Celebrar Abril para livres habitarmos a substância do tempo

Celebrar Abril para livres habitarmos a substância do tempo

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Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia

 

Assinala-se hoje mais um aniversário sobre o 25 de Abril, o quadragésimo sexto por sinal. Pouco haveria a dizer sobre a data, ou não fossem o confinamento e a privação de liberdade a que todos estamos sujeitos, a tristeza e demais constrangimentos que provoca.

Vivi a minha infância sob o regime do Estado Novo, em Barcelos, de início sob a governação de Salazar, mais tarde, na sua fase final, de Marcelo Caetano. Tinha por isso 10 anos quando se deu a Revolução. Ao contrário das crianças de hoje, que estão relativamente bem informadas sobre a realidade à sua volta, lá em casa, naquele tempo, não nos podíamos queixar deixe facto. Ainda que os meus pais não tivessem formação superior, e não fossemos abastados, desde que me recordo, com exceção de quando era mesmo muito pequeno, sempre tivemos acesso, a televisor, telefone, livros, jornais e outros que tais.

De qualquer dos modos, à distância, havia uma estranha sensação de que tudo estava bem, de que tudo corria bem para todos. Recordo que gostava de ouvir, em certas noites, Marcelo Caetano explicar as políticas que aplicava no país nas suas Conversas em Família. Do antes de Abril, devo confessar que retenho um bom exemplo: a obrigação – moral – de todos pagarmos impostos em função dos rendimentos. É claro que nem me passava pela cabeça a ‘inexistência’ de um Parlamento que, pelos vistos, existia, mas nunca tinha dado por ele. Ou nunca dei, até ao 25 de Abril.

Curiosamente, recordo também algumas ‘estranhas’ conversas do meu pai, lá por casa, quando vivíamos na Rua da Estrada. Um dia, pela hora do almoço, o meu pai chegou a casa a cantarolar a ‘Tourada‘, mas com uma letra adaptada e rindo-se que nem um perdido. A minha mãe olhava para ele e condescendia. “Zé”, às vezes lembrava-se de me tratar assim, “isto não é para contar nada a ninguém”; e continuava a sorrir, pondo-nos a cantar em uníssono, a mim e à minha irmã. Noutra ocasião, pouco antes de Abril, aquando do Golpe das Caldas, lembro-me de ele e a minha mãe estarem à conversa sobre o assunto, um tanto à socapa, e novamente sermos despachados com mais um “Não se conta nada a ninguém”. Claro que nunca contamos, nem contaríamos. Mas que era estranho, lá isso era.

Entretanto deu-se o golpe de Estado que mudaria a face do nosso país para sempre. O meu pai, um inveterado frequentador dos cafés do Largo da Porta Nova – Porta Nova, Novo, Magriço e Joca Bar -, mesmo à noite e com mau tempo, numa dessas noite chegou a casa mais cedo, todo excitado, a dizer que, desta vez é que era. Havia uma revolução a sério e todos eram obrigados a estar em casa.

Naquele frémito, recordo que nos juntamos horas seguidas, sentados em frente ao rádio, no chão eu e a minha irmã – um Telefunken daqueles grandes, típicos dos anos 70, com gira-discos incorporado num móvel de sala. E assim estivemos até às tantas da manhã. No dia seguinte fomos para  a escola, como sempre, apesar do sono. Mas recordo ainda que, nesse dia, já não houve aulas no sentido estrito do termo; ou pelo menos essa é a minha memória.

Nos dias seguintes, foi uma festa acompanhar pela televisão tudo o que ia sucedendo em torno do Quartel do Carmo, Salgueiro Maia no comando das operações militares, Spínola a negociar a rendição com Marcelo, a fragata no Tejo a ameaçar disparar sobre a cidade, o povo nas ruas aos milhares e a gritar ‘O povo unido jamais será vencido‘, saído sabe-se lá de onde, o assalto à sede da PIDE, os cravos nas espingardas, o ar de alegria imensa naqueles rostos sem fim que não pareciam acreditar naquilo que estavam a viver.

Apesar de um estado geral muito pacífico – o 25 de Abril saldou-se praticamente sem danos corporais e poucos estragos materiais -, seguiram-se dias de fortíssima agitação, com o regresso dos políticos no exílio, como Mário Soares e Álvaro Cunhal, a libertação dos presos políticos de Caxias, entre os quais José Manuel Tengarrinha, e o 1º de Maio que se lhe seguiu.

É certo que nem todas as expectativas conseguiram corresponder à ânsia de toda aquela gente, nem o poderiam ser pela simples razão de que a ‘cada cabeça sua sentença’; e a vida é assim mesmo: encarrega-se de nos mostrar à evidência que só uma parte dos nossos desejos se cumpre. Para lá disso, é claro que sobrou sempre um grupo de apaniguados do antigo regime, não o podemos esquecer. O andar dos tempos, com o desenvolver de algumas frustrações em relação às iniciais expectativas, tem vindo também a gerar algum desencanto e desilusão, inclusive com a própria democracia, gerando conflitos que parecem mesmo agravar-se neste momento e levam alguns a dizer que a liberdade não está a passar por aqui.

Resulta, no entanto, daquele gesto heróico de um punhado de militares, que se uniram para libertar o nosso país de uma guerra injusta que levou, tantos dos nossos jovens de então, à morte e incapacidade ou à fuga para o estrangeiro, e acabaria por dar a liberdade a todo um povo, uma gratidão imensa por nos terem dado a possibilidade de livres habitarmos a substância do tempo. Obrigado.

 

Viva o 25 de Abril! Viva a Liberdade!

 

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Categorias: Editorial, Política, Sociedade

Acerca do Autor

Pedro Costa

Diretor e editor.

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