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Aconteceu-me rever esta semana o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, o épico de guerra sobre o Vietname que atualiza o Coração das Trevas, de Joseph Conrad, com a pirotecnia bélica do século XX e o consumo imoderado de estupefacientes. Ao longo do filme, o efeito espectral dos fumos sinalizadores – usados para manobrar a aterragem dos helicópteros em locais minimamente seguros – parece querer transcender o seu propósito estritamente funcional: são fumos coloridos que alucinam a própria tragicidade da guerra, como se esta, no fundo, mais não fosse do que um espetáculo escapista, um êxtase prolongado onde a morte, na verdade, não passa de um contratempo menor. Cada bala disparada é, aqui, um motivo de festa, inscrito numa delirante sequência de entorpecimentos.
Ao assistir ao filme The Beach Bum: A Vida numa Boa, de Harmony Korine (2019), exibido ontem à noite na Casa das Artes pelo Cineclube de Joane, ia tendo essas flashadas místicas declinadas de Coppola: os fumos luxuriantes, o espesso nevoeiro arroxeado, azul e rosa fluorescente que vai inebriando os guerrilheiros de Martin Sheen à medida que se adensam pelo rio em busca do malogrado Kurtz. Desta vez, contudo, em A Vida numa Boa, os fumos não são nem sinalizadores, nem consequência de bombardeamentos: são o índice dos charros, as pequenas névoas das ganzas pessoais incensando hedonismos niilistas. As cores já não provêm tanto do fumo, mas do garrido foleiro das roupas, da ambiência da Flórida, dos cocktails com palhinhas, dos insufláveis kitsch numa mansão com piscina. Portanto: já não se trata da guerra do Vietname (que no filme de Korine, aliás, só conta com uma tão abreviada invocação que tão-pouco justifica este aparte entre parêntesis), mas dessa outra guerra, uma “guerra espiritual”, se repescarmos o evangelho de Tyler Durden no filme de Fincher contra o materialismo ocidental (Fight Club, 1999 – vinte anos depois, a sátira negra do filme continua intocável e cada vez mais urgente).
No entanto, a guerra espiritual em A Vida numa Boa tem mais ares de uma derrota feliz: uma derrota intolerante aos efeitos da ressaca, procurando inebriar-se ainda mais para que nunca se corte o efeito do charro e da cerveja. O protagonista – Moondog (Matthew McConaughey) – é um poeta boémio, vagabundo, de uma extravagância que bate todos os records do Guiness. Depois de um acidente de carro que lhe custou a vida da esposa (uma milionária tão destravada quanto ele), Moondog recebe a notícia de ser ele o herdeiro de toda a fortuna, na condição de publicar de uma vez por todas o romance que as borgas o impedem de concluir.
O núcleo do argumento reduz-se apenas a isto. Tudo o resto é um pastiche suculento de histórias secundárias, de peripécias sem agon nem pathos. Mas é um resto, sempre de rastos, que vigora com uma leveza irresistível se aceitarmos a premissa mais elementar do filme: que a ficção é intrinsecamente elástica para conseguir conter todas estas explosões orgiásticas, todos estes tiques de transcendência – algo que um realizador mais inábil tornaria futilmente esquizofrénico, se ousasse, por exemplo, injetar nas personagens alguma dose de moralismo, numa lógica de crime-e-castigo e subsequente catarse (mais óbvio em Spring Breakers, 2012, filme anterior de Korine, uma espécie de guloseima com dinamite por dentro).
Daí que esteja em total desacordo com a leitura que Eurico de Barros fez do filme no jornal Observador: “Dominado por um Matthew McConaughey encravado na mudança do mais insofrível cabotinismo e rodeado por personagens tão ou mais chungosas e cretinas do que a dele, The Beach Bum: A Vida Numa Boa compraz-se de forma infantilóide e beócia na glorificação de um estilo de vida pseudo-libertário que se reduz a emborcar copos até desmaiar, partir a cabeça e ficar a dormir no meio do próprio vómito, sugar quilos de erva e abandonar toda e qualquer noção de dignidade e responsabilidade pessoal e social. […] / Além de cinematograficamente nulo, The Beach Bum: A Vida Numa Boa é ideologicamente rasteiro. A América que nele é representada, e endossada como ideal, “cool” e fixe, é aquela que muitos americanos rejeitam, e contra a qual se revoltaram votando em Donald Trump. E a verdade é que não podemos culpá-los.” (9 de maio de 2019, em linha)
Se esta América de Harmony Korine, da qual Moondog seria o seu porta-voz desmiolado, servisse de pretexto ao realizador para militar um estilo de vida alternativo (antirrepublicano, no caso da América, ou talhado à medida para provocar celeumas incuráveis e labaredas inquisitórias nos Henriques Raposos e nos Padres Portocarreros-de-Almadas destas bandas), o filme acabaria por tropeçar fatalmente no seu artificialismo alegórico. Mas o que o salva dessas veleidades reside exatamente na desproporção hiperbólica dos seus excessos: quanto mais McConaughey se parece com uma caricatura sem pingo de verosimilhança humana (e o mesmo se aplica a todas as personagens secundárias, entre as quais um Snoop Dog a fazer de si mesmo, ou do que achamos ser Snoop Dog no seu dia a dia, sem o faro das câmaras atrás de si); quanto mais o hedonismo de Moondog insiste em fazer corar os epicuristas mais heterodoxos (demorar-se num cunnilingus ao mesmo tempo que a esposa põe a pédicure em dia é, mais do que sexo, um caso de performance pós-moderna); quanto mais o filme despeja diante nós um menu delirante de exacerbados píncaros, ao ponto de julgarmos impossível levar tudo aquilo a sério (o ataque do tubarão, o amigo pirómano, a nave dos loucos atirando-se à piscina, com o seu piscar de olho ao Voando Sobre Um Ninho de Cucos…) – quanto mais tudo isto nos é dado a ver para nos fazer rir, mais o filme se cumpre enquanto filme, e mais fidedigno é o seu efeito de leveza (porque fiel ao seu espírito de transcendência: não o da história em si, mas o da sua utopia). Por outras palavras: mais literal se lê o título do filme, essa “vida numa boa”, que é a possibilidade maior do cinema – ser um portal para este tipo de evasões, devaneios e excessos.
Quando o filme já parece ter descarrilado, atirando-nos a todos para esse estado amoral de indiferença diante o caos (mais desalinho, menos desalinho, mais depravação, menos depravação – o que é que isso importa, afinal?), a personagem de McConaughey adquire um momento de gravitas, no mínimo, quintessencial. Estamos quase no fim, já tem o romance publicado – The Beach Bum –, ganhou com ele nada menos que o Pulitzer. Ao ser entrevistado na sequência de ter recebido este prémio literário, Moondog faz uma síntese da sua filosofia de vida, que acaba por constituir um invejável momento de cintilação poética: “Tenho quase a certeza de que o mundo conspira para me fazer feliz”.
Vale a pena citá-lo na íntegra: “I mean, look, I could tell you that I’ve been trying to uncover the abyss beneath my illusory connection with the world. I could tell you that it’s all written in the stars. I could tell you that I’m a reverse paranoiac. I am quite certain that the world is conspiring to make me happy. All three of which are true, but it’s really a little simpler than that. I like to have fun, man. Fun is the fucking gun, man. That’s why I like boats. I like water. I like sunshine. I like beautiful women, a lot. And I get all these things going, man, and they’re all turning me on. And my wires are connecting upstairs, and I start to hear music in my head. You know, and the world is reverberating back and forth, and I hit the frequency, and I start to dance to it. And my fingers get moving, my head gets soupy, I’m spinning all over the fucking place, and the fucking words come out. It is like it’s a fucking gift.”
Não é por acaso que este excurso se dá quase inteiramente em voz off, sobrepondo-se-lhe múltiplas imagens das errâncias do poeta, súbitas irrupções da memória. A personagem encontra-se, neste momento, em puro estado de levitação: quanto mais fiel à sua verdade (levar a vida numa boa, etc.), menos importa o que faz Moondog, ou como o faz. Menos interessa corroborar este boneco com o que da vida possamos inferir como legítimo ou verosímil (moralmente, socialmente, culturalmente): “The world is reverberating back and forth, and I hit the frequency, and I start to dance to it.” Moondog faz-se transumano, qualquer coisa de etéreo e puramente emocional, uma vibração, um raio de sol. Qualquer coisa que Alberto Caeiro, o epicurista pessoano, muito calmamente aprovaria:
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Por último, este exercício de comparação. No filme O Cavaleiro das Trevas (Christopher Nolan, 2008), a perversidade engenhosa do vilão – o inesquecível Joker de Heath Ledger – tem a sua apoteose ao atirar gasolina para cima de todos os milhões roubados aos bancos de Gotham City, chegando-lhes fogo. Com esse gesto, mostra quem verdadeiramente é, que rosto tem sob todas as máscaras: é a malignidade em estado puro. Porque a essência do Mal é existir sem objeto. Não se vende por dinheiro, é absolutamente inegociável. E diz mesmo: “Esta cidade precisa de uma nova classe de criminosos, e é isso que lhes vou dar”. Confirma deste modo o retrato esboçado pelo mordomo a Batman/Bruce Wayne no início do filme: alguns indivíduos só querem ver o mundo arder.
O bon vivant de McConaughey é contíguo a esta displicência em relação ao dinheiro, se tivermos em conta, pelo menos, a relação entre estes dois momentos. O primeiro são dois versos de um poema de Moondog, declamados no início do filme: “One day I will swallow up the world, and when I do, I hope you all perish violently.” O segundo prende-se com o modo como o filme termina: uma chuva de notas incineradas, no meio de muito fogo-de-artifício.
De facto, saber a verdade e ser-se feliz, à la Caeiro, parece ser muito fácil para os 1% de obscenamente ricos, tão ricos que, não sabendo o que fazer ao dinheiro, podem dar-se ao luxo de torná-lo lixo para gáudio geral (inclusive o nosso, espectadores de mais este miminho indulgente do realizador e argumentista). Mas atenção: dinheiro a arder é ainda parte de toda esta fantasia, mais uma das suas infinitas dobras, chafurdando na excessividade geral.
Pelo meio, fica no ar a dúvida de ser possível ver The Beach Dum como um filme pós-apocalíptico (na medida em que O Cavaleiro das Trevas se instituiu como uma alegoria do mundo no pós-11 de setembro). Pois se se tem tornado recorrente, nos últimos tempos (e não resisto a decalcar a inquietante estranheza da expressão aplicada a este contexto), citar sem aspas o paradoxo de Fredric Jameson – o facto de ser mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo –, então este delírio visual de Harmony Korine, por mais álcool e canábis que nos sirva, não vai muito além de um prémio de consolação. Confirma a nossa derrota e o transe a que nos submetemos para a tolerarmos. Mesmo as nossas fantasias mais esdrúxulas foram colonizadas pelo capitalismo tardio – e, fazendo jus a uma leitura alegórica do filme, Eurico de Barros tem razões de sobra ao denunciar que o espírito “cool” e “alternativo” de Moondog é interior ao mais rasante mainstream.
Em face da catástrofe, mais uma gargalhada e mais um bocejo, e mais esta incontornável citação:
This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.
(T. S. Eliot)
“Que se foda”, exclamaria Moondog acaso lesse estas considerações ruminantes. No melhor dos mundos possíveis, entre aqueles que Korine expõe no cinema, ou há o niilismo acerbo e sem saída das adolescentes de Spring Breakers, de espingardas em riste, com James Franco a pianar um hit de Britney Spears (momento genial do filme, em que as canções pop mais inofensivas são viradas do avesso, desvelando o seu potencial de violência), ou há, pelo contrário, este mano bonacheirão, irresponsável, completamente pedrado, boiando ao sabor das ondas. A virtude do cinema é que, nestas coisas, não temos propriamente de escolher. E mesmo isso nos é sugerido pelo filme no seu único momento verdadeiramente tocante, ao som da voz de Peggy Lee, “If that’s all there is, my friends, then let’s keep dancing”.
Referências:
Trailer de The Beach Bum: https://www.youtube.com/watch?v=qSALRP1mZNQ.
Eurico de Barros, “The Beach Bum: A Vida numa Boa: Matthew McConaughey ganzado à beira-mar”, Observador, 9 de maio de 2018, disponível em https://observador.pt/2019/05/09/the-beach-bum-a-vida-numa-boa-matthew-mcconaughey-ganzado-a-beira-mar/.
António Guerreiro, “Imaginar o fim do capitalismo”, ípsilon, 9 de novembro de 2018, disponível em https://www.publico.pt/2018/11/09/culturaipsilon/opiniao/imaginar-fim-capitalismo-1850106.
Sobre O Cavaleiro das Trevas (Christopher Nolan, 2008): “Creating The Ultimate Post-9/11 Allegory: The Dark Knight on Risk and Terror”, Like Stories of Old, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=W4evCOctDrc.
Poema de Alberto Caeiro, “Sou um guardador de rebanhos”: http://arquivopessoa.net/textos/1488.
Poema de T. S. Eliot, “The Hollow Men”: https://msu.edu/~jungahre/transmedia/the-hollow-men.html
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