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A sedução pela superfície é, também, a atracção da pele. A intervenção do traço no plano tem o mesmo sentido da penetração do olhar no corpo. Escrevo quando te inscrevo no meu corpo ideológico, artístico, libertário. Escrever é um ritual, inscrever a impressão signal do meu corpo no território que seduzo, seduzindo-me: a pedra, a pele, o papel, a luz: a tua memória. Da caverna ao ecrã escrevo-me no processo histórico, inscrevo-me no labirinto das significações. O que me religa ao meu antepassado do Mousteriano é o ritmo, a descoberta do som, o risco, o traço, a fricção: pedra com pedra, sangue com pedra, corpo com pedra: a pedra da primeira ficção. A inscrição do ritmo, a linguagem abstracta do mistério: o ritual da marca, o som do transe. Escrita do gesto, a vibração energética da entrega do corpo ao planalto divino, palco desconhecido para a emoção do primeiro traço.
A arte suméria em cunha esculpiu pictogramas, formas universais, e deu sentido ao prazer de olhar, codificando saberes, sabores, emoções, processos: a economia de uma civilização. Escrição cuneiforme a partir de ponta de cana em cunha, o primeiro passo de um longo caminho até à minha caneta. Escrita ideográfica e fonética: do forno da argila ao forno da história, a sublimação do signo, o elixir da palavra eterna. Primeiro vocabulário do processo artístico, a escrita cuneiforme designa matéria e som, forma e ritmo: a alma do objecto: o seu nome inscrito. Devastação da indiferença, sublimação artística da designação. Nomeio, criando.
Há um elitismo na escrita sagrada: a escrita hieroglífica é um sistema organizado que inscreve nas superfícies murais do templo, a pele do corpo divino, as primeiras naturezas mortas, os significados obscuros das suas existências, o espírito da matéria, a língua dos deuses, o império das ideias, a deflagração das imagens, a plenitude da cor. O traço do que sou. O traço do que faço. A alegoria do ser enquanto ser.
Com o alfabeto de Mileto ou Jónico dá-se a unificação da escrita grega no século IV a. C., teatraliza-se a palavra, imprime-se o diálogo como objecto de arte, o homem é pensado como criador, globaliza-se a fala nos ginásios, as palavras dão corpo ao pensamento, filosofa-se passo a passo, a poiésis ergue o seu edifício, a gramática das constelações sistematiza a linguagem dos céus, o homem reconhece-se como ser universal. A estrela é o lugar utópico da linguagem, da representação. Os gregos olham o ecrã dos céus, mapeiam-no, interrogam as estrelas, associam-se mitologias, os heróis vivem por dentro das palavras, metaforizam desejos, representam o mundo dos impossíveis. Dois mil e quinhentos anos depois deflagra a imagem no corpo da luz, o cinema projecta mitos, as estrelas sonorificam-se com palavras cuja origem está na teatralização grega dos sons. Os heróis, agora, vestem Versace, Gucci, Valentino. Os corpos são despidos, falam a linguagem do suspiro, do desejo, fonetizam orgasmos, engolem palavras salgadas, as lágrimas são fragmentos de notícias. O cinema é o encontro das civilizações, o resultado do ecrã, o desejo liberto.
Do papiro ao codex, embrulham-se significantes, territorializa-se o texto e adicionam-se-lhe iluminações, corporiza-se a ideia primordial num matrimónio de conceitos e imagens. O meu corpo é o resultado de mutações, a minha fala o efeito dos encontros. O livro é a escrita do meu passado, o registo do meu presente, a especulação do meu futuro. Nele se inscreve a ficção friccionada, estampada, violentada da palavra que significa, do homem significado, do símbolo vivo da existência enquanto viagem em busca dos pontos cardeais que nos significam. Ser em construção é estar em vibração com o código secreto de cada palavra que nos nomeia, com a escrita que sedentariza o pensamento nómada, a ideia vagabunda, a explosão da imagem que representamos no ofício poético da invenção que em cada pacto renovamos. Livro: tudo o que foi pensado no corpo robusto da palavra dita, inscrita, friccionada, ficcionada. Livro: tudo é pouco, porque tudo é passado. Um livro encerrará sempre a escrita do futuro. Acta dos actos de partida e regresso, viagem e revisitação.
Quando respiramos pontuamos, a fala tem tónicas e átonas. A partir do século XVI respirar é pontuar, escrever é representar a fala. Os textos passam, assim, a ser pontuados e acentuados. Surge o poder da vírgula, da pequena pausa que associa pensamentos; o ponto é o passaporte para que a ideia seja compreendida, delimita conceitos em cada período. A escrita reorganiza-se com novos sinais e o acto de escrever banaliza-se numa escrita cursiva, rápida e despretensiosa. A pena metálica ou o aparo aparece no século XIX, a caligrafia veste o estilo do autor, personifica-o, é a sua imagem. O artefacto inventado em 1714 entra na prática comum em 1875 com o nome industrial de máquina de escrever. Nova mutação se inscreve no acto de redigir. Há um regresso paradoxal ao ritual da fricção e do som. A máquina de escrever dá um novo ritmo à escrita não se podendo dissociar o seu som orgânico. Cavalgo as palavras num galope de teclas que relincham. Cada linha conquistada é a meta assinalada com a campainha da máquina que rejubila enquanto o texto conquista o papel alvo no duplo sentido do vocábulo. O texto materializa-se com a robustez do gesto. A folha de papel para a máquina de escrever é um linguado que baliza as medidas exactas para uma página impressa. Linguado: o tamanho previsto do conjunto de palavras da minha língua. Porque é a língua que me escreve. A literatura é a arte que me testemunha o objecto da minha curiosidade em silêncio. Mas também em voz alta quando exploro o erotismo do som do que me é dito em cada página, em cada superfície, em cada pele.
No século XX, o computador asseptiza o território da escrita, retirando-lhe o som das teclas, a vibração da punção metálica, o cheiro da tinta, o tacto do papel; mas ilumina-o com luz de outras constelações: cada texto tem em si conexões imediatas e visuais com outros textos que têm conexões imediatas e visuais com outros textos, projectando-se infinitamente como o Universo em expansão. Temos o hipertexto, o que está inscrito na sua plenitude, da fenomenologia à hermenêutica, da descrição à interpretação, num eterno desenlace de clímaxes. O orgasmo da curiosidade à distância do toque erótico de um clique. O hipertexto é a tua pele que transpira por todos os poros a renúncia ao desconhecido; a arte maior que aceita a minha intervenção no teu corpo como uma adição, um programa que gera programas. O universo das palavras captura-me, levando-me na viagem do texto infinito. Mergulho no seu cosmos ao ser tragado pelo núcleo branco que me refracta num arco-íris de possibilidades. O ser enquanto ser ecrânico dissipa-se numa combustão de letras coloridas, integrando uma nova escrita: a das imagens e dos sons: o sentido da nova filosofia da arte.
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Obs: texto incluído na obra ‘Rouge – Observation’.
Imagem: José Lorvão
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