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Devo à biblioteca municipal de Castelo Branco o ter descoberto o primeiro livro que li de Rui Nunes. O título, desde logo perturbador, Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado, aliado a uma capa que me era familiar – uma reprodução de um quadro de Francis Bacon, com a sua habitual predileção pelas formas grotescas, contorcidas, pela carne viva, aquosa, visceral, pintando a cabeça em detrimento do rosto, pleno e reconhecível, segundo Gilles Deleuze. Título e capa, portanto, numa súbita aliança perversamente irresistível para alguém das humanidades, minimamente familiariza.
Mas este alheamento primordial faz parte do movimento da leitura: um alheamento do qual não é discernível um certo medo, uma incerta resistência a começar um livro sem qualquer cartografia prévia, sem saber o quão profundas seriam aquelas águas, a ponto de me arriscar perder o pé. O medo clássico de quem viveu os anos da escolaridade obrigatória prensando o fascínio pelos livros com o terror das avaliações sumativas: o sentido do texto, a moral da história, o sujeito lírico, o estado de espírito, a hipálage – os pequenos lixos do luxo literário. Mas adiante.
O que eu ainda não sabia é que essa insegurança é contígua, interior, à escrita de Rui Nunes. A começar por esta constatação: o desfile de horrores que pautou o século XX e o tempo que nos coube viver provoca o discurso, obriga-o a ser mais exigente. Menos tagarela, menos decorativo, menos deslumbrado consigo mesmo. E mais afim do silêncio, mais brutal, mais desconfiado daquilo que as palavras absorvem – e absolvem. Uma escrita que enverede pela poesia e pela literatura, atravessando uma e outra, subvertendo as suas convenções e a própria organização dos géneros literários, e que, ao fazê-lo, se sirva da poesia e da literatura, ou melhor, se sirva de si própria, enquanto escrita, como passagem para outra coisa, uma não-escrita. Algo como a sua exterioridade, como uma hipótese viva que sobressalta continuamente um texto no movimento de devir texto. Como um grito, um murro no estômago, a expressão de alguém que fica hesitante quanto àquilo que tencionava dizer, irrefletidamente ou não, com ou sem as boas intenções da praxe. Rui Nunes expulsa essas boas intenções, e deixa-nos com o real do seu inferno. O real, o físico, a matéria orgânica, imanente, ora doce, ora cínica, de sermos um corpo, e pouco mais do que isso.
Mas estas considerações só me chegariam muito depois, com cinco anos de distância e maturação face àquele primeiro contacto. Nos entretantos, Rui Nunes agudiza e alarga a minha perceção do que a leitura efetivamente é. Não abro um livro para nele procurar afinidades e complacências, reflexos do que sou ou de como me vejo (ou do que como penso que os outros me veem). E se acaso tropeço nessa tentação vagamente narcísica (o que não deixa de ser uma tentação legítima: que moral é a minha para julgar os êxtases alheios?), há logo de seguida um movimento da escrita – uma interrupção, uma mancha gráfica, uma violência, um perfurante silêncio visualmente plasmável na página – que me obriga a desconfiar desse desejo de reconhecimento, desse facilitismo, dessa busca de um sentido para aquilo que tenho diante dos olhos.
Porque a escrita de Rui Nunes desconjunta o que somos levados a crer que é integral e coeso. Os seus livros explodem com essa lógica do reconhecimento: o rosto que vejo no espelho, o nome que tipifica um sujeito, a paixão furiosa de quem reclama por palavras espiritualizadas como Deus, a Pátria, o Poder, a Segurança, a Paz, o Humanismo, a Tradição (o respeito pela Dita-Cuja). Tudo aquilo que nos sossega, que nos harmoniza com a vida, que nos distrai da vida – isso que torna uma história completa, um paraíso –, é fustigado por uma escrita feita de convulsões, contínuos abalos, a ponto de nos hostilizar, de nos fazer sofrer com a evidência súbita de que as palavras não são formas aladas que, diz o ditado, o vento leva consigo, mas coisas com peso, volumes consistentes e espessos, pedras que nos podem esmagar. A leitura, portanto, pode esmagar-nos – ao ponto de não sabermos o que fazer com ela, soterrados nela, com o peso de palavras empilhadas em múltiplos corpos negros. Corpos verbais que dançam lentamente, como se numa performance de letras e traços. Palavras e frases que perfuram a sua iminente legibilidade e, nesse gesto de violência, se dobram para nos ferir a vista, como o impacto sensível do real sobre nós, como a luz na fotografia: palavras-visões, palavras que agem como mil olhos, palavras-imagens. Imagens, por fim.
“Comecei a escrever e já não sei porquê, nem quando, estou onde não sei para onde, não se escreve para o futuro, mas para um passado sempre incompleto: quanto mais se escreve mais incompleto fica: eis a única coisa que aprendi.
As grandes revoluções destroem palavras, emudecem o futuro: liberdade, utopia, revolta, sexo: alguém recuperará tudo isto, mas nós hoje temos unicamente um gesto indefeso para resistir. A enorme solidão de um gesto. Que gritamos com a veemência de não sermos ouvidos.
Nada se perderá com a nossa morte, porque nada há para perder:
um espaço completo é o massacre de qualquer memória.
Vivem iluminados os que estão próximos dessa completude:
não são a margem dela, nem o outro dela. Mas a ferocidade de uma crença.
(O espaço que se abre com o que escrevemos, esse espaço da vingança, quando paramos, retrai-se e prende-nos os pés, ou infiltra-se entre a sola dos sapatos e a terra pisada, expulsando-nos: a erva, aí, há-de crescer rapidamente para apagar o mais ténue vestígio.” (Rui Nunes, Suíte e Fúria, 2018, p. 56)
O espaço que se abre com o que escrevemos. A escrita age como um corpo real, uma coisa entre as coisas. Ou seja: ocupa um espaço, preenche um vazio, mesmo que instigue o vazio, nos expulse dele, nos arraste para ele. Ocupa um espaço na nossa cabeça, como uma dor, uma teima, um crime. Torna-nos diferentes do que éramos antes de iniciarmos um livro. Um ensaísta como Eduardo Prado Coelho, a quem devo muitas coisas enquanto leitor – a começar por esta biblioteca, que detém o seu espólio, e que foi largamente decisiva a nível bibliográfico para a minha tese de doutoramento e para o meu atual projeto pós-doutoral –, tem inúmeras reflexões contíguas a esses espaços abertos dentro da escrita, espaços onde o nosso corpo se instala, se anula, se reafirma, se reconstrói, disseminando-se, transformando-se, pondo-se em causa. O espaço que se abre com o que escrevemos é lugar de desejo, de paixão, de horror, de inquietação permanente. É o contrário de uma mera leitura de descanso, contente com encontrar o paraíso a meio de um livro. É o contrário de uma escrita preocupada com o “escrever bem”. E é com este lanço que termino ao citar o diário Tudo o que não escrevi, de Eduardo Prado Coelho, para sinalizar uma dobra última (em sentido meramente protocolar, atenção, que isto dos espaços na escrita é coisa que nunca mais acaba, com a batata quente do infinito a arder-nos nas mãos) no movimento da leitura de Rui Nunes:
“Alguns supõem que existe uma continuidade amável entre a vida e a literatura. A gente escorrega um bocadinho e é já literatura. É a ilusão sociológica. Alguns supõem que há uma gradação entre escrever mal e começar a escrever bem. Mas «escrever bem» não tem grande interesse. É apenas juntar as palavras com acerto. Coisa que se aprende, há escolas para isso. O que interessa é esse salto vertiginoso que consiste em começar a escrever. Escrever bem sou eu que escrevo. Mas escrever é a escrita que escreve, e eu a vê-la nos dedos manchados de tinta. Escrever, simplesmente, com as palavras soltas à velocidade da luz.” (Eduardo Prado Coelho, Tudo o que não escrevi, 1994, p. 345)
Referências:
Rui Nunes, Suíte e Fúria, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.
Eduardo Prado Coelho, Tudo o que não escrevi. Diário II (1992), Porto, Asa, 1994.
Imagem de Rui Nunes: fotograma de Mensageiro Diferido, série “Arquipélago”, entrevista concedida a Diogo Vaz Pinto, 2015.
(Nota: este texto integrou parte da minha apresentação no 12.º Encontro de Serviços de Apoio às Bibliotecas Escolares, com o tema “Somos o que Lemos”, que decorreu na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, em Famalicão, nos dias 29 e 30 de novembro.)
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