases do Miguel Moreira, actor, atingem-me como pedras, e anoto-as de seguida no caderno: “Até que ponto se pode sujar este espaço?” e “De cada vez que vamos ao palco, não vamos fazer de conta.” Faço associações espontâneas com coisas lidas há muito: a questão da impureza da arte, do teatro como espaço altamente sacralizado, confinado há muito dentro de si, a ponto de muitos artistas deslocarem o perímetro das suas intervenções para espaços exteriores ao próprio teatro e ao respectivo palco. Do lado de fora, ao lado do edifício, etc. O filósofo Mario Perniola tem um ensaio intitulado A arte e a sua sombra (2006). Precisamente: à sombra, ao lado, à margem da obra, fora do texto, da instituição, das expectativas criadas, dos sítios onde nos esperam. Da natureza incoercivelmente livre (e, desde logo, política) destas e doutras questões.

Por outro lado, a ideia de subir ao palco para não “fazer de conta” cruza-se, com as merecidas crispações (a dissonância é preciosa, não uma aresta a limar), com o que Rui Nunes faz acontecer pela escrita. Aliás, e cito de memória, o autor não lida bem quando é entrevistado na qualidade de escritor: são muitos os momentos em que Rui Nunes diz ser “alguém que escreve”, ponto. Não faz de conta, não inventa, não ficciona: escreve. Isto é: decalca o que vê, as aproximações possíveis ao universo visível mais próximo, até à alucinação, ao monstruoso, numa espécie de realismo psicótico. Até que a escrita se torna real, num sentido quase lacaniano (o problemático objet (petit) a): o real como aquilo que permanece mudo e inacessível, o objecto de desejo que ficará sempre intocável, seja pela linguagem, seja pelo inconsciente. Enquanto mediação, a escrita apenas bordeja, aflora, toca esse real – mas o toque, mesmo na mais contígua proximidade, abre e funda distâncias.

Esplende, portanto, a escrita na sua qualidade de mediação. Como esplende um corpo que, estando em palco, se recusa a representar, a ser veículo para outras esferas e mundos, para ao invés se afirmar na sua inquietação física, no inexplicável dos seus movimentos, no esplendor da sua matéria e existência. Fingir assim é chegar a novos modos de se ser genuíno, é fazer tremer o ponto em que face e máscara devêm inseparáveis. Por outras palavras: mais do que descortinar sentidos ocultos num corpo em palco, o verdadeiro espasmo está em redescobrir que um corpo é um corpo. A sua evidência é permanecer secreto. É representar, ainda assim – mas já e sempre outra coisa, um fazer de conta que, não sendo de conta, é ainda um fazer, um acontecimento.

(18:35)

Eduardo Prado Coelho, em Tudo o que não escrevi. Diário II (1992), escreve que: “Não deixa de ser interessante verificarmos que toda a filosofia francesa contemporânea é, mesmo que isto nem sempre se explicite, e segundo modulações muito divergentes, uma filosofia do acontecimento: em Deleuze, em Derrida, em Badiou, em Lyotard. Desconfiemos daqueles a quem tudo sucede, mas nada acontece.” (p. 190).

(18:40)

Abro o computador, dou um jeito ao ambiente de trabalho. Reavivo uma pequena passagem de Peter Sloterdijk atirada ao acaso num documento Word que, depois, não deu em nada: “[…] qualquer coisa é um convite para a excentricidade. O indivíduo não é portanto o único caso inefável: todo o complexo, contextual, circundante, atmosférico também o é.” (do livro O Sol e a Morte. Investigações Dialógicas, p. 70).

É a tal história: as coisas acontecem. As contingências, as circunstâncias e o impensado de toda a exterioridade ditam uma lógica que excede qualquer teorização. Como se nos pedissem, sei lá, para descrever o nosso quarto, a paisagem lá fora, o exterior da varanda – e nos sentíssemos incapazes de o fazer, por nos considerarmos inseparavelmente parte do que vemos, parte dessa imanência inefável, como diz Sloterdijk, dessa excentricidade radical que engole tudo. Foi porque se deu “o descobrimento do ordinário”, por intermédio das artes e fenomenologias do século XX, que tudo – do grão de pólen aos entulhos industriais, do que está ausente ao intervalo onde a ausência se impõe –, tudo, pois, passou a atrair inesperados fascínios e exorbitâncias. Como esgueirar o sorriso da Mona Lisa no museu e, de repente, perceber que a parede à volta também sorri. A parede, a redoma, o barulho dos turistas, a sombra do quadro (e à sombra dele).

Os olhos continuam a desconhecer, de desconhecimento em desconhecimento, às escuras em plena luz. Invade-se o mundo, não pela totalidade que ele não é (enquanto mundo, portanto), mas pela anatomia dos seus bocados. A fúria obsessiva de constatar que, em comum, só há desagregação:

“As palavras transformaram-te o corpo numa abreviatura [um resumo]. À noite ficas a sós com esse resíduo e não sabes o que fazer com ele: reaparece manhoso: primeiro um braço, depois a perna, um lábio a latejar, um pé, a nuca, o sexo, é um corpo dividido, o teu. […] / Descobrirás então que o cotovelo do teu braço direito se apoia no tampo da mesa, que é de mármore, esse tampo, que a tua mão tapa a boca entreaberta, e que o polegar comprime a pele da órbita do olho direito, que um bafo morno e húmido atinge intermitente os teus dedos, que a tua boca não se abre há quase uma hora para dizer uma palavras, descobrirás também que não sabes que palavra poderias dizer, […] e nem essa pergunta será tua, nenhuma pergunta será tua, teu, verdadeiramente teu, só o cotovelo apoiado no tampo de mármore da mesa, e a mão a tapar a boca, e o polegar junto à órbita, e o bafo morno e húmido na palma da mão” (Rui Nunes, O Anjo Camponês, pp. 69-70).

 

29 de Julho, Montemor-o-Novo

Fotografias: Tiago Moura | arquivo da Terceira Pessoa

Sobre o projecto Rastro, Margem, Clarão, este ensaio a respeito do primeiro encontro da equipa, no espaço da Fábrica da Criatividade, em Castelo Branco: https://vilanovaonline.pt/2020/01/18/dar-coisas-aos-nomes-deita-o-livro-fora-e-le/

 

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Categorias: Cultura

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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