Renascer | Com Vida: O Sol hoje nasceu cedo

Renascer | Com Vida: O Sol hoje nasceu cedo

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O Sol hoje nasceu cedo.

Despontou por detrás da Serra dos Picos. Espreitou e, ergueu-se, devagar.

Passa à velocidade do tempo da medida do dia que faz o tempo do tempo de um ciclo diurno.

Está limpo de nuvens o seu percurso. Apenas os aviões a jato deixam no céu azul um rasto de passagem de cor branca.

Consoante o Sol vai iluminando, o dia acaricia com os seus raios de claridade o rosto acidentado do terreno serrano circundante e os campos agrícolas por onde serpenteia um pequeno riacho que nele nasce, atravessando o limite territorial da aldeia por entre os campos a quem dá água para rega quando necessário e de que galga as margens quando acometido por chuvadas no inverno. Pachorrento e silencioso, desliza por leito plano para, nas lodosas cascatas, mostrar a sua ruidosa rebeldia rebolando por entre as pedras e espalhando sonoridade regular dia e noite. Desviado em canais de condutas de água para moinhos fazia girar as turbinas que faziam com que as mós moessem o milho e dele saísse a farinha. Nos lagares de azeite hidráulicos o processo de fabrico era o mesmo. Trazia consigo alimento para as bogas os escalos e as trutas e mais uma ou outra espécie de peixes. Banhava as lontras e as cobras de água no tempo devido e os rapazes da aldeia também. As bonitinhas saltitavam e os sapos depositavam os ovos nas suas margens. As rãs coaxavam no seu lodo. As libelinhas pousavam na sua flora. As galinhas de água nele tinham a sua casa. Os coloridos pica-peixes voavam rasantes as suas águas. Dava de beber às várias espécies de animais domésticos e selvagens. Os sardões do rio, de cor verde a fêmea e de corpo verde e a cabeça azul o macho, dormitavam letárgicos.

Após muitos dias de Sol Nascente e Poente de chuva e de trovoada mais os que nem uma coisa nem outra, a vida a que o Rio dava vida morreu. Mas o rio sempre perseverante no seu caminhar apressado galgou as circunstâncias dos erros dos Homens e continua vivo.

O Sol hoje nasceu cedo.

Aquece a cordilheira serrana rochosa no pico a Norte descaindo para Sul em declive sobre um vale distendido de onde se avista uma urbe com cerca de dois mil anos de existência. Bracara Augusta.

É no colo da Serra do Carvalho, encostada à Serra dos Picos, que se situa a pequena aldeia de Este a quem o Santo Padroeiro São Mamede deu o nome. Pausa no remanso do silêncio dos prados e desperta ao som da brisa que sopra música dos pinheiros e dos carvalhos, mas também dos eucaliptos e restante arvoredo e vegetação.

Onde os melros ainda madrugam e defendem as suas crias dos gaios, as chamam para lhes dar de comer quando, tendo já abandonado o ninho, se escondem nos valados húmidos onde a folhagem é espessa.

O rabo queimado veio com a primavera fazer o seu ninho por cima do ninho anterior. Um ritual que dura décadas até que alguém lhe destrua esse ninho. A partir daí muda de sítio e no tempo migratório volta ao mesmo sítio. A carriça faz ninho em qualquer buraco inclusive no bolso de um qualquer casaco deixado por acaso.

O Sol hoje nasceu cedo.

Com ele, em finais de março, se começa a ouvir o cuco que projeta o seu canto pelo vale sem que se consiga perscrutar a árvore em que se encontra pousado.

Os corvos ainda andam por aí grasnando, mas as pegas não se veem e as poupas têm aparecido muito raramente assim como as levandiscas ou boieiras. A rola brava já não tem choupo de suporte a videiras velhas para fazer os seus ninhos. As avetoninhas mudaram o rumo em consonância com as alterações climáticas na aldeia. Necessitam de campos lamacentos alagados pelas cheias do rio parra debicarem comida.

Os pardais, na falta de sementeiras e de cultivo para se alimentarem, procuram outros locais onde haja comida. Uma esplanada de um estabelecimento hoteleiro, por exemplo.

O chasco bate a asa e acena a cabeça para acasalar e depois criar a suas crias e a cria do cuco que se ouve cantar a meio da manhã e ao entardecer.

Os pimpalhões mais os pintassilgos ainda passam nos corredores serranos que são a passagem das aves migratórias.

A águia continua a sobrevoar os ares para, em mergulho picado e célere, caçar uma a presa.

O mocho pia na oliveira centenária onde se confunde por ser pedrês. Dizem que anuncia a morte e por isso é tido como uma ave lúgubre.

A coruja passeia o seu canto noturno pelos vários lugares, embora pernoite sempre no mesmo sítio. Uma velha casa senhorial. Que no que toca a residência, a coruja faz questão em escolher. Não lhe serve qualquer pardieiro.

Os javalis que passam pelo vale têm de percorrer distâncias enormes para encontrar comida face a uma drástica diminuição nas plantações e sementeiras, nomeadamente batata e milho, entre outras. Deslocam-se em grupos familiares até que por ordem natural da sua organização se dispersam por varas com oligarquia definida e corredores de passagem distintos.

As alcateias de lobos já não descem ao vale do Este.

Resistem as raposas e os coelhos bravos. A perdiz. As cobras e os lagartos também, entre outros animais selvagens aos incêndios provocados pelos Homens. Uns ateando a mecha e outros alterando o equilíbrio ambiental com comportamentos sociais que começam a ser irreversíveis para salvar a flora e a fauna na floresta.

O Sol hoje nasceu cedo.

Despertou também o casario disperso e o casario centrado no coração da localidade que alberga as pessoas nela residentes e que os campos trabalham uns, enquanto outros se deslocam para fora da aldeia onde têm o seu emprego. Enquanto que os mais novos se encaminham, ou são levados, para os estabelecimentos de ensino locais, mas também para fora da aldeia.

O Sol hoje nasceu cedo.

Aquece toda a vida que consigo desponta e desperta para mais um dia novo. Sempre novo.

Diferente. Sempre diferente.

Diferente nos acontecimentos triviais, mas também diferente no percurso da sua cadeia articulada por elos que asseguram a existência e fortalecem a resistência a todas as contrariedades naturais. Diferente também nas contrariedades artificiais resultantes de dinâmicas de conjuntura em processo de constante renovação da vida e das coisas.

 

Imagem: AVE – Associação Vimaranense Ecologia

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Categorias: Crónica, Cultura

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