Temos que traçar uma linha vermelha nas redes sociais

Temos que traçar uma linha vermelha nas redes sociais

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Imaginem que estamos num café, várias mesas de convivas, e entra um grupo de pessoas e arrota, solta gases e a seguir escarra no balcão. Se fosse real, abandonaríamos o café. Vem isto a propósito do apelo à censura cada vez mais notório por parte dos donos do Facebook, com a desculpa de acabar com os “discursos de ódio”, e dos comentários que li no site Jovem Conservador de Direita (JCD), sobre a minha pessoa (foram centenas), e que tenho lido ao longo de anos nas redes sociais ou caixas de comentários de jornais de referência.

Comecemos pelo início. O site JCD não é um site de humor, é um projecto político próximo da Geringonça, nascido por volta de 2015, com o clássico programa dos neoliberais de esquerda: pagarmos mais impostos para a “economia verde”, subsídio de desemprego em vez de emprego, assistencialismo social em vez de Estado Social (diminuir pagamentos de casas, electricidade, taxas moderadoras mas só para os miseráveis, os sectores médios que paguem), e identitarismo radical (feminismo, anti-racismo). E, não menos importante, apelo à censura ou, como dizem, ao “politicamente correcto” em nome da igualdade.

Portugal é um país pouco politizado. A política é hiper-centrada no Estado. A sociedade civil, a esfera pública, é pobre. E quase todos os partidos com espaço mediático gravitam em torno no “sistema”, ou seja, do aparelho de Estado – do qual dependem materialmente os seus deputados, funcionários e assessores, a política é um emprego. Ao contrário de outras sociedades mais saudáveis politicamente, aqui quase todos têm medo de dizer eu sou do Partido tal, milito aqui, quanto muito dizem-se “activistas”. E criam heterónimos (movimentos, sites, associações) para fingir que não fazem política. O PCP é o que tem mais heterónimos, mas os outros Partidos todos o fazem amiúde. Quando chegamos a Barcelona, Espanha, por exemplo, é um sopro de ar fresco de liberdade – todos são do Partido A ou B, contra ou a favor da independência, com entusiasmo, sem mediações, linhas claras, e militar sem ter como ambição uma carreira política – a militância política é um acto da esfera pública. Aqui, um Estado hiper-centralizador, macrocéfalo, desde a Expansão, criou, mais tarde, uma sociedade civil fraca, com excepção de explosões políticas maravilhosas onde a política passou a fazer parte da vida de todos e de cada um, ou seja, a democracia floresceu – como a revolução dos cravos.

Assim, em Portugal criam-se sites de “humor”, ou de supostas de denúncia de fake news (como os Truques da Imprensa Portuguesa), mas cujo objectivo é combater qualquer adversário da Geringonça, como é o caso deste Jovem Conservador de Direita. A direita também tem os seus, mas em geral tem muito mais espaço nos jornais clássicos, pelo que precisa menos destas mediações. É sabido que sou e fui sempre contra a Geringonça, essa solução governativa pró-sistémica. Porque implicou a desmobilização de qualquer alternativa à esquerda. E assim abriu espaço a que se criasse um Partido anti-sistema de extrema-direita chamado Chega – este foi o preço altíssimo a pagar pela austeridade light de Costa com apoio do BE e do PCP.

Nada light para quem trabalha ou levou com métodos bonapartistas em cima contra as greves ou foi despedido sumariamente (estivadores, motoristas, enfermeiros). Abriu-se espaço a um monstro, o Chega, cujo objectivo é destruir todo e qualquer direito laboral, é isso o Partido Chega. Apresenta-se como anti-sistema (e isso hoje é uma necessidade se se quer crescer porque as pessoas já compreenderam que este sistema não funciona) mas nada de concreto apresenta a não ser atacar 37 mil ciganos, enquanto se cala com as péssimas condições laborais de 5 milhões.

Ora o que caracteriza a extrema-direita, como tão bem demonstrou a excelente reportagem do Público de Ricardo Cabral Fernandes, é a organização de milícias para atacar com violência o adversário. Uma esquerda anti-sistema tem um projecto político, goste-se ou não. Uma direita anti sistema tem um grupo de claques e milícias, grupo de artes marciais, ou submundo do crime, cujo objectivo é calar, amedrontar e silenciar os adversários pelo recurso à violência física e verbal.

Quem ler a caixa de comentários do JCD sobre mim encontra uma sucessão de vómitos e arrotos que dão vergonha alheia: há ataques pessoais, suposições que referem explicitamente o meu trabalho, os meus filhos, lugar onde acham que vivo e – lá se foi o politicamente correcto – uma rol de comentários de cariz sexual que se fosse feito sobre uma mulher desse público pró-Geringonça do JCD dava direito a 20 petições e 200 pedidos de prisão. Confunde-se liberdade de discordar com violência extrema, e há milhares de cúmplices neste esgoto moral que encolhem os ombros dizendo que “são as redes sociais”.

A questão é que este cenário de violência verbal extrema afasta muita gente séria que quer debater neste grande café. E dá espaço a que os donos do Facebook introduzam paulatinamente a censura. A minha nota final é sobre isto precisamente – temos que nos auto-regular para impedir que sejam os empresários do Facebook a fazê-lo por nós.

Precisamos de perder a ingenuidade política. Não existe Chega, Geringonça e Jovem Conservador de Direita, existem partidos políticos que representam interesses e classes sociais, destes nenhum representa os interesses de quem vive do trabalho manual ou intelectual em Portugal – não existe esquerda anti-sistema, não existem dois pólos opostos, existe uma crise política tremenda sem alternativas à esquerda. De um lado um “sistema” errado, que devora a vida das pessoas. Do outro uma alternativa que não o é, o Chega, porque aposta na desigualdade e na violência social.

Precisamos, por isso, de uma esquerda anti-sistema. Mas temos que o fazer recusando métodos de violência verbal (e física, claro). Tem que haver uma debate sério sobre alternativas, mas democrático nos métodos. O que temos é o inverso, a total ausência de alternativa na esquerda e, de cada vez que há uma voz dissonante que as apresenta, combatem-se essas ideias não com argumentos, que não existem, mas com métodos anti-democráticos, onde a violência verbal explicita é a norma.

Da minha parte já sabem – aqui todos são bem vindos, o contraditório é vital, o debate estimulante, com palavras duras e sem politicamente correctos, ou seja, sem censura. Tudo o que passe daí para ataques ad hominem, suposições sobre vida privada, violência verbal, leva-me a bloquear imediatamente. Quero ser eu a auto-regular e não um qualquer empresário cotado em bolsa. E penso, com sinceridade, que essa é uma responsabilidade pública e colectiva nossa. Temos que traçar uma linha vermelha sobre aquilo que permitimos.

Se não tirarmos do nosso café estas pessoas estamos a impedir que todas as outras fiquem, e obrigá-las a assim a assistir a uma sucessão de vómitos, em que escarram restos de comida com cuspo para o nosso chão – coisa que ninguém saudável aguenta. É preciso impedir que este ambiente nas redes sociais continue. Não podemos assobiar para o lado, fingir que não é connosco, ou relevar quando é um ataque aos nossos adversários.

Não me interessa, para usar o caso mais extremista, a vida pessoal de André Ventura. O ataque tem que ser implacável e certeiro, contra o seu projecto político, as suas ideias manipuladoras dos mais pobres, dos empresários desesperados e de quem trabalha. Mas afirmando alternativas que expliquem aos iludidos no Chega que há outro caminho. E o caminho não é sufragar o Bloco Central ou a Geringonça.2 porque disso já tivemos e não serviu de nada. É preciso denunciar o caráter anti-democrático de todos os adversários políticos que não permitem a discórdia. Aliás, o JCD presta um serviço público que favorece a extrema-direita porque aposta na ridicularização pessoal do seu líder, Ventura, o que significa humilhar os seus eleitores. Foi assim que a esquerda brasileira combateu Bolsonaro, usando memes para o humilhar. O resultado foi que ele ganhou – porque em matéria de humilhação e brutalidade ele é muito melhor do que qualquer um à sua esquerda. A arma da direita é a violência. Não pode ser nesse campo que a esquerda vence.

Há que colocar um ponto final nestes métodos inaceitáveis que confundem polémicas duras com violência explícita. No meu mural já bloqueei centenas ao longo destes anos, vou continuar a fazê-lo. E serei contra que um accionista do Facebook o faça por mim.

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Categorias: Crónica, Sociedade

Acerca do Autor

Raquel Varela

Raquel Varela é Historiadora, Investigadora e professora universitária da FCSH da Universidade Nova de Lisboa / IHC / Socialdata Nova4Globe, Fellow do International Institute for Social History (Amsterdam) e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho. Foi Professora-visitante internacional da Universidade Federal Fluminense. É coordenadora do projeto internacional de história global do trabalho In The Same Boat? Shipbuilding industry, a global labour history no ISSH Amsterdam / Holanda. Autora e coordenadora de mais de 2 dezenas de livros sobre história do trabalho, do movimento operário, história global. Publicou como autora mais de 5 dezenas de artigos em revistas com arbitragem científica, na área da sociologia, história, serviço social e ciência política. Foi responsável científica das comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Em 2013 recebeu o Santander Prize for Internationalization of Scientific Production. É editora convidada da Editora de História do Movimento Operário Pluto Press/London e comentadora residente do programa semanal de debate público O Último Apaga a Luz na RTP. Entre outros, autora do livro Breve História da Europa (Bertrand, 2018).

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